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Aborto: sim ou não?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Atualizado às 07:21

"Dilma, pressionada por evangélicos, muda discurso sobre aborto."

Dos jornais

"O governante (o Príncipe) não precisa possuir todas as qualidades, bastando que aparente possuí-las. Antes, teria eu a audácia de afirmar que, possuindo-as e usando-as todas, essas qualidades seriam prejudiciais, ao passo que, aparentando possuí-las, são benéficas. Por exemplo: de um lado, parecer efetivamente piedoso, leal, humano, íntegro, religioso, e, de outro, ter o ânimo de, sendo obrigado pelas circunstâncias a não ser, tornar-se o contrário."

Nicolau Maquiavel
O Príncipe, Capítulo XVIII
"De que forma os Príncipes devem
manter a palavra"

Confesso que há alguns temas jurídicos que me causam insuportável mal-estar. A pena de morte é um deles, embora eu tenha de admitir que, se a China adotasse um Código de Processo Penal semelhante ao nosso (tal como interpretado pelos nossos tolerantes tribunais superiores, é claro), não seria a potência que, neste século, terá a hegemonia que foi dos EUA por quase todo o século passado. Quanto seria necessário investir para construir presídios modernos que abrigassem todos aqueles que, incentivados pela leniência do Judiciário, chegassem à óbvia conclusão de que a vida criminal lhes trará condições de vida bem melhores do que viver com um salário meramente simbólico, uma espécie de "bolsa família" que, porém, não dispensa o beneficiário do dever de trabalhar, ao reverso do que ocorre em outras partes do mundo ocidental.

Imagine o que seria assegurar a um bilhão e pico de habitantes (só esse "pico" é maior do que a população do Brasil) uma absurda presunção de inocência que faz de um réu confesso, com condenação confirmada em segunda instância, alguém que circula normalmente pelas ruas, enquanto seu enésimo recurso ainda não foi julgado pelo atolado Supremo Tribunal, dando aos que não estão nem aí para a Ética uma sonora demonstração de que "o crime não compensa" não passa, hoje, do nome de um programa que a rádio Record transmitia há muitas e muitas décadas. Se a certeza da condenação tinha, em nosso tempo de estudantes do Direito, um sentido escarmental (no sentido de que aquele que foi condenado aprendeu com a experiência dolorosa, que, por isso mesmo, serviu de advertência aos demais membros da comunidade), a certeza da impunidade, em termos práticos, só pode levar a uma função "desescarmental", como acintosamente nos mostram muitos de nossos políticos, seja por sua conduta pessoal, seja pelos auxiliares de confiança que trazem para seu staff. Quando não agem como ventríloquos, colocando a esposa no colo, tentando convencer os espectadores de que é dela a voz que ouvem.

Como dizia Carnelutti, no As Misérias do Processo Penal (clique aqui), "todo julgamento é a revelação da miserável condição humana. O processo morre sem alcançar a verdade. Cria-se, então, um substitutivo para a verdade: a coisa julgada. Os fatos têm comprovado que as penas tradicionais raramente curam o condenado. A prisão é o maior exemplo. Ela pune, mortifica, degenera, faz aumentar o ócio, multiplica os ressentimentos e as revoltas. A prisão só não recupera." O que nem ele nem ninguém nos esclarece é: qual a alternativa para ela?

Os argumentos em favor da possibilidade da interrupção voluntária da gravidez são, no geral, de ordem prática: proibido ou não, o aborto é feito diuturnamente, seja em clínicas elegantes, por quem tem condição econômica para assim proceder, seja em algum pardieiro de periferia, onde o risco de uma infecção a ser contraída pela gestante é enorme. É justo que haja tal distinção entre quem tem recursos econômicos e quem não os tem?

Posto em tais termos o problema, o feto passa ao largo, como se ele fosse culpado por haver surgido de uma relação sexual descompromissada. É ele um simples e incômodo objeto, tal como os cálculos biliares ou um tumor canceroso. Insta extirpá-lo, sem maiores discussões éticas, como ocorre sempre que se invoca o pragmatismo, como fazem os magistrados chineses, que, além de mandarem executar os condenados com um tiro na nuca, ainda cobram da família do morto o preço da bala utilizada na execução. Ética e pragmatismo são como água e azeite. Ou um, ou outro.

Certa ocasião, participei de um debate na OAB a respeito da possibilidade de descriminalização do aborto. Os argumentos iam desde o fato de nossa legislação não considerar o feto titular de direitos, um dos quais o direito à vida, até a discussão teológica a respeito do instante em que a alma se incorpora no feto, não faltando quem trouxesse o pragmatismo: já que tantas gestantes o praticam será cínico não reconhecer isso.

Mal comparando, sendo tão comum nossos políticos misturarem o patrimônio público ao seu próprio, talvez devêssemos regular isso, definindo-se, em lei, qual deve ser o percentual razoável que um corrupto (ache-se um nome mais palatável para eles) pode receber para não vir a ser processado criminalmente a tempo de serem condenados.

Fiz, naquela ocasião, as considerações que me pareceram adequadas e, ao encerrar, fui elegantemente aparteado por uma advogada, que me acusou de "haver raciocinado como homem", por ser incapaz de avaliar o sofrimento de uma mãe que, premida pelas circunstâncias, tem de livrar-se daquele futuro filho. Sem contradizê-la, até porque não me seria muito fácil raciocinar como uma mulher, lembrei-lhe a reação de um médico ginecologista que foi procurado por uma gestante, que queria porque queria que ele "retirasse o feto", pois a família "não tinha condições econômicas para alimentar mais uma boca", sem lhe indagar previamente quais as convicções dele sobre o tema. Indagou-lhe ele quantos filhos o casal já tinha. "Dois", disse ela. Um menino de 5 e uma menina de 9 anos. "Então traga-me aqui a menina, que certamente gasta mais em comida do que um recém-nascido. Se a questão é meramente econômica, vamos resolvê-la economicamente".

E mais eu não disse nem me foi perguntado.