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Novo astro (Um)

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Atualizado às 06:59

 

À Maria Helena,
com muito amor.

Eu deveria começar a crônica desta semana citando um desses ditos populares, tal como quem sai aos seus não degenera. Ou então filho de peixe nasce nadando. Aí apareceria um desses estraga-prazeres para contar a história da coruja que, para que o gavião, que ela havia tirado de uma situação embaraçosa e queria mostrar-se grato a ela, não lhe comesse as corujinhas filhas, orientou a rapinácea ave: "Meus filhos são os filhotes mais lindos da floresta. Se quer retribuir o favor, poupe-os". O que não impediu que o aparentemente ingrato gavião devorasse a ninhada corujal toda, como haveria ele de conhecer essas psicologias psitáceas? Como quer que seja, sempre nos restou a expressão mãe-coruja, designativa dessa incapacidade materna de olhar com olhos neutros sua ninhada. Coisa, aliás, que também se aplica a certas avós.

Ou diria aquele chato, todo despeitado, que quem conta um conto aumenta um ponto.

Pensei, pensei e resolvi não colocar qualquer nariz de cera, entrando diretamente no assunto: hoje falarei do Felipe.

Quando nasceu, coisa aí de ano e meio passado, o garoto já prenunciava novidades. Não chorava em si bemol, como é comum nessa espécie de filhote, mas em dó maior. Fosse por ele, nem haveria necessidade de ginecologista, obstetra, parteira, pediatra e nutricionista. Ele mesmo iria à cozinha da maternidade e com o dedo indicador direito apontaria aquilo que queria comer e beber, depois de ter nascido com as próprias pernas e os próprios braços, auto-suficiente como ele só, e ido da sala de parto ao apartamento da maternidade por si mesmo, só não apertando o botão do elevador porque, em razão da imprevidência dos adultos, estavam tais botões muito acima de sua cabecinha. Mas certamente teria tentado apertá-los, como atestariam os vários pulos presenciados por uma ou duas enfermeiras, a demonstrarem essa sua disposição, falo dele, e sua auto-suficiência. Tudo narrado pela avó paterna.

Pais modernos, metidos a intelectuais, lá vai o Felipe para o berçário da esquina, sendo então levado à sala onde pessoas ainda não auto-movimentáveis ficam o dia todo deitadas, a olhar o teto e a chupar chupeta, quando não o polegar. Ao passar por outra sala, onde crianças se divertiam estapeando-se mutuamente, o Felipe não deixou por menos: é aqui que eu quero ficar. Não disse isso em linguagem audível, mas as mocinhas da escola infantil precisariam ser sumamente estultas para não deduzirem isso do berreiro que ele aprontou, só abortável quando ele era posto junto das crianças maiores. "Mas elas sabem andar, ao passo que você só engatinha!" exclamou uma delas. Não seja por isso. Ele levantou-se sobre as duas pernas e, caindo e levantando-se, passou a acompanhar os marmanjos, inúmeros meses mais velhos do que ele.

E vieram as descobertas que lhe iam saciando a curiosidade. "Que gosto terá a carne de gente?" indagou-se ele. Só experimentando, respondeu-se. E sapecou uma mordida, com os dois solitários dentes superiores e outros tantos inferiores, no braço de um colega que, contrariado por haver sido escolhido sem prévia consulta, se é que há consulta a posteriori, para aquela utilíssima experiência, põe-se a berrar, mostrando-se precocemente inimigo do progresso científico. Foi o que constou da cartinha que o futuro cientista levou para casa no fim do expediente escolar.

Ciente de que os dias do nosso planeta estão contados, lá vai o Felipe explicando a esta plantinha os esforços que os adultos estão a fazer para impedir a chamada hecatombe, consolando aquela outra porque sua florzinha da esquerda não tem mais hoje o vigor que tinha ontem, ou lamentando que aquela folha amarelecida, que o vento destacou do talo, não possa ser colada a ele, por mais que isso seja por ele tentado. E com cada uma vai conversando, a explicar que zuzuzuba isto, calafita aquilo, gnosminuci algo mais. E que elas, pela atenção mostrada, estão todas a entender. E até lhe pedem algo para beber, o que exige que o ecologista pediátrico vá caçar alguém que lhe encha o baldezinho, que, devidamente provido de água, ele arrasta de cá para lá. E põe-se a distribuir o precioso líquido, valendo-se de uma colherinha de plástico, o que faz irmãmente, um pouco na própria roupa, outro tanto no chão e o sobejo nas já angustiadas plantas.

E se estou com um belo chaveiro que tem um patinho de borracha amarelo na ponta, com um botãozinho que, devidamente premido, faz quac, quac, além de lançar uns raios azuis pela boquinha, lá vem o Felipe e decreta que aquilo deve ser desapropriado, mercê de um decreto expropriatório com apenas dois artigos: Artigo primeiro: É meu; Artigo segundo: Revogam-se as disposições em contrário.

E lá vai ele, todo bamboleante, imitando meu expropriado pato, que ele mostra a cada flor, apertando com destreza o tal botãozinho na cara de cada uma delas.

Se depender da avó paterna, cada enxadada uma minhoca. Explico: se vamos ao shopping ou à feira, uma blusinha de marinheiro ou uma fruta madura são a cara do Felipe. Isso quando não é um pianinho, mais colorido do que a roupa do seu colega Elton John (clique aqui). O que poderá gerar nele um consumismo desenfreado vendo nela uma provedora eterna. Ou um ataque de profunda decepção quando a avó algum dia vá visitá-lo com as mãos abanando, como lhe adverte a ela o sensatíssimo marido, ocasião em que ele, o Felipe, lhe mostrará a ela todo o seu desencanto abrindo as mãos e os braços e exclamando um solene "Cabô". Sem êxito, reconheço, minhas advertências.

E já que falei no tal pianinho, diga-me lá: qual foi a reação de teu filhinho, de tua filhinha, de teu neto, de tua neta, ou da criancinha que fosse a quem algum dia deste um pianinho desses de presente? Se era uma criança normal, ela fechou a mão direita, deixou o indicador de fora e se pôs a agredir, com aquele solteiro dedo, o teclado, aquele espaço sagrado que o Paul McCartney comparou à harmonia (clique aqui)que deve imperar entre os habitantes do planeta, sempre com o mesmo plim. E o Felipe? Não fosse ele neto de quem é, sentou-se diante do instrumento, abriu ambas as mãos e despejou ali, delicadamente, nada menos do que os dez dedos, num acorde que certamente teria despertado palmas do Arrigo Barnabé.

Não satisfeito, pôs-se o novel tecladista a repetir o acorde, ora mais à direita, ora mais à esquerda, marcando o compasso com o balançar da cabeça para este e para aquele lado, metrônomo humano sem a menor dúvida. Não bastasse isso, fechou seus belos olhos azuis, para que, como nos ensinam certos cantores (clique aqui), a visão das coisas materiais não lhe toldasse a inspiração interpretativa.

É claro que você não acredita em nada disso, mas no dia em que isso aparecer momentaneamente no Fantástico ou no YouTube, ad perpetuam rei memoriam, como diz o pai do infante a seus alunos, com que cara você ficará?

Eu poderia falar das curvas que ele faz com seu possante veículo, mas deixa isso prá lá. Até pretendia relatar agora o dia em que o José Francisco levou o filho à Faculdade de Direito, onde o pai leciona Direito Civil, e o rebento mostrou o propósito de dar uma aula sobre usucapião extraordinário, a julgar pela página do Código Civil que o garoto escolheu ao abrir aquele livrão, mas, diante de tua cara de descrédito, acho melhor parar por aqui. Eu poderia invocar mais uma vez o testemunho da avó paterna, mas você certamente contraditaria aquele testemunho e eu e ela não estamos aqui para sermos julgados. O futuro dirá quem de nós tem razão.