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Dúvidas no ECA

O que quer dizer o termo "liberdade assitida"?

Da Redação

quinta-feira, 20 de novembro de 2003

Atualizado às 09:50

 

Dúvidas no ECA

 

Juristas de todo país discutem a maioridade penal, após os recentes casos estrondosos que tiveram participação de menores. Mas, neste debate ainda não se discutiu, o que o professor Pasquale Cipro Neto retrata hoje no jornal Folha de São Paulo, o termo "liberdade assitida" utilizado no ECA. A dúvida é: assitida de vigiada ou de protegida ?

 

"Liberdade assistida"

 

Depois de mais um capítulo da interminável novela da interminável barbárie brasileira, a sociedade se pôs novamente a discutir a questão da maioridade penal. Muita gente não aceita o fato de que menores infratores fiquem internados por apenas três anos e depois sejam postos em "liberdade assistida".

 

Pois é aí que quero meter a minha colher: que se entende por "liberdade assistida"? "Liberdade amparada" ou "liberdade vigiada"? Minha pergunta se deve ao que ouvi em conversas aqui e ali. Notei que muita gente entende que "liberdade assistida" equivale a "liberdade vigiada, observada". E essas pessoas não gostam nem um pouco da idéia ("Até parece que o governo vai ficar vigiando os passos desse pessoal").

 

A expressão não tem esse sentido. O que o Estatuto da Criança e do Adolescente determina é que, cumpridos os tais três anos de "internação", o menor infrator seja posto em liberdade e receba assistência do Estado. Por "assistência" entende-se "ajuda", "amparo", "auxílio", "proteção" etc.

 

Chegamos ao xis do problema: a forma "assistida" vem do particípio de "assistir", mas de qual "assistir", do que significa "ver", "presenciar", ou do que significa "amparar", "prestar auxílio"?

 

Vamos ver isso com cuidado. A tradição gramatical ensina que, quando significa "presenciar", "ver", o verbo "assistir" rege a preposição "a". Em seu monumental poema "Uma Hora e Mais Outra" (de "A Rosa do Povo"), Carlos Drummond de Andrade escreveu estes versos: "Há uma hora triste / que tu não conheces. / Não é a da tarde (...) / e também não é a / do nascer do sol / enquanto enfastiado / assistes ao dia / perseverar no câncer, / no pó, no costume, / no mal dividido / trabalho de muitos".

 

Em "assistes ao dia perseverar no câncer", nota-se a opção pela regência tradicional de "assistir". A tradição gramatical ensina também que, com verbos indiretos, não há passiva. Não se faz, por exemplo, a passiva de "Gosto de você" ou de "Isto pertence a você". Sob essa ótica, não haveria a passiva de "Ele assistiu ao jogo" nem se poderia entender "assistida" como "observada", "vista".

 

Pois é aí que se faz mister uma observação, que talvez explique o entendimento que parte do povo faz da expressão "liberdade assistida": no Brasil, é viva a tendência para o emprego de "assistir" como transitivo direto quando usado com a acepção de "ver", "presenciar" (fato já registrado no "Houaiss" e no "Aurélio").

 

Que significa isso? Que, se no uso efetivo esse "assistir" é verbo transitivo direto ("Muita gente assistiu o jogo"), a voz passiva com esse sentido de "assistir" é mais do que natural para o falante brasileiro ("O jogo foi assistido por muita gente"). Daí para que se julgue que "liberdade assistida" possa equivaler a "liberdade observada" é um passo.

 

E de onde vem o sentido que a expressão "liberdade assistida" efetivamente tem no estatuto? Vem da passiva de "assistir" com o sentido de "amparar", "prestar auxílio". Com esse sentido, "assistir" costuma aparecer como transitivo direto ("O ministro não assiste os idosos"), embora não faltem registros de seu emprego como indireto ("O ministro não assiste aos idosos"). Ao fim e ao cabo, "liberdade assistida" equivale a "liberdade amparada". É isso.

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Fonte: Folha de São Paulo (20/11/03)

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