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Dinâmica constitucional

Temas de Direito Constitucional.

Marcelo Schenk Duque
Uma das partes mais importantes - e mais desrespeitadas - da Constituição Federal diz respeito ao dever de proteção do meio ambiente. Prevê o art. 225 que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Dificilmente se poderia pensar em redação melhor. Aqui temos um típico direito de terceira geração, com fundamento no constitucionalismo solidário. De caráter transindividual, a norma impõe ao poder público e aos particulares um verdadeiro dever de hierarquia constitucional. Mais do que isto, um dever de natureza intergeracional. A obrigação não se limita a garantir o bem-estar das pessoas que já habitam o planeta, mas, igualmente, das futuras gerações. A afirmação corrente de que o Brasil é um país respeitador do meio ambiente não passa de uma falácia. Um exemplo que aponta para esta realidade é a inadequação dos planos diretores da imensa maioria dos municípios brasileiros, além das falhas estruturais que minam a atuação efetiva dos órgãos competentes. As enchentes que devastaram regiões do sul do Brasil, em setembro de 2023, são apenas um dos indícios dos efeitos causados pelas mudanças climáticas, aliadas a uma cultura de omissões e desmandos de todos os tipos. Os terríveis impactos gerados por eventos catastróficos da natureza deveriam levar as autoridades e a sociedade a refletir sobre os rumos de uma vida com segurança. Não é o que costuma ocorrer. As tragédias se repetem, mudam apenas os lugares e as vítimas. Fruto de uma cultura de indiferença, de omissão das autoridades e de uma ilusão quanto a uma falsa zona de conforto. Os desastres naturais conectam-se a um duplo quadro de vulnerabilidades. O primeiro, físico, decorre de fenômenos climáticos; o segundo, de ordem social, da falência de políticas públicas1. Resta evidente que as vulnerabilidades físicas são potencializadas pelas vulnerabilidades sociais. Uma retroalimenta a outra. Quanto mais intensa for a desigualdade social, maior será a tendência a ocupações irregulares e à urbanização desordenada, que geram um processo crescente - por vezes irreversível - de degradação ambiental, catalisador de desastres naturais de diferentes proporções. Aqui se insere a chamada era do "direito dos desastres".2 Uma disciplina que busca verificar em que medida o sistema jurídico possui mecanismos para lidar com os desafios e consequências geradas pelos desastres ambientais gerados pela ação e omissão humanas. Atribui-se ao direito a função de fornecer um hígido ambiente regulatório de natureza preventiva e repressiva. Uma perspectiva de aproximação do aspecto jurídico com a dinâmica da política, a partir da formulação de standards mínimos de regulação. As decisões que se baseiam em medidas preventivas acabam por se revestir de inegável natureza política, considerando realidades orçamentárias e de percepção de prioridades locais e regionais distintas, dentro da ótica transfederativa. Focado no princípio da subsidiariedade, núcleo da federação, a solução dos problemas começa pelas ações locais. As catástrofes naturais que decorrem da falta de cuidado com o meio ambiente proporcionam a violação de direitos fundamentais básicos de um elevado grupo de pessoas. Decorrem da omissão prolongada das autoridades, da falência e da inadequação das políticas públicas vigentes. Não é exagerado falar que vivemos em uma espécie de estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental. Maurice Blanchot, quando escreveu a obra "A escrita do desastre" (The Writing of the Disaster), no ano de 1986, já profetizava que pensar nos desastres ambientais, com a dúvida se irão ou não ocorrer, equivaleria a não ter mais nenhum futuro para se pensar nisto.3 Há que ser dar um basta nas omissões, sobretudo em face da atuação preventiva e repressiva por parte dos poderes públicos. A realidade de grande parte dos municípios brasileiros aponta para um conjunto capilarizado de más decisões sobre a ocupação do solo. Regulações ineficazes. Políticos desconectados do interesse público. A isto se soma a inaceitável omissão das autoridades judiciais para combater a elaboração de planos diretores absolutamente desconectados de questões urbanísticas e ambientais elementares. Um cenário favorável às vulnerabilidades que culminam em desastres ambientais. Os esforços fiscalizatórios são inegáveis instrumentos preventivos, pois agem em momento anterior à ocorrência de catástrofes. Infelizmente, uma realidade distante da maioria dos municípios brasileiros. Lamentável é a constatação de que este déficit não decorre apenas de carências estruturais. A fiscalização e o planejamento adequados também costumam esbarrar no poder econômico, que influenciando os núcleos de poder, blinda construções irregulares ou faz adaptar as normas às demandas corporativas. Basta observar o modo como tem ocorrido o parcelamento do solo nas cidades litorâneas brasileiras, um dos tantos exemplos de má gestão. Fica cada vez mais evidente, dentro da lógica exposta por Rousseau na célebre carta a Voltaire, em 1756, ocasião em que debatiam as causas do terremoto e da enchente que destruíram Lisboa, em 1755, que as catástrofes não decorrem exclusivamente das forças da natureza, mas sim da própria sociedade. A lógica de Rousseau se aplica como uma luva aos dias atuais: não se deve tornar a natureza ou Deus responsáveis pelos males sofridos pelos homens. Eles os infligem a si próprios.4 Tudo na lógica da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos. Vale dizer: em matéria de danos ao meio ambiente os homens criam seus próprios infortúnios e a eles cabe evitá-los. __________ 1 FARBER, Daniel A.; CARVALHO, Délton Winter de. (Orgs.) Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. 2 ed. Curitiba: Appris, 2018, p. 73. 2 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 3 BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. Lincoln: University of Nebraska: Press, 1986, p. 2. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Lettre à M. de Voltaire. 
Retomo o tema da democracia defensiva, a partir da palestra ministrada no TSE, no dia 16/08/2023, pelo juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ.1 Conforme analisado na coluna anterior,2 as democracias enfrentam o dilema em torno da questão: o Estado deve garantir liberdade aos próprios inimigos da liberdade? À Constituição cabe a tarefa de configurar instituições e instrumentos destinados a evitar que a liberdade constitucionalmente garantida seja deturpada pelos seus inimigos, voltados a instituir um sistema ditatorial. Esta seria a gênese da democracia defensiva, um regime capaz de se defender dos inimigos que, abusando das liberdades, conspiram para eliminá-las. Embora seja um tema atual, não é novo. A doutrina há muito alerta que o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico - como as liberdades - não pode servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Se por um lado o uso abusivo das liberdades tem que ser combatido, por outro, nem sempre fica claro o momento a partir do qual o uso se torna, de fato, abusivo. Em nome da democracia defensiva abusos também podem ser praticados, em particular quando a liberdade de expressão é restringida de forma desproporcional. Christ observa que o risco, que não pode ser desconsiderado, é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Advogar por uma democracia defensiva não implica desconsiderar que ela, como qualquer construção jurídica, não está livre de deturpações. No livre mercado de ideias elas ocorrem, por exemplo, quando se recorre aos instrumentos da democracia defensiva para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Toda liberdade, quando restringida de forma excessiva, aponta para a violação de pilares elementares do constitucionalismo, passando a conflitar com a própria evolução civilizatória. Em cada época mudam os desafios em face de novos riscos. Aos operadores jurídicos cabe a complexa tarefa de mensurar as ameaças, na busca de parâmetros equilibrados e seguros, aptos a definir os contornos aceitáveis do exercício das liberdades individuais e coletivas. A defesa da democracia defensiva não pode se tornar cega ao ponto de subverter a sua própria razão de ser. Ela só deve ser empregada para conter aqueles que, de forma clara, agem como inimigos de uma ordem fundamental livre e democrática. São estes que devem ter as suas opiniões excluídas do confronto público. A aplicação demasiada da democracia defensiva tende a gerar os mesmos males que ela própria se volta a combater. Christ aponta alguns parâmetros que contribuem para o controle de excessos. 1. A democracia defensiva só pode ser empregada para proteger princípios básicos centrais indispensáveis ao Estado constitucional liberal. 2. É necessário que exista um limiar mais elevado de risco a partir do qual os instrumentos são aplicados. 3. A maioria dos instrumentos fica sob o manejo exclusivo do Tribunal Constitucional. 4. Os instrumentos da democracia defensiva devem estar claramente definidos no que tange os seus efeitos jurídicos, de modo a combater o arbítrio. A compreensão destes parâmetros é fundamental para que não se caia no que se costuma denominar de declive escorregadio. Boas intenções podem ser perigosas quando manejadas sem cuidados mínimos. Bons remédios, quando ministrados fora da dosagem recomendada, equiparam-se ao veneno que querem neutralizar. Os instrumentos da democracia defensiva voltam-se a combater o uso abusivo das liberdades, visando a resguardar bens caros à ordem constitucional. Uma resposta à noção deturpada de democracia, que de forma manifesta relativiza os valores da Constituição, ao ponto de esvaziar seu conteúdo. As medidas devem estar limitadas à proteção de princípios fundamentais elementares, indispensáveis à manutenção de uma ordem fundamental livre e democrática. Christ lembra que o TCF, desde o início de sua atuação, buscou determinar quais seriam os conteúdos mais sensíveis desta ordem. Destacam-se duas decisões históricas do tribunal, relacionadas ao tema da proibição do funcionamento de partidos políticos, aspecto que é previsto na Lei Fundamental alemã (art. 21, II, 2), mas raramente utilizado. Até hoje, somente dois requerimentos desta natureza na Alemanha obtiveram êxito junto ao TCF, ambos na década de 1950. O primeiro partido que teve o seu funcionamento proibido pelo TCF foi o Partido Socialista do Reich - SRP (Sozialistische Reichspartei), por força de decisão tomada no ano de 1952.4 O segundo foi Partido Comunista da Alemanha - KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), no ano de 1956.5 Em ambos os casos, com o contexto histórico então vigente, o TCF visualizou a excepcional possibilidade de proibir a atuação destes partidos a partir da noção de ordem fundamental. A ordem que, excluindo qualquer forma de dominação arbitrária e violenta, representa um Estado de Direito baseado na autodeterminação do povo, conforme a vontade da respectiva maioria, na liberdade e na igualdade. Desde então, ligou-se a noção de ordem fundamental livre e democrática à manutenção da dignidade humana como valor supremo, à qual se somam os direitos fundamentais, principalmente o direito à vida e ao livre desenvolvimento da personalidade. Integram, também, a base da ordem fundamental a soberania popular, a separação dos poderes, a responsabilidade do governo, a legalidade da Administração Pública, a independência dos tribunais, o pluripartidarismo e a igualdade de chances para todos os partidos políticos, com o direito à formação nos moldes constitucionais e ao exercício de uma oposição. Da mesma forma, o princípio democrático é parte integrante da ordem fundamental livre e democrática e, assim, um bem tutelado pela democracia defensiva. É ele que garante ao cidadão o direito de escolher seus representantes, de forma pessoal e objetiva, por meio de eleições livres e igualitárias. Imprescindíveis a um sistema democrático são a participação igualitária de todos os cidadãos no processo de formação da vontade política e a responsabilidade do poder público perante o povo. Por fim, a vinculação dos poderes estatais à lei e ao direito, o controle dessa vinculação por tribunais independentes e o monopólio estatal do poder também integram a ordem fundamental livre e democrática. Todos estes princípios e garantias são bens tutelados pela doutrina da democracia defensiva. A sua incondicional proteção justifica a prática de restrições à liberdade. A ideia se volta ao combate de uma animosidade constitucional organizada (organisierte Verfassungsfeindschaft), servindo de proteção constitucional preventiva.6 Portanto, é a noção de ordem fundamental que parece pautar os limites do emprego da teoria da democracia defensiva, a partir da eleição de um rol de bens constitucionais, dignos de proteção. Até aí, nada está dito quanto à configuração de ações concretas capazes de ameaçar, efetivamente, esta ordem. Vale dizer, qual é o grau de risco concreto que justifica a restrição de liberdades constitucionalmente asseguradas? Não se pode dissociar o emprego dos instrumentos da democracia defensiva à noção de risco efetivo, sob pena de um instrumento idealizado para salvaguardar a liberdade se tornar seu algoz. Estes instrumentos podem se constituir em uma das armas mais afiadas - e de dois gumes - do Estado democrático de direito contra os seus inimigos organizados. Destinam-se a combater os riscos que emanam da existência de grupos com tendências anticonstitucionais e as suas típicas possibilidades de ação associativa.7 Um ponto que leva à reflexão, de que a mera lógica de combater abusos não pode justificar a prática de outros tipos de excessos. Encontrar o ponto de equilíbrio no emprego das liberdades, a partir de diferentes visões de mundo e ideológicas, se constitui um dos temas mais difíceis para a democracia contemporânea. Um dilema que só será resolvido quando as instituições democráticas, cientes de seus deveres republicanos, se pautarem pelos limites conferidos pela própria ordem que devem defender. Do contrário, teremos omissão ou a lógica do arbítrio. __________ 1 Ciclo de palestras organizado pela Embaixada da Alemanha e pelo Fórum Juridico Brasil-Alemanha, coordenado por Karina Nunes Fritz.  2 Disponível aqui. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 4 BVerfGE 2, 1 5 BVerfGE 5, 85. 6 Schlaich, Klaus; Korioth, Stefan. Das Bundesverfassungsgericht. Stellung, Verfahren, Entscheidungen. Ein Studienbuch. 8 Auf. München: Beck, 2010, Rdn. 340. 7 BVerfGE 144, 20 (.º1 item da ementa).
No dia 16/8/2023, o juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ, proferiu uma palestra no TSE sobre o tema da democracia defensiva,1 organizada pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha.2 O assunto é atual e desperta diferentes perspectivas, em cenários nos quais condutas extremistas de todos os tipos crescem. A pergunta central proferida pelo magistrado alemão na conferência foi: pode o Estado garantir liberdade aos inimigos da liberdade? Ela foi descrita como um verdadeiro dilema que as democracias livres enfrentam ao redor do mundo. Christ iniciou o seu pronunciamento com uma manifestação que para muitos é surpreendente. Segundo a jurisprudência do TCF, a liberdade de expressão também pode ser invocada por aqueles que rejeitam valores fundamentais da Constituição. Uma das linhas construídas pela jurisprudência protege opiniões que visam à extinção da democracia liberal, desde que manifestadas pacificamente. Uma construção que se ampara na crença do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias. Ou seja, desde que afastados meios agressivos combativos, a liberdade de se expressar proporciona uma ampla esfera de proteção. Todavia, Christ pondera que esta visão somente faz sentido quando a Constituição se mostra capaz de desenvolver instrumentos aptos a proteger a liberdade contra os inimigos da liberdade. Uma ideia nitidamente baseada na noção de riscos, pois se por um lado a liberdade pode servir para aniquilar a própria liberdade, por outro a sua contenção demasiada pode chegar ao mesmo resultado. Ciente desta realidade, Christ define a teoria da democracia defensiva a partir das seguintes observações. A ordem estatal prevista na Constituição parte do pressuposto de que a democracia, a liberdade e o estado de direito devem estar permanentemente garantidos e protegidos. Este pressuposto justifica o fato de que a Constituição não pode conceder liberdades para extinguir a ordem constitucional. Destaca-se o argumento de que o exercício da liberdade não pode se tornar um risco para a própria liberdade. A ideia inerente ao conceito de democracia defensiva é que não se pode tolerar condutas que visam a ameaçar, prejudicar, destruir a ordem constitucional ou a existência do próprio Estado. Trata-se da consolidação de um princípio que, segundo o TCF, deriva da expressão da vontade político constitucional consciente de solucionar um problema típico das democracias: como tolerar diferentes concepções políticas e o compromisso com valores fundamentais tidos como invioláveis em um Estado de direito? Nesta perspectiva, a necessidade de proteção deve agir frente aos ataques advindos do próprio Estado, como também por parte da sociedade. Algo semelhante a uma proteção multidirecional, típica das concepções de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais.3 Foi destacado que a Alemanha, em particular, tem razões histórias claras para o desenvolvimento de uma teoria da democracia defensiva. Assume destaque a dolorosa experiência em torno da violação dos princípios mais elementares da existência humana durante o período de terror imposto pelo regime nacional-socialista. Foi esta terrível experiência que levou à construção de uma institucionalidade voltada à limitação do poder, com parâmetro na garantia de inúmeros direitos fundamentais. Um dos pontos altos da palestra foi a observação de que é difícil entender os limites da democracia defensiva sem que se olhe para o passado. Christ apontou que a República de Weimar serviu de contraste para a promulgação da Lei Fundamental de 1949. Aquele modelo fora construído a partir de uma noção positivista, que se vinculava muito mais ao método jurídico, do que para seus objetivos centrais. E foi exatamente a aplicação deturpada de um método que, ao se impor, levou à quebra dos pilares elementares à civilização. O resultado foi a construção de uma democracia frágil, que relativizada valores. Os intérpretes da Constituição de Weimar partiam do pressuposto de que uma democracia, para permanecer fiel a si mesma, também deveria tolerar movimentos voltados à destruição da própria democracia. "Era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse". Uma estratégia perigosa, que não foi capaz de resistir aos anseios totalitários. Uma concepção de Estado presa a um relativismo axiológico, aliada à ausência de proteção perante maiorias parlamentares antidemocráticas, no bojo de uma Constituição flexível, levou, naquele momento histórico, a uma erosão do tecido constitucional. Na época, vigorava a noção, baseada na doutrina de Gerhard Anschütz, de que a Constituição não estaria acima do Poder Legislativo, mas à sua disposição. Algo que, segundo Christ, estaria sofrendo uma espécie de reedição em vários países, por força de movimentos políticos que visam a afrouxar a densidade do controle exercido pelos tribunais constitucionais no interesse de uma suposta vontade popular. Percebe-se que a partir da história vivida, projeta-se um arcabouço de concepções voltadas ao presente. Um aspecto sensível, quando se leva em conta que, por vezes, os próprios tribunais constitucionais também contribuem para desestabilizar os sistemas democráticos, quando se deixam pautar por condutas ativistas em grau incompatível com a separação dos poderes. Um tema, aliás, muito debatido entre nós. Feita esta observação, retomo o ponto central levantado por Christ: como é possível se proteger contra abusos praticados em nome de uma democracia defensiva? Dependendo da forma como se emprega a noção de democracia defensiva, pode surgir uma restrição desproporcional à liberdade de expressão e a outros relevantes direitos fundamentais ligados à própria noção de liberdade. O risco é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Portanto, a própria noção de democracia defensiva não está livre de abusos e deturpações. Eles ocorrem, particularmente, quando a teoria é empregada para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Um fenômeno comum em um universo de narrativas votadas à disseminação de visões parciais de fatos, muitos deles com propósitos tão ou mais obscuros do que aqueles que aparentemente visam a combater. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.
Oliver Wendell Holmes, um dos juízes mais célebres que passou pela Suprema Corte Norte-americana, afirmou: "quando os ignorantes são ensinados a duvidar, eles não sabem no que podem acreditar com segurança. E me parece que neste momento precisamos mais de educação no claro do que de investigação do obscuro".1 Enquanto a qualificação da representação política não for o foco do sistema eleitoral, não se avança. A democracia é um regime de governo que parece estar sempre posta à prova. A dura tarefa de zelar pela manutenção das instituições democráticas fica dificultada quando as próprias instituições deixam de cumprir satisfatoriamente o seu papel. Na calada da noite do dia 14/06/2023, em votação relâmpago, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2.720/2023, que criminaliza a recusa, por parte de instituições financeiras, de abertura ou manutenção de contas e concessão de crédito em favor de pessoas politicamente expostas, denominadas de PEPs.2 O PL será remetido ao Senado, para deliberação. Um olhar atento sobre o projeto ajuda a compreender o senso de distanciamento da realidade por parte da classe política. A versão aprovada pela Câmara prevê que detentores de altos cargos nos três poderes, parentes e até mesmo pessoas ligadas a estas autoridades, não podem ser discriminados por instituições financeiras pelo fato de responderem a processos ou investigações diversas. A pena prevista será de reclusão de 2 a 4 anos e multa para quem negar, imotivadamente, a abertura de conta, sua manutenção ou a concessão de crédito. O raio de proteção não poderia ter sido maior. A partir das PEPs são alcançadas as pessoas jurídicas das quais elas participam, os familiares até o segundo grau e os seus estreitos colaboradores. Isto mesmo, colaborar estreitamente com uma pessoa politicamente exposta garante proteção extra contra discriminação. Como a definição de PEPs é muito ampla, já que parte do Chefe de Estado e de Governo, passando por oficiais generais, políticos diversos, membros do Judiciário, Tribunal de Contas e do Ministério Público, diretores de entidades da administração indireta, até chegar nos vereadores, torna-se difícil fazer uma estimativa, mesmo que aproximada, do total de beneficiados. Para a identificação das PEPs deverá ser consultado o Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP), disponível no Portal da Transparência3. Ao ponto. Toda discriminação tem que ser combatida. O fato de ser político ou detentor de alto cargo na República não significa que possa ser discriminado. A questão é a contradição, que vem escancarada na exposição de motivos do PL aprovado pela Câmara. Lá consta que a discriminação se apresenta como uma nefasta realidade que tem permeado as diversas esferas da sociedade, gerando prejuízos e inegáveis violações aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Menciona, ainda, que o preconceito, que se origina de conclusões negativas e intolerâncias injustificáveis quanto a certo conjunto de indivíduos, tem potencial lesivo, pois viola direitos humanos.4 Abstratamente, difícil discordar. A pergunta que fica é: por que a mesma Câmara dos Deputados, ora tão preocupada com o preconceito das PEPs, reluta em defender parcelas muito mais vulneráveis da sociedade? Por que até hoje não tratou de aprovar um PL que criminaliza a homofobia e a homotransfobia? Quantas medidas legislativas poderiam ser tomadas para combater, por exemplo, o racismo estrutural na sociedade, a discriminação contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência ou os povos originários? Ou quem sabe, por que não se aprova o fim de inúmeras regalias e supersalários, que por serem custeados pelos cofres públicos em benefício de quem já é mais favorecido, acabam por prejudicar - discriminar - quem é menos? Sem prejuízo de tantos outros exemplos que poderiam ser trazidos, a verdade vem à tona. O PL das PEPs nada mais é do que a expressão da velha tática de autoproteção. Uma blindagem, que escancara a fragilidade da República. Ao se colocar políticos e detentores de altos cargos públicos, juntamente com as pessoas próximas que lhes cercam, em patamar de vulnerabilidade semelhante ao de parcelas sofridas da população, escancara-se não apenas a falta de razoabilidade, como também a de empatia social. Mais um entre tantos privilégios que nos afastam da noção republicana, ofuscando o senso elementar de que o arbítrio desconhece e desafia o direito5. O quadro se agrava quando se leva em conta a prática de reiteradas omissões legislativas de natureza afirmativa em favor de quem, de fato, é vulnerável. Rui Barbosa, na célebre Oração aos Moços, pontuou: "vulgar é o ler, raro o refletir"6. Não se torna, a golpes de legislação, vulnerável quem não é, exceto quando o tema é a autoproteção. Quando se cria uma pseudofragilidade das PEPs abrem-se espaços para se relativizar quaisquer situações. O recurso excessivo para o que venha a ser preconceito encurta o caminho para a banalização e, consequentemente, para um déficit de proteção. Dito de outro modo: ao se focar no que não é, não se enxerga o que é. Enquanto o Brasil não adotar um sistema eleitoral distrital, que aproxime, efetivamente, o eleitor do eleito, com a possibilidade de recall, nas hipóteses de distanciamento de compromissos éticos mínimos, dificilmente nos livraremos destas e de outras tantas blindagens. Até lá, bem que se poderia criar a figura do eleitor politicamente exposto - EPEs. Seria, ao menos, um consolo. __________ 1 HOMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Selections from the Letters, Speeches, Judicial Opinions, and Other Writings of Oliver Wendell Holmes, Jr. Chicago and London: University of Chicago Press, 1996, p. 146. "When the ignorant are taught to doubt they do not know what they safely may believe. And it seems to me that at this time we need education in the obvious more than investigation of the obscure". 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 CIRNE Lima, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 6  Disponível aqui.
sexta-feira, 2 de junho de 2023

Presidencialismo de joelhos

A crise na aprovação da medida provisória (MP 1.154/2023) que definiu a organização dos Ministérios do Governo Lula1 é o retrato da falência do sistema presidencialista de governo. A MP previa 31 ministérios, além de seis órgãos com status de ministério, totalizando 37 ministros. A Câmara dos Deputados introduziu modificações no organograma ministerial definido pelo Poder Executivo, em particular na pasta responsável pelo meio ambiente, que teve suas competências esvaziadas. Parte das competências originalmente previstas pelo governo foram realocadas para outras pastas. O COAF, unidade de inteligência para prevenção e combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, originalmente incorporado ao Ministério da Fazenda, que a partir de agora deverá retornar à alçada do Banco Central. A vigência da MP encerraria no final do dia 01/06/2023. A Câmara dos Deputados aprovou o texto no dia 31/05/2023, obrigando o Senado, horas depois, a converter a MP em lei, de forma relâmpago, no último dia do prazo, sob pena de comprometer a estrutura ministerial. Ao ponto, pois. Como um sistema de governo pode funcionar a contento, quando o Presidente da República eleito não dispõe, sequer, do poder de decidir com quantos ministérios quer governar? Dito de outro modo: o sistema político vigente permite a eleição de um chefe de governo que não tem poder para estabelecer, por conta própria, a estrutura do seu ministério, já que tal decisão toca, em última análise, ao Congresso Nacional. Trata-se de debilidade - ou incoerência - considerando que a Constituição Federal prevê que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (art. 76 CF) e que, dentre as tarefas dos Ministros, está a de praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente (art. 87, § único, IV CF). Os ministérios são órgãos de assessoramento direto da Presidência da República. Isso faz com que uma relação de confiança com o chefe do Executivo seja fundamental na boa condução dos trabalhos. A extensão da relação de confiança resta subtraída pelo Congresso Nacional, que pode decidir, soberanamente, o número de pastas e o tipo de atribuições que cada uma deve possuir. Apesar de o Presidente da República ser o chefe da Administração federal, quem determina a sua extensão, e até mesmo pormenores de competências, é o Poder Legislativo. Pode-se até não concordar com decisões do governo do dia, isto faz parte da democracia. Contudo, impedir que um governo democraticamente eleito decida com quantas pastas quer governar, bem como as atribuições de cada uma, parece incompatível, em demasia, com a chefia da Administração. Temos, de verdade, um sistema presidencialista de governo? Ao menos um que funcione? Há muito se percebe que o presidencialismo brasileiro está coberto de disfuncionalidades. A começar pelo fato de que a pessoa que é eleita Presidente da República não conta com maioria política para governar. Elege-se o(a) Presidente da República, cujo partido não possui maioria nas Casas Legislativas para levar à frente o seu programa de governo. Surge um nó muito difícil de desatar. O sistema político ancorado na Constituição não garante ao eleito boas chances de governabilidade dentro de uma conjuntura de estabilidade política. A Constituição atribui ao Presidente da República a Chefia de Governo (juntamente com as Chefias de Estado e da Administração) ao mesmo tempo em que confere ao Congresso Nacional o poder para aprovar, reprovar ou até mesmo bloquear grande parte dos projetos de governo, bem como os assuntos mais relevantes para o país. Na prática, o Poder Legislativo tem enorme primazia de decisão em relação ao Executivo. Os cidadãos são levados a acreditar que o poder de decisão e influência do Presidente da República nas grandes questões nacionais é muito maior do que, de fato, é. O motivo que leva a esta má percepção é que, inegavelmente, por força da configuração político-institucional vigente, cabem aos Deputados e Senadores as decisões sobre a maior parte dos assuntos relevantes para o país. A questão que se coloca é: como se governa sem apoio político majoritário no Congresso Nacional? A resposta, do ponto de vista pragmático, é a seguinte: neste disfuncional sistema, ou se compra apoio político majoritário ou não se governa. O que varia é a moeda de troca. As mais comuns, para ficar dentro do quadro da aparente institucionalidade, são o loteamento dos milhares de cargos na Administração e a irracional concessão de ementas parlamentares em troca de um apoio político volátil e transitório. Não é por menos que os órgãos e imprensa, na questão da crise da referida MP, noticiaram: em apenas um dia, o governo liberou R$ 1,7 bilhão de reais em emendas parlamentares, cujos valores foram empenhados quando havia a expectativa de votar a MP que reorganiza os Ministérios. Detalhe: grande parte dessa verba foi para os partidos do chamado Centrão.2 Daí o título desta coluna: presidencialismo de joelhos. Ou cede, ou não governa. Para alguns, isto faz parte da democracia. Para outros, dentre os quais eu me incluo, representa grande disfunção, já que a governabilidade fica à mercê de práticas contrárias ao interesse público, normalizando a irracionalidade do emprego de verbas escassas e extremamente relevantes para o desenvolvimento nacional. Em um Estado democrático de direito o exercício do poder só se legitima quando dirigido à obtenção dos fins, que justificam as atribuições de competência no marco da Constituição.3 Daí se compreende que um sistema de governo não é um fim em si mesmo, já que a sua manutenção deve estar orientada ao bem comum e à realização dos objetivos constitucionais permanentes. Vale dizer, o arbítrio desconhece e desafia o direito.4 O presidencialismo de coalizão, na clássica expressão cunhada por Sérgio Abranches5, está falido. Grande parte das pessoas que apoia o sistema repousa na figura mística do ser presidencial. A autoridade que veste a faixa, que toma posse em carro aberto, que discursa à nação. A defesa de um sistema, quando fica preponderantemente orientada aos atributos pessoais de quem o exerce, passa a se tornar irracional. Nunca é demais lembrar que uma Constituição não é apenas uma compilação de regras, por meio das quais os órgãos estatais se relacionam. Ela é, em primeiro lugar, o autoentendimento de um povo acerca de sua existência política e a afirmação dos traços essenciais da ordem social.6 Está na hora de compreender que a governabilidade passa, inegavelmente, pelo Legislativo, de modo que as instituições democráticas que levam à construção do Congresso Nacional devem ser objeto de grande esforço de aprimoramento. Várias são as instituições que podem potencializar ou desfigurar os sistemas de governo. Não há como negar que os mecanismos de solução de crises no presidencialismo são muito complexos, já que as crises se retroalimentam pela lógica do próprio sistema. Um quadro de dilemas permanentes, que ameaçam o próprio Estado. Urge a implantação de um novo sistema de governo, apto a funcionar com base na realidade parlamentar brasileira. Voltado à funcionalidade, com características que permitam governar, com mais eficiência, livre do clientelismo político. Neste quadro, blindar a Administração contra o loteamento de cargos públicos é medida irrenunciável, bem como a racionalização do emprego do orçamento público, oposta à sistemática atual de distribuição de emendas parlamentares no varejo. Somente instituições políticas bem configuradas são capazes de sufocar as más práticas, ao passo que o inverso as potencializa. Vamos debater o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, cientes de que o atual modelo não mais se mostra suportável. É isso, ou seguir levando todos os Presidentes a se ajoelharem perante o Congresso, até mesmo para escolher com quantos ministérios querem governar. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 151. 4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 5 ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, p. 5ss. 6 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 51.
Caio Tácito, em escrito de 1959, advertia: o equilíbrio e a estabilidade socais dependem, cada vez mais, da eficiência e moralidade da administração pública, cujas repercussões atingem, constantemente, os interesses de toda a sociedade1. A frase não merece retoques. A União Europeia deu um importante passo para regulamentar e conter o poder das plataformas digitais. O Regulamento de Serviços Digitais (RSD), publicado no dia 25/04/2023, passa a listar um conjunto de plataformas digitais2 e de serviços de busca na internet3 que passam a se submeter a uma rígida regulamentação. A ideia é reduzir o risco sistêmico de utilização destes serviços, inclusive por meio da moderação de conteúdos. Inicialmente, o alvo da medida são os serviços que contam, anualmente, com mais de 45 milhões de usuários dentro da totalidade dos 27 países que compõem a União Europeia4. A regulamentação está inserida no marco de um amplo pacote legislativo que visa criar um espaço digital seguro, com foco no respeito aos direitos fundamentais dos usuários e na criação de condições de operação equitativas para que as empresas possam promover a inovação, o crescimento e a competitividade, não apenas na Europa, como também em nível mundial5. A matéria é tratada sob a perspectiva de serviços e mercados digitais, em que dois diplomas legais se destacam. O primeiro é o ato legislativo sobre os serviços digitais (DSA)6 e o segundo é ato legislativo para o mercado digital (DMA)7. Na sequência da sua designação, as empresas terão um prazo de quatro meses (portanto, até 25/08/2023) para cumprir, na íntegra, o pacote das novas obrigações definidas pelo RSD. E não são poucas. Ganha destaque uma série de obrigações, como a de expor algoritmos aos órgãos reguladores - a "caixa preta" das empresas de tecnologia -, auditorias anuais e o dever de tomar providências voltadas a incrementar a transparência na política de publicidade dirigida aos usuários. Dentre as medidas, destacam-se8: 1. Maior capacitação dos usuários: Os usuários obterão informações claras sobre as razões subjacentes à recomendação de determinados conteúdos e terão o direito de se autoexcluírem dos sistemas de recomendação, com base na definição de perfis. Os usuários devem poder denunciar facilmente conteúdos ilegais e as plataformas têm que tratar essas denúncias de forma diligente. Os anúncios publicitários exibidos não podem basear-se em dados sensíveis do usuário. Segundo o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) vigente na União Europeia, dados sensíveis abarcam informações pessoais que revelem a origem racial ou étnica, opiniões políticas e convicções religiosas ou filosóficas, filiação sindical; dados genéticos, dados biométricos tratados simplesmente para identificar um ser humano; dados de saúde, de vida sexual ou, ainda, da orientação sexual da pessoa9. Identificar todos os anúncios e informar os usuários sobre quem os promovem. Fornecer um resumo dos seus termos e condições, facilmente compreensíveis e em linguagem simples, nas línguas dos países em que operam. 2. Forte proteção dos menores de idade: As plataformas terão de rever a concepção dos seus sistemas para garantir um nível elevado de privacidade, segurança e proteção dos menores. A publicidade direcionada com base na definição de perfis deixa de ser permitida no caso das crianças. Fornecer às autoridades estimativas de riscos especiais, inclusive no que diz respeito aos efeitos negativos na saúde mental deste grupo de usuários. Rever a concepção dos seus serviços, incluindo em suas interfaces recomendações, termos e condições, a fim de atenuar estes riscos. 3. Moderação de conteúdo mais diligente, com menos desinformação: As plataformas e os motores de pesquisa devem tomar medidas para fazer frente aos riscos associados à transmissão de conteúdos ilegais e aos efeitos negativos na liberdade de expressão e de acesso à informação. Dispor de termos e condições claros e aplicá-los de forma diligente e não arbitrária. Adotar um mecanismo que permita aos usuários sinalizar conteúdos ilegais e, ao receber as notificações, devem agir de forma ágil. Analisar os seus riscos específicos e adotar medidas de atenuação. No combate à desinformação, devem dispor de mecanismos que evitem o emprego inautêntico dos seus serviços, como, por exemplo, por meio de robôs. 4. Maior transparência e responsabilização: As plataformas devem assegurar que suas estimativas de riscos e sua conformidade com todas as obrigações do RSD sejam objeto de auditorias externas e independentes. Facultar aos investigadores acesso aos dados publicamente disponíveis. Publicar repositórios de todos os anúncios exibidos em sua interface. Publicar relatório de transparência sobre as decisões de moderação de conteúdo e de gerenciamento dos riscos. Uma das medidas que gera grande expectativa dos usuários e órgãos reguladores diz respeito ao que se costuma denominar de governança algorítmica. Algoritmos são o "cérebro" das plataformas digitais. São eles que tomam as decisões de qual informação chega até nós, quem se conecta com quem e, dependendo da forma como são programados, podem direcionar conteúdos e gerar informações de forma preconceituosa, apta a violar inúmeros direitos fundamentais. Para fazer cumprir o pacote legislativo, foi criado o Centro Europeu de Transparência Algorítmica (ECAT)10, que será composto por uma equipe interdisciplinar de cientistas de dados, especialistas em inteligência artificial, cientistas sociais e juristas. A função deste centro é fornecer à Comissão Europeia conhecimentos técnicos e científicos para garantir que os sistemas algorítmicos utilizados pelas empresas digitais com grande número de usuários cumpram os requisitos de gestão, mitigação e transparência de riscos previstos na legislação europeia. A sua atuação será decisiva para diminuir a discricionariedade das plataformas digitais, que é considerado o calcanhar de Aquiles da regulação. Dentre as competências, situa-se a realização de análises técnicas dos algoritmos, visando a avaliar o seu funcionamento, de modo a formar conhecimento que embase melhores práticas para mitigar riscos. Fala-se na criação de um ecossistema de aplicação digital, reunindo experiências de vários setores relevantes. É inegável que a Europa avança com velocidade por meio de regulamentos que tocam em pontos sensíveis do modelo de negócios das big techs. É muito cedo para saber se as gigantes do mundo digital irão, de fato, se curvar aos regulamentos, pressionar por suavizações, ou até mesmo abandonar o mercado europeu. É fácil perceber que a União Europeia está muito à frente do Brasil em matéria de regulação e prevenção de riscos no ambiente digital. Muitas das prognoses feitas pelos europeus não são sequer objeto de consideração pelas autoridades brasileiras. Isso não significa que os esforços legislativos europeus conduzirão, necessariamente, a um mercado seguro, isento de preocupações. Contudo, o simples fato de compreender que as plataformas digitais não mais podem atuar em um espaço sem regulamentação e que devem assumir responsabilidades na exata proporção dos riscos que geram, representa um grande avanço. O tempo e a experiência hão de revelar as correções necessárias, sobretudo em face da interpretação de conceitos vagos. Eis o grande desafio: como interpretar expressões como riscos especiais, efeitos negativos, forma diligente e não arbitrária e a própria noção de desinformação? Um dos maiores problemas de se trabalhar com conceitos abstratos, passíveis de preenchimento valorativo, é que eles passam a fomentar o que se costuma denominar de voluntarismo dos órgãos de controle. A tarefa regulatória consiste em promover um ambiente de regulação que não seja um fim em si mesmo, mas sim um instrumento para se transitar com segurança no mundo digital, em que a transparência se afirme como o grande vetor de atuação dos atores envolvidos. Ao Brasil cabe se livrar da imaturidade política e estudar, tecnicamente, a iniciativa europeia. Não para copiá-la cegamente, mas para verificar em que medida pode inspirar o nosso modelo regulatório, na busca de algo que deveria unir a todos os povos: a defesa dos direitos fundamentais das partes envolvidas. __________ 1 TÁCITO, Caio. O abuso de poder administrativo no Brasil. (Conceito e Remédios). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959, p. 11. 2 Alibaba AliExpress, Loja Amazon, AppStore da Apple, Booking.com, Facebook, Google Play, Google Maps, Google Shopping, Instagram, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, TikTok, Twitter, Wikipédia, YouTube e Zalando. 3 Bing e Google. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Disponível aqui.   10 Disponível aqui.  
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos de grande envergadura, que incluem a proteção da vida e contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A previsão consta, expressamente, no art. 227 da Constituição Federal. Fosse este direito respeitado, seria difícil encontrar outro lugar melhor para viver, considerando a beleza da sua construção. Infelizmente, como costuma ocorrer com outras normas constitucionais relevantes, a proteção das crianças e adolescentes trava na falência de políticas públicas, na eleição de outras prioridades e na omissão reiterada das autoridades. A onda de violência praticada em creches e escolas pelo país deveria servir de alerta para repensarmos muitas coisas. A começar pelo respeito à Constituição. Em nenhuma outra passagem o texto constitucional emprega a expressão "absoluta prioridade". Somente o faz, quando se ocupa da proteção deste grupo vulnerável: crianças, adolescentes e jovens. Isto tem enorme significado para a definição e correção das políticas públicas, bem como para a responsabilização dos que negligenciam tal dever. Ela não pode ser interpretada como mero conselho ou intenção. Trata-se de comando imperativo, apto a gerar consequências. Significa que, ao menos sob o prisma constitucional, o agir dos poderes públicos deve convergir, em primeiro lugar, para a proteção deste grupo. Os crimes que vêm ocorrendo nas escolas brasileiras atestam, infelizmente, que a absoluta prioridade não passa de uma folha de papel, no sentido de uma autêntica concepção sociológica de Constituição, que cede aos fatores reais de poder na sociedade1. Há que se mudar, imediatamente, o quadro. Não há como manter o marco civilizatório às margens da Constituição. Ignorar o pacto constitucional implica se afastar do porto seguro, onde a instituição e o exercício do poder são regulamentados e contidos2. Estamos diante de um, dentre vários exemplos, de negligência de um dever de proteção estatal de máxima hierarquia. Um dos recortes que o tema permite diz respeito à necessidade de regulamentar as redes sociais, de forma a prevenir violência nas escolas. Poucos temas são tão complexos, do ponto de vista dos limites à liberdade de ação geral, como os que dizem respeito à liberdade de expressão e às condições de seu exercício. Não é por menos que situações que envolvem desinformação, controle de redes sociais etc., são objeto de grandes polêmicas, em vários países. A preciosidade dos bens envolvidos - crianças, adolescentes e jovens - obriga a construção de um sério debate acerca dos limites que devem ser impostos aos territórios virtuais. Um debate que não pode ser consumido em si mesmo, que deve resultar em ações concretas, de natureza preventiva e repressiva. Não se ignora que o calor da emoção, após vivenciarmos tragédias como a de Blumenau/SC, costuma ser contraprodutivo na busca de boas soluções. Todavia, ignorar as dificuldades não significa que não existam. O constitucionalismo liberal ensina que a regra é a liberdade, fruto de grandes lutas ao longo da história recente da humanidade. Esta mesma história ensina que o agir livre, desprovido de controle, transforma-se em risco coletivo, apto a ameaçar a própria liberdade. Na prática, quanto maior for a relevância dos bens em jogo, tão mais fortes são os argumentos que justificam restrições pontuais às liberdades constitucionalmente asseguradas, como a de expressão e de acesso à informação. Esta realidade legitima a imposição de uma moderação aos operadores de redes sociais e assemelhados, no sentido de programar seus algoritmos a não transmitirem informações cujo conteúdo possa ser classificado, de forma incontroversa, como criminoso. Ela passa, igualmente, por um modelo que combine a reserva de jurisdição (quando a remoção de conteúdos ilícitos depende de ordem judicial) com a autorregulação regulada (quando a remoção pode ser solicitada pelos usuários ou realizada de ofício pelos provedores de aplicações em rede)3. O dever de proteção das crianças, com absoluta prioridade, justifica a adoção de um modelo regulatório no qual manifestações de incitação à violência nas redes sociais, por seu potencial danoso, devem ser removidas, inclusive de ofício, pelas próprias redes sociais4. A combinação de modelos encontra respaldo no fato de que a proteção das crianças não é apenas um dever do Estado, mas, igualmente, da família e de toda a sociedade. Em abril de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma portaria para evitar que crimes como o de Blumenau sejam incentivados por postagens em redes sociais5. Dentre as obrigações está a previsão de instauração de processos administrativos voltados à apuração de responsabilidades por parte dos operadores das redes, no caso de violação do dever de segurança e de cuidado em face de postagens com conteúdos violentos contra comunidades escolares. Há previsão do dever de divulgação de relatórios de avaliação de riscos sistêmicos sobre propagação de conteúdos ilícitos, além da obrigação de compartilhamento, entre as plataformas e as autoridades policiais, de dados que permitam a identificação do usuário e dos terminais de conexão empregados para a disseminação dos conteúdos ilícitos. Imposição às plataformas do dever de impedirem a criação de novos perfis a partir de endereços de IP, em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas. Instituição de um banco de dados de conteúdos ilegais voltados à prevenção. Previsão de multas às plataformas em caso de descumprimento das obrigações, que além de conterem somas elevadas, podem implicar suspensão administrativa dos serviços das redes sociais no país. Várias dificuldades se avizinham. A primeira, de ordem formal, é em que medida um ato administrativo como uma portaria pode prever uma série de obrigações que representam intervenções duras no campo de atuação das redes sociais? Intervenções significativas na liberdade requerem reservas legais qualificadas. Deste modo, o ideal seria que tais obrigações estivessem previstas na lei, em sentido formal, tema que atrai as dificuldades inerentes à representação política. Outra é o emprego recorrente, no texto da portaria, de expressões de conteúdo vago e abstrato que, na prática, podem provocar inúmeras dúvidas interpretativas no momento de aplicação do ato normativo, como, por exemplo, "riscos sistêmicos", "extremismo", "efeitos negativos", "apologia", "circunstâncias extraordinárias" etc.6 O tema é polêmico e, certamente, não encontra consensos fáceis. Em assuntos complexos a crítica é sempre a saída mais fácil. Entretanto, o simples fato de as autoridades não silenciarem a respeito, ainda que se divirja da forma como a solução foi por ora proposta, constitui aspecto digno de elogio. Pelos riscos que impõem à coletividade, deixar as mídias sociais fora de qualquer regulamentação não mais se mostra como aceitável. Deve-se debater o tipo de regulação, mas a inexistência não é plausível. Estamos diante de uma nova perspectiva de direito administrativo sancionador, apto a enquadrar os operadores de redes que se abstêm de cumprir o dever constitucional. Um autêntico diálogo das fontes7, que deve unir diferentes âmbitos jurídicos na realização dos valores máximos da ordem constitucional. Como envolve crianças, cujo afeto e sentimento de proteção deve guiar toda a sociedade, acima das clivagens que separam, há que se fazer um esforço para superar divergências, na busca do bem maior. Isto é honrar a expressão constitucional de absoluta prioridade. É fazer a diferença. ____________ 1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17ss. 2 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 49. 3 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Alternativas para a remoção de fake News das redes sociais. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake News e regulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 169ss. 4 HARFF, Graziela; DUQUE, Marcelo Schenk; Discurso de ódio: perspectivas do direito comparado. Revista de Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 48, nº 2, jul.-dez. 2020, p. 264ss. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.  7 Termo inspirado na doutrina de Erik Jayme e Claudia Lima Marques. Vide, MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 690ss.
sexta-feira, 24 de março de 2023

A Lei das Estatais sob ataque no STF - Parte I

O sistema presidencialista de governo, imerso em um cenário hiperpartidário, é avesso à governabilidade. Não há outra forma de governar o Brasil, sem se obter apoio político junto ao Legislativo. Em um cenário de dezenas de agremiações representadas no Congresso Nacional é impossível que um Presidente eleito possua, junto ao seu partido, uma maioria de parlamentares apta a lhe garantir a aprovação dos projetos de interesse do governo. Um velho e insuperável dilema do presidencialismo de coalizão. Ou se formam coalizões políticas, ou o Presidente não governa. O problema sempre foi o preço destas coalizões políticas. Quem acompanha a política sabe que o apoio ao governo do dia não costuma ser dado por simpatia aos projetos, respeito à figura presidencial, ou até mesmo por apego ao interesse público. O apoio costuma ser dado em troca de benesses que a política proporciona. Dentre as mais comuns, emendas parlamentares e a distribuição de cargos na administração pública, tribunais de contas etc. Trata-se de uma cultura corruptora. Empregam-se órgãos públicos como moeda de troca para a governabilidade, em total desrespeito ao interesse público. Esvai-se, assim, a independência da administração1. A máquina administrativa tende a ser inflada, para acobertar os aliados de plantão. O custo desta prática é elevadíssimo. Gasta-se muito para manter uma estrutura desnecessária, em detrimento de setores carentes de investimentos. Ao mesmo tempo, pela falta de capacidade técnica de muitos indicados, a qualidade dos serviços é atingida em cheio. Muitos se aproveitam da permanência temporária em funções de direção, chefia ou assessoramento, para se locupletarem, favorecendo as práticas de improbidade administrativa. O escancaramento do uso da máquina pública por parte de indicações políticas foi tão intenso nos últimos anos, que o próprio Congresso Nacional foi instado a reagir. No ano de 2016, foi aprovada a lei 13.3032, conhecida como Lei das Estatais, que traz uma importantíssima conquista para a sociedade brasileira: o estabelecimento de critérios mais rígidos para as indicações políticas nas empresas que contam com capital público. A lei visou a quebrar o costume de alocação de pessoas sem os mínimos critérios de competência ou idoneidade para atuarem nas estatais, no curso de cargos comissionados. Quando o endurecimento das regras passou a dificultar a obtenção de apoio político, surgiu um conjunto de iniciativas parlamentares voltadas a retomar o status quo ante. Projetos de lei voltados à flexibilização das novas regras3, passando pela tentativa de declarar a inconstitucionalidade das restrições perante o STF. Um destes movimentos foi o ajuizamento da ADI 7.331, proposta pelo PCdoB. Referida ação visa a impugnar o enrijecimento das indicações de natureza política nas estatais. O relator da ação, Min. Ricardo Lewandowski, por meio de decisão monocrática, deferiu medida cautelar voltada a suspender a parte da norma que impede indicações de conselheiros e diretores que sejam titulares de determinados cargos públicos, ou que tenham atuado, nos três anos anteriores, na estrutura decisória de partido político ou na organização e na realização de campanha eleitoral4. Trata-se de grave equívoco, que desconsidera a realidade da política brasileira. O Jornal Estado de São Paulo, em editorial datado de 18/03/2023, intitulado "O STF precisa respeitar a Lei das Estatais", fez uma análise cirúrgica do fato: "Tem horas que o STF se esforça por ser parte do problema, e não da solução". Não há nada na Lei das Estatais que contrarie a Constituição. Pelo contrário, ela realiza os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência, em defesa do interesse público. Nos termos da ordem constitucional vigente, o Congresso tem competência para definir critérios e restrições para os cargos nas estatais. É matéria que cabe ao Legislativo decidir. Na ausência de restrições desproporcionais por parte do Legislativo, a interferência do Poder Judiciário configura ativismo judicial, medida equivocada, apta a perturbar a separação dos poderes. No entendimento do Relator, a Lei das Estatais criou discriminações desproporcionais contra pessoas que atuam na esfera governamental ou partidária, sem levar em conta nenhum parâmetro de natureza técnica ou profissional que garanta a boa gestão. O argumento não resiste à melhor análise constitucional. Os parâmetros levados em conta pelo Poder Legislativo derivam de prognoses de natureza política, que impõem ao Poder Judiciário considerável autocontenção no momento de confrontá-las com a Constituição, cujos princípios que tratam da matéria são marcados por vagueza e abstração5. Princípios constitucionais apontam para fins que devem ser alcançados, ou seja, uma direção, de modo a prover um estado ideal de coisas6. Admitem realização em diferentes graus, o que aponta para uma inegável margem de discricionariedade, vale dizer, um juízo de conveniência e oportunidade por parte da esfera política. Assim, a apreciação constitucional do caminho eleito pelo legislador passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.7 Como observado no referido editorial, no caso da lei 13.303/2016, foi a própria política quem definiu os limites para a política. Outro argumento empregado para fulminar a lei foi no sentido de que restrições de direitos dessa ordem somente poderiam ser estabelecidas pela própria Constituição. É justamente a Constituição, quando consagra os princípios que devem reger a administração pública, que legitima a intervenção do legislador para proteger a probidade e a eficiência do agir administrativo. É por esta razão que, além da Lei das Estatais, existem outras previsões no ordenamento jurídico que, visando a proteger o patrimônio público, a eficiência e a moralidade administrativa, justificam a prática de restrições à liberdade de profissão. Cite-se, por exemplo, a lei 9.986/2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, que também impõe critérios temporais rígidos, de modo a impedir o aparelhamento político nas respectivas autarquias8. O próprio direito fundamental de liberdade de profissão (art. 5.º XIII CF) é uma típica norma de eficácia contida, no dizer de José Afonso da Silva9, já que condiciona o exercício das profissões às qualificações que a lei estabelecer. Um típico caso de reserva legal qualificada, que autoriza o legislador a impor restrições ao exercício das profissões, sempre que presente risco social. Não há risco social mais evidente, que o nefasto aparelhamento político das estatais, em detrimento do interesse público. Longe de ser uma prognose falsa por parte do legislador, deriva da comprovada experiência dos riscos que as indicações políticas têm causado à máquina administrativa. Voltaremos a este assunto na próxima dinâmica constitucional. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.   3 Disponível aqui.   4 Disponível aqui. 5 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 238ss. 6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78. 7 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207. 8 Lei 9.986/2000, art. 8-A: Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada: I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, p. 260s.
sexta-feira, 10 de março de 2023

Apoio a ditaduras: omitir-se é tomar parte

Em recente reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil se recusou a acompanhar a moção ratificada por mais de 50 nações, em repúdio pela reiterada prática de crimes contra a humanidade, cometidos na Nicarágua pelo regime do ditador Daniel Ortega. Trata-se de grave equívoco cometido pela diplomacia brasileira, certamente orientada, neste sentido, pelo governo. A falta de manifestações contundentes contra o regime nicaraguense por parte do Brasil configura apoio tácito à nefasta ditadura. Ao assim agir, o governo brasileiro silencia frente à prática de crimes humanitários, devidamente relatados e comprovados pela comunidade internacional. É inegável que apoiar ditaturas macula a imagem de qualquer país que pretenda ter protagonismo no cenário externo. Quando um Estado respalda, ainda que de forma velada, regimes ditatoriais, passa a se afastar de um patamar mínimo de civilização, que deve guiar a ação internacional. As feições totalitárias do regime imposto por Daniel Ortega são inquestionáveis e não passam despercebidas pela comunidade internacional, que luta pela preservação dos direitos humanos. A conclusão da ONU é que, para calar opositores, o regime comete crimes contra a humanidade. Vale lembrar que a Nicarágua está nas mãos de um ditador que governa com mão de ferro há pelo menos 16 anos. O quadro é de grave crise institucional e humanitária. É notória a prática de gravíssimas perseguições contra aqueles que discordam do regime. Execuções, prisões arbitrárias, torturas, estupros e até mesmo retirada compulsória de nacionalidade fazem parte do cardápio de graves violações contra os direitos humanos. O mundo assiste a um conjunto de medidas de viés totalitário, patrocinadas pelo Estado, voltadas à perpetuação no poder de um determinado grupo político. Para agravar a situação, o governo Ortega se vale de grupos milicianos armados, de caráter paramilitar, que atuam violentamente contra toda a sorte de opositores. Líderes religiosos, organizações de direitos humanos, observadores internacionais e jornalistas independentes vêm sendo expulsos do país, como forma de calar as suas vozes. Há relatos, inclusive, de confisco de bens de organizações internacionais e de órgãos de imprensa por parte do Estado. Em um país majoritariamente católico, nem mesmo líderes religiosos foram poupados. Vista como inimiga do regime, pelo fato de ter se disposto a mediar o conflito e assumir o papel de proteger as vítimas, a Igreja passou a sofrer forte repressão. Religiosos foram presos e expulsos do país. A celebração de cultos por parte de críticos do regime foi proibida e até mesmo universidades ligadas à Igreja foram fechadas. O poder executivo passou a controlar todos os poderes de Estado. Não mais se cogita de um Judiciário independente. Fica claro que o pequeno país da América Central é vítima de terrorismo de Estado, com a finalidade de minar qualquer oposição política. Suprimir qualquer voz dissidente é a estratégia do regime. A gravidade das ações do governo de Daniel Ortega contra os seus opositores exige uma forte reação por parte de todos aqueles que se dizem protetores dos direitos humanos. Não há espaço para contemporizar, já que não se pode ser flexível ou transigente com tamanhas atrocidades. Infelizmente, muitos daqueles que se dizem defensores dos direitos humanos calam-se em oportunidades cruciais, sobretudo quando determinados ditadores têm laços históricos com ideologias ou líderes que admiram. Uma atitude seletiva, que em nada contribui para a meta de proteção integral da dignidade humana. Falta, aos defensores seletivos dos direitos humanos, a noção elementar de que a única ideologia que move a causa deveria ser aquela que coloca o ser humano no centro das considerações de qualquer pensamento ou ação política. Preferências ou inclinações partidárias devem ser protegidas em qualquer estado de direito, mas não ao ponto de chancelar violações ao bem mais caro à civilização: a dignidade humana. As ideologias políticas de direita e de esquerda podem - e devem - ser compatíveis com o dever de proteção dos direitos humanos. Quando um expoente dessas ideologias se afasta da razoabilidade, deve ser plenamente rechaçado pela comunidade internacional. O fato de Ortega ter uma ligação com líderes mundiais de esquerda não pode servir de justificativa para lhe passar panos quentes. Não é por menos que governos esquerdistas, como os da Colômbia e do Chile, firmaram, ao contrário do Brasil, o documento crítico ao regime. Eis a seletividade que envergonha. Muitos que - com razão - teciam fortes críticas ao governo Bolsonaro, nada falam da omissão do atual governo em relação à tragédia que o povo nicaraguense sofre. Estaríamos diante de categorização seletiva da prática de genocídio, uma nova categoria do direito internacional? Não é possível apenas criticar o totalitarismo praticado por determinado campo e ignorar práticas igualmente nefastas provenientes de outro espectro ideológico. Incoerência, neste caso, é eufemismo. Um agir com servilismo político, no lugar de postura crítica e reflexiva, voltada à perpetuação da cultura humanista e democrática. A omissão de governos em combater ditaduras de estimação costuma ser justificada por meio de argumentos de baixa envergadura técnica. Um deles é o recurso à soberania da nação estrangeira, que atrairia o princípio da não-intervenção. Um Estado não pode invocar soberania para violar direitos humanos. Entendimento contrário coloca qualquer país fora de consensos mínimos que devem guiar o bloco internacional de constitucionalidade. Outro seria a necessidade de se preservar a autodeterminação dos povos. Mais uma vez, um argumento fácil de ser afastado. Quando uma população se vê subjugada pelo poder, torna-se incapaz de resistir à força e à opressão. O corpo social perde as condições mínimas para determinar o seu próprio destino. A proteção da dignidade humana traduz um fim supremo de todo o direito,1 de modo que a sua afirmação como fundamento do Estado2 lhe conduz ao cume do ordenamento jurídico, como conceito-chave na relação entre a pessoa e o Estado.3 É por esta razão que a defesa dos direitos humanos perpassa a delimitação das fronteiras nacionais, traduzindo-se em verdadeiro imperativo para a comunidade internacional. Do ponto de vista das relações internacionais exsurge a figura de um dever de proteção fundamental, que obrigue os Estados que fazem parte de tratados internacionais a não compactuarem com as violações sistemáticas aos direitos humanos. A ordem internacional de inviolabilidade da dignidade humana tem a importante função de rechaçar todo e qualquer comportamento estatal que expresse uma falsa valoração do ser humano, por meio de ações que imponham fins aparentemente mais elevados à custa da própria pessoa.4 A proteção da dignidade humana é o valor jurídico mais elevado da comunidade internacional. Com base neste fundamento, há que se aplicar o conceito de jurisdição universal, que legitima um Estado a investigar e julgar crimes cometidos fora de seu território, ainda que por meio da ação de estrangeiros. A ideia é potencializar as chances de responsabilizar individualmente as autoridades que insistem em violar direitos humanos, ao agir escudadas por instituições corrompidas e dominadas pelo regime. Não é demais lembrar que pelo menos uma das vítimas do regime era brasileira. Trata-se de perspectiva adicional dos deveres de proteção internacionais dos direitos humanos, que obrigam os Estados a garantir justiça para as vítimas. Na prática, a postura de abstenção do governo brasileiro na ONU vai em direção contrária. Falta, à chefia de Estado, clareza no sentido de que contemporizar com ditaturas, ainda que sob o argumento de manter canais abertos de diálogo, implica grave insulto às vítimas de tão cruel regime. Não há como deixar de tecer críticas à postura do Brasil neste caso. Não se pode nem dizer que a prudência - sempre recomendável nas relações internacionais sensíveis - justificaria a omissão do Estado brasileiro. Afinal, não há nada que poderia prejudicar os interesses internacionais do Brasil, pelo fato de se posicionar, veementemente, ao lado de dezenas de nações amigas, contrárias à tirania. Por fim, não basta o Brasil expressar preocupação com os relatos de graves violações de direitos humanos na Nicarágua e se oferecer para receber os cidadãos degredados, ao mesmo tempo que se omite de chancelar documentos internacionais voltados à condenar a ditadura. É necessário que o Brasil se junte, sem rodeios, ao conjunto das ações que são tomadas pelos órgãos internacionais competentes. A omissão, neste caso, configura nítida forma de conivência, deplorável em todos os sentidos. __________ 1 BENDA, Ernst. Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht. In: Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen. et al. (Hrsg.). HVerfR. 2., neub. und erw. Aufl. Berlin, New York: Gruyter, 1994, Rdn. 4. 2 SILVA, José Afonso da. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n. 212, abr.-jun. 1998, p. 92. 3 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1988, B. III/1, p. 15. 4 STEIN, Ekkehart; FRANK, Götz. Staatsrecht. 20., neu. Auf. Tübingen: Mohr, 2007, § 29, p. 235s.
A invasão e destruição dos prédios que abrigam os Poderes públicos, no dia 8 de janeiro de 2023, na capital federal, merecem total repúdio. Barbárie, depredação e vandalismo não permitem relativização. Pouco importa se não se concorda com o governo eleito. Vandalismo, depredação e selvageria nunca são soluções. Aqueles que se julgam no "direito" de vandalizar instalações públicas consideram-se, na prática, mais brasileiros do que outros. Ou quem sabe, mais patriotas... O patrimônio destruído não é do Presidente da República, dos políticos ou dos ministros do Supremo Tribunal Federal. É do Estado brasileiro. Falta àqueles que depredaram o patrimônio público a noção elementar de estado de direito e, sobretudo, da distinção entre oposição e subversão. Faz parte do direito de oposição democrática ir contra o governo do dia, por meio de protestos pacíficos, sem armas, em locais abertos ao público, mediante prévio aviso às autoridades competentes, para que possam organizar a segurança de todos. Da mesma forma, integra o núcleo da democracia a possibilidade de livre pronunciamento e votações nos órgãos políticos de deliberação coletiva. Contudo, quando se age contra o Estado, não se trata de oposição, mas sim de subversão! A invasão violenta e a depredação, sem precedentes no Brasil, dos prédios dos poderes públicos representa verdadeiro ato subversivo, que deve atrair dura punição no marco da legislação vigente. Os atos violentos não visam apenas à destruição física das instalações, mas, igualmente, ao enfraquecimento das instituições que representam. Isto é inadmissível em uma democracia. A violência não tem proteção constitucional. Eventuais descontentamentos devem ser manifestados de modo pacífico. Qualquer entendimento contrário representa uma via - de mão única - para o caos. Em uma democracia funcional a alternância de poder tem que ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. O que se tem visto no Brasil, em particular a partir dos episódios violentos do início do ano de 2023, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. O momento é complexo, sensível e requer a atuação de lideranças com espírito estadista, no lugar daqueles que só se interessam por dividendos eleitorais ou pela manutenção no poder a qualquer custo. Os acontecimentos foram graves e exigem investigação séria e profissional. As pessoas que danificaram o patrimônio púbico e que atuam para derrubar as instituições democráticas não podem fugir à responsabilidade. Elas estão em dívida com o povo brasileiro. As dificuldades são consideráveis. Certamente, muitas pessoas que se faziam presentes nos protestos não tinham a intenção de agir como bárbaros. Alguns foram arrastados pelo chamado "efeito manada". Entretanto, ao tomarem parte em atos deploráveis de vandalismo, devem ser chamados à justiça, na forma da lei. Aos órgãos competentes cabe a árdua tarefa de averiguar a participação de cada um, para efeitos de responsabilização. Sem embargo, a tarefa principal dos órgãos judiciais é encontrar os financiadores desses atos, bem como as autoridades que, voluntariamente, se omitiram de cumprir seu dever legal. Aqueles que podiam agir para evitar os danos e nada fizeram. Os primeiros são aqueles que agem nas sombras. Provavelmente, assistiram à barbárie no conforto das suas casas. Usam pessoas que são manipuladas para o atingir fins obscuros, que parte dos manifestantes sequer imagina, em nome de uma pretensa causa maior. Os segundos são os que mais preocupam. Quando atos criminosos têm a participação de agentes estatais, na forma de omissão deliberada, fica claro que a criminalidade possui tentáculos no aparelho estatal. Aqui está-se diante do quadro mais grave, que justifica a mais rigorosa punição. Não resta dúvida que a democracia foi atacada e que necessita empregar os meios constitucionalmente assegurados para se defender. O desafio, que se mostra presente, é compreender em que ponto erramos e quais aprimoramentos institucionais se fazem urgentemente necessários. O momento é de serenidade. Há que se construir uma cultura estatal voltada à pacificação social. É importante ter em mente que nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 No centro do debate está a sobrevivência do sistema democrático. É fundamental que os atores políticos, assim como as autoridades constituídas, compreendam o seu papel no curso da delicada conjuntura que o país enfrenta. A escassez de estadistas cobra seu preço. Deixar a justiça fazer o seu trabalho com eficiência, sem holofotes e discursos virulentos, é o caminho de ouro. Toda narrativa incendiária deve ser evitada. Não se pode esquecer que um país dividido é um país estagnado. Marcada a defesa contundente da democracia e do estado de direito, há que se trabalhar com menos exposição e mais profissionalismo na busca da integridade nacional. Ao Supremo Tribunal Federal, particularmente, coloca-se o desafio de atuar nos estritos limites constitucionais. Uma tarefa árdua, considerando que ao chamar para si o encargo de responsabilizar criminosos, coloca-se, ao mesmo tempo, na condição de vítima e julgador. É necessário perceber que por mais graves que tenham sido os atos criminosos, não se pode dar uma espécie de carta branca para qualquer instituição, em nome da repressão e da justiça, agir fora do devido processo legal. Convém lembrar que quando um órgão estatal se acostuma a abusar do poder, ainda que em nome de uma "causa nobre", abre-se um perigoso precedente, que pode se converter em regra geral de conduta, difícil de ser superada com o passar dos tempos. Lawfare, para usar um termo da moda - manipulação de procedimentos judiciais visando à perseguição de desafetos, mediante violação de direitos - não pode ser tolerado. Não se combate um mal, recorrendo a instrumentos igualmente maléficos. Vale dizer: o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico não pode servir de meio para ludibriar a Constituição, no instante em que a eleição destes fins pode representar interesses, cuja hierarquia é controvertida2. Isso significa que no curso da responsabilização daqueles que atuaram e atuam contra as instituições democráticas, a Constituição não pode ser abandonada por conta da insegurança gerada por uma luta permanente de poderes e de opiniões que, em sua argumentação, não logram êxito em referir-se a uma base comum3. O direito constitucional, mesmo em momentos de crise, não admite aplicação seletiva. As respostas têm que ser buscadas na Constituição, não fora. É ela que possui os remédios adequados para cada tempo, mesmo os mais duros, em tempos difíceis. Não se pode defender uma espécie de direito constitucional do inimigo, que defende garantias para apenas um dos lados. As punições devem incidir sobre os culpados, na medida das suas respectivas responsabilidades, mas sempre no marco do devido processo legal. Se o caminho for outro, estaremos nos afastando da racionalidade e da funcionalidade do ordenamento jurídico. É fato que o Brasil foi colocado em posição de vergonha mundial, pela ação de grupos bem articulados, verdadeiros artífices da desordem, que atuam para acabar com a democracia, em proveito próprio. A democracia defensiva tem que agir para se proteger, sobretudo, daqueles que, em nome da própria democracia, atuam para eliminá-la. Sempre dentro das regras, nunca fora. Os bons exemplos são esperados de cima. Somente assim os espíritos serão apaziguados. A partir daí, todos devemos nos voltar aos aprimoramentos institucionais necessários. Só as boas instituições nos colocam a salvo dos piores males. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A proteção das estatais à beira do retrocesso

A Câmara dos Deputados, em votação na calada da noite, às vésperas do início do recesso de 20221, aprovou um projeto de lei que flexibiliza a Lei das Estatais (lei 13.303/2016)2. Se convertido em lei, o PL 2.896/20223 facilitará não apenas o aparelhamento político da administração indireta, como, também, a corrupção, contrariando o interesse público. O estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista foi uma conquista da sociedade brasileira. Aprovado no governo Temer, representou uma espécie de reação aos desdobramentos dos grandes escândalos de corrupção que envolveram, sobretudo, a Petrobrás. O objetivo da norma foi agregar às estatais regras de governança corporativa, transparência, gestão de riscos e controle interno, visando a proteger o patrimônio público e o dos seus acionistas. Criou-se, dentre outras medidas, um conjunto rígido de regras voltado a impedir interferências políticas na administração desse tipo de empresas, bem como a redução dos gastos com publicidade. Com ampla maioria, a Câmara dos Deputados decidiu facilitar a alocação de políticos nas estatais, bem como ampliar seus gastos com publicidade. Um enorme retrocesso, típico daquilo que a política vem proporcionando aos brasileiros nos últimos tempos. Atualmente, o tema pende de aprovação pelo Senado. A redação original da Lei das Estatais proíbe a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria das empresas, de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral. A intenção da lei é clara: evitar o aparelhamento político das estatais. A mudança aprovada pela Câmara dos Deputados fixou o prazo mínimo de desligamento para 30 dias. Ou seja, o prazo que separa a atividade política e a investidura em um alto cargo em estatais foi reduzido de três anos para apenas um mês. As regras, caso aprovadas pelo Senado, passarão a ser aplicadas, inclusive, para as agências reguladoras. Na mesma toada, a Câmara dos Deputados aprovou a ampliação dos gastos das estatais com publicidade e a mudança de limites de gastos em ano eleitoral4. Pelas regras atuais, as despesas das estatais com publicidade não podem ultrapassar, em cada exercício, o limite de 0,5% da receita operacional bruta do exercício anterior. Este limite, contudo, pode ser ampliado até 2% da receita bruta, por proposta das respectivas diretorias, quando devidamente justificada com base em parâmetros de mercado, sujeita à aprovação dos conselhos de administração. Com a inovação, o patamar máximo de 2% com despesas com publicidade torna-se padrão, facilitando a sua aprovação. Tomando-se por base o faturamento das estatais no ano de 2021, R$ 998,8 bilhões, os valores relativos à publicidade que ficariam à disposição dos governos tangenciariam a cifra de R$ 20 bilhões. Considerando a experiência negativa que os gastos com publicidade oficial proporcionaram na história recente do país, a medida mostra-se, nitidamente, temerária. Caso a modificação da lei das estatais venha a ser aprovada pelo Senado, estaremos diante de um retrocesso histórico. Um dos aspectos decisivos para a engenharia constitucional de uma nação passa pela construção de um modelo que prime pela autonomia e imparcialidade da administração pública.5 Mecanismos rígidos de controle e de governança corporativa visam a prevenir a ocorrência de corrupção. O projeto da Câmara dos Deputados vai em direção contrária. A corrupção é um problema endêmico no Brasil. A forma como as nossas instituições políticas e de governo estão configuradas, favorece a prática de atos contrários aos princípios constitucionais da administração pública. Falta à classe política nacional, ao menos em sua maioria, a noção de que quanto mais recorrermos a estruturas arcaicas de organização dos poderes públicos, mais nos aproximaremos do colapso. O problema está nitidamente associado ao sistema presidencialista de governo, aliado ao sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados. No Brasil, elege-se um Presidente da República que cumula as funções de chefia de Estado, de governo e da própria administração pública federal. Além da exercer funções que, em seu conjunto, podem se mostrar incompatíveis, o Presidente eleito pelas urnas não possui maioria política no Congresso Nacional, capaz de garantir a governabilidade. Não há outra saída, se não aderir a um amplo espectro de coalizões, muitas delas de natureza espúria, sob pena de inviabilizar o próprio governo. O problema é que o apoio político tem um preço alto, que costuma ser pago, dentre outras moedas - a da moda é o orçamento secreto - pelo loteamento de cargos na administração. É neste ponto que o comando das estatais entra como uma luva na mira dos partidos que pretendem ingressar na base de governo. Como se não bastasse, pela lógica do sistema de eleição proporcional, os deputados federais ficam praticamente desvinculados de um eleitorado que os possa responsabilizar pelas más escolhas. Não possuímos um sistema distrital de votação, com possibilidade de recall. O sistema é corruptor. Uma boa arquitetura institucional livra o país de desmandos. A autonomia e independência das estatais são instrumentos de grande valor para um Estado democrático de direito. São elas que contribuem para a indispensável separação entre Estado, governo e administração, sem a qual uma democracia fica impossibilitada de adquirir funcionalidade. As nocivas interferências da política e das ideologias de plantão, no lugar da boa técnica e da governança, têm minado a administração pública como um todo. Elas vêm emperrando o desenvolvimento racional e sustentável do país, catalisando a corrupção institucional, que há muito nos asfixia. Se por um lado governo e administração são dependentes um do outro no aspecto funcional, por outro, o respeito à Constituição exige que a administração atue com autonomia, independência e responsabilidade própria diante das forças políticas.6 A flexibilização da lei das estatais, mais do que um retrocesso histórico, é a prova da falta de conexão de parte expressiva dos nossos representantes políticos com os interesses nacionais. O caminho é a institucionalidade e não o oportunismo político. É pensar no futuro e não apenas nas conveniências do presente. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 212ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 536s.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

República ou regalias

Atualmente, no âmbito da atuação dos poderes públicos fala-se muito em moralidade ou na sua falta. A Constituição Federal, em um dos seus mais importantes títulos, traz a moralidade como princípio vetor de toda atuação administrativa. Portanto, toda e qualquer conduta que destoe da moralidade estará afastada da proteção constitucional. Neste tema as dificuldades são extremas. A começar pela tarefa de definir o que configura uma conduta imoral de um agente público. Emerge, neste ponto, a observação imortalizada por Santo Agostinho, no Livro XI, Capítulo XIV, das Confissões, quando indagado sobre o que significa o tempo.1 "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei". Se apoiando na obra do gigante, faço o mesmo raciocínio: o que é, pois, a moralidade administrativa? Assim como ponderou Santo Agostinho em relação ao tempo, tenho dificuldades para definir o que é. Contudo, em face de situações concretas, que vivenciamos a cada semana no Brasil, é muito mais simples entender o que não é. Quando parlamentares viajam ao Catar para assistir jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo do ano de 2022, financiados direta ou indiretamente com recursos públicos, sob a pretensa missão de representar o país, tal conduta pode ser tudo, menos moral. Quando os mais altos níveis remuneratórios do serviço público se autoconcedem regalias, independentemente de autorização legislativa específica, também. Quando a lei privilegia classes de agentes públicos com remunerações totalmente incompatíveis com a realidade das contas públicas, concedendo auxílios financeiros expressivos a quem menos precisa, a título de parcelas indenizatórias, livres de tributação, de forma retroativa, sem prescrição, não apenas a irresponsabilidade no manejo das contas públicas se faz presente, mas, igualmente, a total ausência da noção republicana de igualdade. Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados para descrever este estado de coisas inconstitucional que o Brasil enfrenta, há um bom tempo. Seria o sinal de que o pacto constitucional de 1988, ao menos no que tange aos princípios da administração pública, ruiu? Alguns sinais apontam que sim. O mais evidente deles diz respeito à interpretação que se consolidou no país sobre o que significa direito adquirido. A garantia tem sido empregada, com a máxima energia, por todos aqueles que defendem distorções injustificáveis no serviço público. Uma minoria, mas muito barulhenta. Há muito se confundem direitos com regalias no Brasil. Se poderia, mais uma vez, invocar a lição de Santo Agostinho. Em abstrato é difícil definir o que é uma regalia. Ao se analisar fatos, torna-se fácil perceber. Existe um pequeno grupo de agentes públicos que ganha muito, incluindo benefícios de toda sorte, sem qualquer relação com o resultado da sua atuação. Verifica-se que, em muitos casos, há um acúmulo de servidores no topo salarial da carreira, ainda que se situem em níveis diferentes de progressão. Por outro lado, existe um enorme grupo de servidores com salários muito defasados, que, diga-se de passagem, são os que costumam ter uma atuação mais próxima dos cidadãos. No Brasil, não raro, o teto salarial se torna piso, graças a um conjunto inexplicável de penduricalhos, que transporta, com inegável eficiência, a base salarial para o topo. A busca do melhor interesse público vai em direção contrária à das regalias. Em um país ideal, sem prejuízo do salário ser definido em função das responsabilidades e dos riscos inerentes a cada mister, ciente de que situações especiais justificam diferenciação, o setor público deveria ser submetido às mesmas regras impostas à imensa maioria dos trabalhadores, que com seus tributos sustentam o todo. É, ao menos, o que se deflui de uma das conquistas mais elementares de um Estado de direito republicano: a igualdade. É importante reconhecer que a maioria dos servidores públicos brasileiros é vocacionada para suas tarefas, cumprindo-as com distinção. O problema surge quando determinados grupos não conseguem diferenciar o que significa um direito adquirido de uma regalia. Por certo, é difícil criticar o que outra pessoa recebe por seus méritos individuais. Não se nega que grande parte da elite do serviço público ascendeu à carreira por inegável esforço pessoal, a começar pela aprovação em concursos públicos com altíssimo nível de exigência. Se reconhece a renúncia pessoal em muitos anos de preparação. Todavia, a compensação por este esforço não pode se dar de forma desproporcional, ao ponto de ferir inúmeros pilares do espírito republicano. Um meio termo há de ser encontrado: vencimentos dignos e compatíveis com os cargos, porém sem destoar da razoabilidade. O mais grave é quando algumas regalias adquirem roupagem legal, não por uma correta apreciação da igualdade em sentido material. Nas palavras de Rui Barbosa:2 "Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Preocupante é quando as regalias se consolidam pela eficiente organização e poder de barganha, típica de corporações muito bem articuladas. Neste caso, costuma-se invocar o direito adquirido que, muitas vezes, está mais para privilégio adquirido. Quando uma lei concede regalias ao ponto de ignorar os princípios republicano, da igualdade, da moralidade, dentre outros, ela não pode se eternizar no tempo. O princípio da segurança jurídica, do qual deflui o da proteção da confiança, não podem implodir os alicerces da ideia republicana. Entendimento contrário faz com que os vivos - que suportam os prejuízos - sejam eternamente governados pelos mortos - que, no passado, por diferentes conjecturas, concederam privilégios a quem quer que seja. Não há dúvida de que a imoralidade administrativa se associa à noção de desvio de poder e dos princípios de justiça e equidade.3 Integra, necessariamente, um juízo voltado à manutenção de condutas eticamente corretas.4 Encontro a sabedoria de Santo Agostinho em todos estes tópicos. "Se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir".5 A razão de existir uma República é a antítese de privilégios e regalias. Contra esta noção, não há direito adquirido que se faça forte. Ruy Cirne Lima6 lembrava que os estudos de direito administrativo não deveriam ficar reservados aos juristas e aos eruditos. Pelo contrário, afirmava o mestre que se deveria, quanto possível, procurar difundir extensamente pela massa dos cidadãos o conhecimento dos pilares do direito administrativo. O mesmo se diga em relação ao direito constitucional, a partir da imortal expressão cunhada por Fritz Werner:7 "O direito administrativo é o direito constitucional concretizado". É fundamental que a população seja ouvida no que diz respeito à concessão de regalias, que nem de perto chegam à massa que toca o país. É, justamente neste ponto, que o sistema representativo tem falhado. Se o pacto constitucional não é capaz de perceber isto, é porque ruiu ou está no caminho de ruir. __________ 1 Disponível aqui, p. 120. 2 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26. 3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 112. 4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 22. 5 Disponível aqui, p. 120.  6 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 48. 7 WERNER, Fritz. "Verwaltungsrecht als konkretisiertes Verfassungsrecht". DVBl. Köln: Heymanns, 1959, p. 527ss.
sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Que república queremos?

República não combina com desmandos, regalias, golpes e com a apropriação dos espaços públicos para fins particulares. No mundo em geral o início do século e do milênio revelou um panorama político-constitucional de grandes transformações e instabilidades.1 Essas instabilidades plantam dúvidas até mesmo em relação a sermos, de fato, uma república. O nome apartado da realidade. A república expressa o ser comum (res publica), no qual todo poder público deve ser derivado da comunidade, sendo obrigado a servir ao bem de todos. Exprime uma ideia de conceber o Estado totalmente oposta à noção de despotismo, na qual nada mais existe que o arbítrio dos detentores do poder.2 A história republicana ainda é pouco contada no Brasil. O que mais se sabe é que o dia 15 de novembro é um feriado nacional, alusivo à data da proclamação, no ano de 1889. Contudo, pouco se debate sobre o verdadeiro significado da palavra república. A instabilidade que tem se visto presente nos últimos anos no Brasil, acrescida de uma série de escândalos mal resolvidos de corrupção; da disfuncionalidade institucional - a começar pelo sistema presidencialista de governo; e da perpetuação de regalias injustificadas nos Poderes Públicos, absolutamente incompatíveis com a dura realidade da população, dentre outros problemas, determinam uma reflexão urgente naquilo que realmente pretendemos, como nação e como república. A clássica obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, publicada postumamente no ano de 1532, inicia o primeiro capítulo com a frase: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados".3 A frase tinha caráter inovador: além do termo Estado, empregava o conceito de república na acepção de uma forma de governo, em oposição às monarquias. As formas de governo revelam a forma de vida do Estado, a partir do caráter coletivo do seu elemento humano.4 Como tal, a república deve descrever uma espécie de Estado vocacionada para a realização do bem comum, avessa a privilégios e disfuncionalidades. A ideia republicana passa pela expressão democrática de governos, pela limitação do poder e pela atribuição de responsabilidade política, visando a assegurar a liberdade.5 Os clássicos advertiam que o problema fundamental para a investigação política, tanto sob a perspectiva da ciência antiga quanto da nova, em sua essência é o mesmo: buscar as garantias contra o poder absoluto do soberano mediante restrições legais.6 Isso equivale a dizer que a organização das instituições estatais e o modo como se relacionam é o que, na prática, irá caracterizar a forma de governo.7 Como traço geral, a forma de governo designa como se constitui o chefe de Estado em uma nação. As monarquias são formas de governo nas quais o chefe de Estado é hereditário e vitalício, enquanto nas repúblicas é eletivo e temporário.8 A partir daí, surgem inúmeras distinções. Dentre as características mais importantes de uma república está o fato de o Estado não se fundir à figura do Presidente, exatamente pela eletividade e pela periodicidade dos governos, em seu mais alto escalão.9 A essência de uma república reside na negação da condução do Estado por uma pessoa física, no sentido de rechaço à vontade suprema de um ser individualmente considerado.10 Com o objetivo de racionalizar o processo político, a democracia possibilita a produção de continuidade suprapessoal (überpersonaler Kontinuität). Significa que o poder estatal não pode estar vinculado a uma determinada pessoa, da mesma forma que o processo político não pode estar concebido para uma determinada pessoa. A continuidade da ordem política não é uma questão de indivíduos ou de rostos.11 Em outras palavras, em uma república ninguém poderia se perpetuar em qualquer posto de mando. A ideia básica é abominar o abuso de poder de qualquer espécie. Isto gera uma reflexão importante quanto à viabilidade de cargos vitalícios em posições-chave, sobretudo quando nomeados por critérios políticos. Tradicionalmente, o desenvolvimento da ideia republicana se deu por meio das lutas contra a monarquia absolutista e pela afirmação da soberania popular. Foi, basicamente, uma expressão de reivindicações populares, de vários matizes.12 Contudo, definitivamente, não foi o que aconteceu no Brasil. Graves são os problemas que foram se somando, desde a queda do Império, por meio de conspiração arquitetada por militares e republicanos civis. A história brasileira comprova que a proclamação da república se deu na forma de um autêntico golpe de Estado. Não havia, por parte da população, uma vontade clara e manifesta de depor o Imperador. Não há como se negar que Dom Pedro II foi um dos maiores estadistas deste país. Amante das letras, das ciências e de probidade inquestionável, foi um grande Imperador.13 A forma como foi tratado pelos militares e elites econômicas da época cobra até hoje seu preço na história. Uma deportação humilhante, marcada pela vergonha. Na prática, a mudança da forma de governo - de monarquia para república - veio de cima para baixo, como tantas outras coisas no Brasil. Mais do que uma vontade, uma imposição movida por interesses nada republicanos. É a expressão da frase perpetuada por Alceu Amoroso Lima, quando afirmou que o Brasil se formou às avessas, começando pelo fim.14 Tivemos república, antes de consolidar um verdadeiro espírito republicano. O último ministério do Império foi deposto pelas armas dos militares, sob o comando do Marechal Deodoro da Fonseca, sem que a república estivesse, de fato, proclamada, o que criou um vácuo na forma governo. Por alguns momentos, o país não era nem monarquia, nem república. Destituído de qualquer poder, Dom Pedro II não podia exercer as funções de Chefe de Estado, nada podendo fazer sem consultar o Marechal Deodoro, que por força de grave enfermidade, encontrava-se à beira da morte15. Com o Congresso em recesso, formou-se um governo provisório que tomou posse na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Uma cena inusitada, como lembra Laurentino Gomes, pois a instância máxima do Poder Executivo nacional - agora na forma republicana - prestou juramento diante de representantes de um poder municipal. Uma das tantas ironias da história, já que a mesma Câmara Municipal veio a ser dissolvida apenas três semanas mais tarde, por ordem do novo governo republicano, sob alegação de "estado de decadência"16. Mais uma da série, aqui se faz, aqui se paga. Assim se construiu uma república, que no seu berço nascera de um golpe armado, descolada das ruas, sem qualquer participação popular. A república nasceu fragilizada e sem legitimidade, o que ajuda a explicar a sucessão de problemas e golpes que se sucederam, desde então. O grande problema, que reflete o que atualmente somos, é o modo como a nossa história foi forjada. Ela deixa sequelas que por vezes são difíceis de serem removidas, passando a integrar um aspecto importante - e nefasto - da nossa identidade nacional. Os donos do poder, que dificilmente dele se descolam e seguem decidindo o destino do país. Mudam os nomes, os rostos, mas as práticas patrimonialistas se perpetuam. Uma espécie de coronelismo transgeracional, que resiste aos tempos e se adapta com versatilidade às novas realidades. Não se advoga que deveríamos permanecer um império, em pleno século XXI. O que se sustenta é que a monarquia foi abolida de forma prematura, por um golpe militar, quando ainda presente no país um grande estadista, apto a chefiar o Estado, em um momento decisivo da nossa história e da consolidação das instituições liberais. Por certo Dom Pedro II errou por vezes, o que não é extraordinário. Mas foi, como registra a história, diligente no cumprimento do dever e no respeito à lei.17 Isto se alia à tese de que golpes militares no Brasil nunca produziram bons resultados, deles nada podendo se esperar. Sem embargo, a ampla troca de constituições no país atesta a dificuldade que possuímos em promover acertos institucionais duradouros. Mesmo a independência, conquista importantíssima, que no ano de 2022 completou 200 anos, não foi capaz, por si só, de trazer a pujança que se espera de uma nação tão rica e bela, como o Brasil. As repúblicas democráticas dependem da estrutura social do povo que as habitam que, por sua vez, depende da qualidade das instituições públicas. Este, aliás, é um dos grandes motivos pelos quais a educação nunca foi prioridade na república brasileira. Quanto mais carente de informação, cultura e igualdade de oportunidades, menor se torna o empoderamento coletivo. Por seu turno, maior é a possiblidade de manipulação e indiferença, sentimentos sociais que servem de adubo à manutenção de castas no poder. É o caminho perfeito para a manutenção de uma república de papel. Para formar a vontade jurídica suprema, a república necessita de uma organização exterior e de uma divisão das funções estatais, nos termos previstos na Constituição.18 Se a Constituição contempla soluções equivocadas, dificilmente a ideia republicana pode se tornar realidade. Por outro lado, a experiência mostra que as tentativas de transformar em realidade a identidade de governantes com governados, sem mediação institucional, não podem dar certo, pois contêm o perigo de se converterem em domínio total (totale Herrschaft).19 A saída está no aprimoramento das instituições. Aprimorar não significa abolir, mas sim racionalizar. Não devemos ter receito de reformar as instituições, quando fica claro que a configuração vigente não produz bons resultados. Viver sem instituições é algo inviável, da mesma forma que insistir em modelos falidos. Assim como erramos, gravemente, na forma e no momento de proclamar a nossa república, continuamos errando ao manter um sistema político e de repartição de funções que conduz a resultados insatisfatórios, independentemente da ideologia política de plantão. Triste é o país que não possui estadistas, em número suficiente, capazes de fazer a diferença, alertando o povo de que somos reféns de um modelo disfuncional de organização do Estado e dos poderes públicos. Pensar a república conduz, necessariamente, a uma espécie de refundação, mantendo o que é bom e se livrando do que é ruim. Não por golpes autoritários, mas sim por um sentimento de indignação, apto a demonstrar que o que vêm sendo praticado, há muito tempo, não nos levará a lugar algum, para além do fosso em que estamos presos. ________________ 1 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 41. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 120. 3 https://docs.google.com/a/fcarp.edu.br/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZmNhcnAuZWR1LmJyfG51cGVkaXxneDoyZWIyZDBjYjVkNjQyMjY2 4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 231. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 227. 6 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 222. 8 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 240. 9 MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215. 10 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 711 11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 137s. 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226. 13 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 525ss. 14 LIMA, Alceu Amoroso Lima. In: CARDOSO, Vicente Licínio [Org.]. À Margem da História da República. Tomo. 2. Brasília: Editora UNB, 1981, p. 51s. 15 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 279. 16 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 285. 17 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 527. 18 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 19 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 131.
Em uma democracia funcional a alternância de poder deve ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. Nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 O que se tem visto no Brasil, após a proclamação do resultado das eleições presidenciais de 2022, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. Pessoas comparecendo à frente de quartéis solicitando intervenção das Forças Armadas, caminhoneiros bloqueando estradas, atos de violência envolvendo manifestantes, discussões sem fim em grupos, são apenas parte dos sintomas de uma sociedade que se deixou contaminar pelo extremismo. Quando estes tempos de incerteza passarem, deveremos reunir nossos esforços para achar uma resposta, minimamente confiável, à pergunta "onde foi que erramos". Penso que erramos quando não fomos capazes de configurar um sistema político institucional que oferecesse maior resistência ao populismo. Erramos, quando as nossas instituições se omitiram no momento em que deveriam ter tomado providências em face de atos deploráveis na história recente da República - cada um poderá eleger os seus - ou quando não souberam manter a necessária autocontenção, desestabilizando o necessário equilíbrio entre os Poderes. Erramos ao não combater narrativas seletivas, que particularizam negacionismos explícitos. Algo do tipo: tudo o que o meu adversário - que, em verdade, é tratado como inimigo - faz, é errado. Já o que os meus aliados fazem, é pura expressão do exercício legítimo de poder, ancorado pela democracia. Seguimos errando quando não fomos capazes de entender que o exercício da liberdade requer responsabilidade, e que direitos não são absolutos, em particular a liberdade de expressão, tão potencializada pela revolução do mundo digital. O modo como as diferentes plataformas e redes de comunicação atuam, em contraposição à responsabilidade jurídica e social que delas se espera, ainda é tema muito incipiente entre nós. Viver em bolhas de pensamento único nunca foi tão perigoso. O bom debate se esvaiu, o ambiente se tornou tóxico. A intimidação digital, na forma de desinformação deliberada e discursos de ódio, remove os perfis moderados do bom debate. É muito fácil ser hostilizado à cada manifestação no fórum público virtual. Os algoritmos empregados pelas plataformas digitais, cujo funcionamento é guardado a sete chaves, tornam o acesso à informação cada vez mais tendencioso e problemático. Atualmente, no mundo digital não mais importa tanto onde buscamos a informação, mas sim quem decide que tipo de informação receberemos. Este estado de coisas contribuiu para que o Brasil mergulhasse em um clima social insalubre, em que amizades e relações familiares se esvaem, numa fração de segundos. Está mais do que na hora de percebermos que grande parte do comportamento irracional deriva de tentativas de manipulação por parte de pessoas que têm como objetivo primordial chegar ou se manter indefinidamente no poder. Mais do que nunca, verdadeiros estadistas se fazem necessários. É o momento em que todos os poderes públicos devem refletir sobre seus erros, deixando vaidades de lado, adotando a humildade como régua, na busca de pacificação. Não há mais espaço para incendiar o debate. A hora é de trabalhar institucionalmente. Isto começa pelo reconhecimento do resultado das eleições e pela noção de que, na ausência de provas minimamente idôneas, inclusive quanto à sua origem e autoria, não há que se falar em fraude. Nunca ficou tão claro que deslegitimar o jogo eleitoral faz parte de uma estratégia para enfraquecer as instituições e o próprio regime democrático. Ao Poder Judiciário não cabe morder a isca, caindo na armadilha de responder desproporcionalmente, ao ponto de dar munição àqueles que usam dos instrumentos da democracia para, no fundo, eliminá-la. Chegou a hora de praticarmos uma democracia defensiva, uma evolução do conceito de democracia militante,2 para protegermos nossas instituições em um ambiente de paz social. Há que se entender que o recurso aos fins supremos do ordenamento, formulados de modo abstrato e, portanto, passíveis das mais variadas interpretações, não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Requerer intervenção militar, seja qual nome se dê a tão desvairada hipótese, representa não apenas o desconhecimento mais elementar da ordem constitucional democrática, como também a tentativa de subverter as bases do ordenamento jurídico.4 Toda a correção de rumos, por mais complexa que seja, deve seguir os caminhos regulares, que não passam por qualquer tipo de intervenção armada. Já passou o momento de percebermos que à chefia de Estado cabe a função de preservação da unidade estatal. Atualmente, parece que lutamos contra tudo e contra todos. Dentre toda gama de problemas que isso traz, está o fato de não percebermos que no sistema presidencialista de governo a chefia de Estado é exercida em conjunto com a de governo e da administração, atrelada a partidos e ideologias específicos.5 Quando uma única pessoa, em uma democracia, não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional.6 É aqui que entra a importância de um poder moderador, que no sistema presidencialista de governo não se faz presente. E é aqui, também, que muitas vozes se equivocam ao sustentarem que o art. 142 da Constituição Federal,7 que trata das Forças Armadas, seria a solução para impasses como o que estamos vivendo, por meio de intervenção de natureza militar. Não cabe às Forças Armadas exercerem função moderadora. À uma, porque força armada não modera, impõe. À duas, pelo fato de estarem submetidas à autoridade do Presidente da República, em relação de hierarquia. Passou da hora de os estadistas trabalharem para uma reforma institucional que torne a democracia brasileira mais resistente às tentativas de golpe de toda espécie. Enquanto teorias da conspiração permanecerem no centro do debate, o que interessa, de fato, não é posto em pauta. Este é um dos motivos, diga-se de passagem, para se adubar a todo o tempo estes discursos conspiratórios. Fica a reflexão trazida por Barack Obama, em um dos seus grandes discursos, quando pontuou aspectos importantes para a estabilidade democrática.8 A democracia é dura, duvidosa, barulhenta e, por certo, nem sempre inspiradora. Às vezes se perde um argumento e até mesmo a eleição. Quem perde a eleição deve fazer reflexões e aprender com seus erros e, quem sabe, voltar mais forte nas próximas eleições. O que não se pode é colocar em dúvida o processo eleitoral sem argumentos e provas plausíveis. É por isso que Barack Obama conclui: a presunção de boa-fé do povo, nas suas escolhas, é essencial para uma democracia vibrante e funcional. Amar a democracia é saber a hora de passar o bastão. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33. 4 Disponível aqui.  5 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 93ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535. 7 Art. 142 CF. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. 8 Disponível aqui.
Na coluna anterior, com base nos resultados das eleições de 2022, demonstrei que o sistema eleitoral proporcional para eleição de deputados federais gera resultados de difícil compreensão. Um deles é que dos 513 deputados federais eleitos, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação, o que equivale a apenas 4,87% do total.1 Fica claro que, neste sistema, o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto, já que, ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou não gosta. Nesta oportunidade, analiso outro aspecto que é muito ruim no sistema de eleição proporcional: o distanciamento entre candidatos e eleitores e, consequentemente, a dificuldade de se conhecer as propostas de cada um. Um bom sistema eleitoral passa pela facilidade de formação de um juízo seguro quanto às escolhas políticas. O modelo de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas dificulta, bastante, as escolhas dos eleitores. Os candidatos disputam votos de todos os eleitores, nos respectivos estados. É como se cada estado fosse uma única e gigantesca circunscrição, na qual cada eleitor vota em um único candidato a deputado federal e estadual. Números ajudam a compreender a dimensão do problema. Recortando a análise na eleição para a Câmara dos Deputados em 2022, a tabela mostra o número de candidatos a deputado federal que disputaram os votos dos eleitores, em cada estado.2   Estado N.º vagas Deputado Federal N.º de Candidatos Deputado Federal Acre 8 140 Alagoas 9 184 Amazonas 8 173 Amapá 8 154 Bahia 39 776 Ceará 22 414 Distrito Federal 8 216 Espírito Santo 10 201 Goiás 17 391 Maranhão 18 367 Minas Gerais 53 1.103 Mato Grosso do Sul 8 161 Mato Grosso 8 163 Pará 17 323 Paraíba 12 251 Pernambuco 25 474 Piauí 10 177 Paraná 30 632 Rio de Janeiro 46 1.083 Rio Grande do Sul 31 546 Rio Grande do Norte 8 187 Rondônia 8 165 Roraima 8 165 Santa Catarina 16 314 Sergipe 8 169 São Paulo 70 1.540 Tocantins 8 161   Tome-se São Paulo como exemplo: 1.540 candidatos a deputado federal solicitaram votos aos eleitores paulistas. A pergunta é: como conhecer as propostas de cada um, para formar um juízo seguro no momento de votar? A resposta é evidente! Não é possível comparar propostas em um sistema de eleição proporcional, em que uma multidão de candidatos apresenta-se como opção. Mesmo em estados com menor número de eleitores, a dificuldade permanece. No Acre, por exemplo, 140 candidatos à Câmara dos Deputados disputaram votos. Conhecer 140 propostas também é inviável. Na prática, o sistema não permite que o voto seja direcionado à pessoa que tem as ideias mais alinhadas à visão dos eleitores sobre os temas de relevância nacional. É impossível conhecer, ainda que minimamente, as propostas de um número expressivo de candidatos. Se buscarmos saber o que os candidatos pensam sobre as reformas política, administrativa, tributária, trabalhista e previdenciária, além de orçamento público, teremos inúmeras dificuldades de colher tais informações. Muita quantidade de opções, muita dispersão e pouca aproximação. Este é um dos motivos pelos quais a eleição aos cargos de deputados costuma ser deixada de lado pelos eleitores. Muitos acabam escolhendo na última hora, recorrendo a dicas de conhecidos - que na maioria das vezes têm as mesmas dificuldades de escolha - ou votando nos rostos de sempre, apenas porque são conhecidos. Isto ajuda a explicar a baixa renovação na política, quando se leva em conta o elevado índice da insatisfação da população com seus representantes. Apesar de descontentamentos generalizados, nas eleições de 2022 o índice de renovação na Câmara dos Deputados foi de 39%, o que significa que apenas 202 dos 513 deputados são considerados novatos. Já o número de deputados reeleitos é de 294 (57%).3 É inegável a importância de se eleger bons parlamentares para a Câmara dos Deputados, onde os temas relevantes são decididos. Não é exagero falar que a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso de um país passa pelos ombros do Poder Legislativo.4 No entanto, praticamos um sistema eleitoral que dificulta, sobremaneira, a escolha de bons representantes. Salta aos olhos que a saída passa por uma reforma política, que introduza no país um sistema eleitoral distrital para a escolha dos deputados, abandonando a opção pelo atual sistema proporcional. Em um sistema distrital, cada estado é repartido em um número de distritos eleitorais equivalente ao número de cadeiras em disputa. Cada partido indica um único candidato a deputado no respectivo distrito. E cada eleitor poderá votar apenas nos candidatos que concorrem no distrito. Simples assim. O modelo proporciona inúmeras vantagens. Elas começam pela real possibilidade de conhecer as propostas de cada candidato. No lugar de centenas, ou milhares, apenas alguns disputarão os votos no distrito. Os partidos terão que se esforçar para colocar bons nomes na eleição por distrito, sob pena de comprometer a sua representação. Neste modelo, a eleição para a Câmara dos Deputados (e Assembleias Legislativas) torna-se majoritária. É possível que dentro de um distrito se organizem debates entre os candidatos a deputado, de modo semelhante ao que costuma ser feito para os cargos de prefeito, governador ou presidente da república. Os debates podem ser feitos em associações, clubes, universidades, órgãos de mídia ou até mesmo em espaços abertos. As opções tornam-se mais conhecidas e a eleição ao legislativo passa a interessar, pois polariza as candidaturas. Ao aproximar os candidatos dos eleitores, o distrito converte-se em uma espécie de júri que passa a responsabilizar, de forma mais efetiva, o representante eleito, que tem a quem prestar contas pelos seus votos, ao invés de se esconder em um estado inteiro. Além disso, reduz-se, drasticamente, o custo das campanhas, já que a eleição passa a ser feita apenas no distrito e não em todo o estado. Diminui-se, ainda, a influência de fatores intermediários na eleição, como exposição na mídia, financiamentos etc., o que contribui para que novos rostos ingressem na política, a partir da sua vocação. Atualmente, o elevado custo das campanhas dificulta a participação igualitária dos iniciantes na política, porque não são conhecidos pelos eleitores e não obtêm as mesmas facilidades de financiamento público, que os atuais candidatos à reeleição possuem. A lógica perversa do modelo proporcional é que quanto mais cara for a manutenção de uma campanha, mais beneficiados serão os candidatos à reeleição ou aqueles que detêm elevada capacidade econômica. Por fim, um sistema distrital contribui para diminuir a eleição de candidatos com perfil radical, em qualquer um dos espectros ideológicos. Normalmente, no distrito eleitoral não residem eleitores, em número suficiente, dispostos a eleger radicais. Nele convivem pessoas dos mais variados perfis, visões de mundo e preferências. No modelo atual, se inúmeros eleitores dispersos no estado direcionam suas escolhas a um candidato com um perfil radical, na pulverização e soma de votos, ele acaba sendo eleito. Esta é a razão pela qual no sistema proporcional os candidatos tendem a se agarrar em determinadas causas ou corporações, nitidamente defendidas, visando a atrair, em todas as regiões do estado, eleitores que com elas simpatizam. O resultado é a facilidade de eleição de candidatos com perfil extremista, subcelebridades, pessoas conhecidas por trabalharem na mídia, astros do esporte, líderes religiosos e, muito comum na atualidade, os chamados influenciadores digitais. Nas eleições proporcionais a lógica do pertencimento ganha evidência. Se somar a um grupo expressivo atrai votos, independentemente de uma análise minimamente aprofundada da causa. Investir em algo que, decididamente, não vem produzindo bons resultados, não parece acertado. O sucesso da democracia passa por uma efetiva reforma política. No centro do radar está a adoção de um sistema eleitoral distrital. Pode-se debater, se no modelo puro ou misto, mas, inevitavelmente, um sistema que supere as deficiências do atual modelo proporcional. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374903/eleicoes-proporcionais-se-eleger-pelos-proprios-votos-e-excecao 2 https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/ 3 https://www.camara.leg.br/noticias/911393-com-mais-deputados-reeleitos-e-menos-novatos-renovacao-da-camara-sera-de-39/ 4 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374019/o-descaso-dos-eleitores-com-o-legislativo
Concluído o primeiro turno das eleições gerais de 2022 é possível fazer uma análise dos resultados, do ponto de vista da viabilidade do sistema. Na esteira do que escrevi na coluna passada1, sobre a importância da eleição dos membros do Legislativo, centro a análise na composição da Câmara dos Deputados, à luz do sistema de eleição proporcional. Para se analisar os problemas do sistema proporcional é necessário entendê-lo. A sua lógica não é complicada. Complicados são os efeitos que ela gera. Vamos à lógica. O modelo de eleição proporcional centra-se na força de cada partido, dentro da distribuição dos votos válidos, excluindo-se os brancos e nulos. Em um primeiro momento, os votos válidos são computados para cada partido ou federações partidárias, lembrando que as regras vigentes não permitem coligações nas eleições proporcionais. Posteriormente, verifica-se o número de votos que cada candidato recebeu, dentro do partido, no que se costuma denominar de lista aberta. Pelo critério da proporcionalidade os partidos ou federações partidárias que receberam mais votos elegerão mais candidatos e os com pior desempenho, menos. Este é o motivo pelo qual candidatos mais votados por uma agremiação acabam, por vezes, sendo derrotados por outros, que embora com votação nominal inferior, foram eleitos por um partido que, no cômputo total de votos, teve melhor desempenho. Ou seja, no sistema de eleição proporcional é possível que um candidato à deputado menos votado seja eleito, no lugar de outro que teve votação superior. É por isso que no sistema de eleição proporcional o mandato é atribuído ao partido e não ao político. Os resultados são determinados por um conjunto de fórmulas matemáticas, essas sim complexas, a partir do cálculo de dois quocientes. O quociente eleitoral é definido pela divisão dos votos válidos (votos diretos em candidatos + votos apenas na legenda, excluindo brancos e nulos) pelo número de cadeiras em disputa. É ele que determina o número de votos que o partido precisa para eleger um candidato. O quociente partidário é definido pela divisão do número de votos válidos que cada partido ou federação obteve, pelo quociente eleitoral anteriormente calculado. É ele que determina o número total de candidatos eleitos por cada partido ou federação. Portanto, cada eleição possui um quociente eleitoral fixo no respectivo estado, para cada cargo em disputa (deputado federal ou estadual). A partir daí, cada partido na disputa obtém o seu respectivo quociente partidário. O sistema funciona com listas abertas de candidatos, de modo que ao votar em uma pessoa, o voto é atribuído à respectiva legenda pela qual concorre. E assim os partidos vão somando votos. De acordo com as vagas conquistadas pelo quociente partidário, a ordem de eleição é definida pelos candidatos mais votados, dentro do partido. Se o eleitor vota apenas na legenda, está sinalizando que não tem preferência de candidato, mas sim de partido, o que na prática transfere aos demais eleitores a decisão sobre quais candidatos do partido serão, efetivamente, eleitos. Evidentemente que os resultados são números fracionários, que geram sobras de vagas, distribuídas por cálculos complexos, ligados à média de desempenho de cada partido. Os números ajudam a ilustrar a sistemática de uma eleição proporcional. Considerando os resultados divulgados pelo TSE2, tomando-se por base a eleição para a Câmara dos Deputados no ano de 2022, apresentam-se os números aproximados nos seguintes estados. Pelo valor dos respectivos quocientes eleitorais percebe-se o número de votos que o candidato deve somar, para eleger-se pelas próprias forças, sem depender de votos de outros colegas de partido. Por sua vez, o tamanho das bancadas partidárias dependerá do número de votos que o partido ou federação recebeu, o que será determinado pelo quociente partidário, um cálculo a ser feito para cada legenda. A lógica é: quanto mais votos, maior será a bancada de cada partido na Câmara dos Deputados. Eis que vem o dado aterrorizante. Nas eleições de 2022, somente um em cada 20 deputados federais eleitos superou o quociente eleitoral. Significa, na prática, que dos 513 deputados, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, ou seja, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação que concorreram3. O número equivale a 4,87% do total de deputados federais. À guisa de comparação, nas eleições de 2018, 27 deputados federais (5,26%) foram eleitos com votos próprios, o que revela uma tendência no modelo de eleição proporcional. Qual é a consequência disso? A principal é que o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto. Ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou até mesmo não gosta. Pelo complexo critério das sobras de votos, pode contribuir para eleger até mesmo um candidato de outro partido. A pergunta que se coloca é: como uma democracia pode funcionar bem, se o sistema não permite ao eleitor controlar quem está elegendo com seu voto? Se poderia argumentar que os partidos existem para apresentar ao eleitor quadros minimamente homogêneos de candidatos, dentro de um espectro ideológico-programático minimamente uniforme, o que relativizaria este inconveniente do modelo proporcional. Entretanto, a realidade da política partidária brasileira aponta para outra direção. Esta é a razão pela qual, em que pese o descontentamento com os representantes políticos ser expressivo, a renovação sempre se mostra abaixo do esperado ou, ao menos, incompatível com a rejeição que os políticos que já cumprem mandatos possuem. Nas eleições de 2022 a renovação da Câmara dos Deputados ficou em apenas 39%4. Mais da metade, portanto, renovou o seu mandato. Comparativamente, nas eleições de 2018 a renovação atingiu um patamar de 47%5. É claro que a renovação, por si só, não significa aumento ou decréscimo de qualidade da representação política, mas é um indício que o sistema não traduz os anseios da população em geral. Voltarei a explorar estes dados nas próximas colunas. Por ora, fica a reflexão: você concorda com um sistema eleitoral em que o eleitor - peça chave - não tem o controle de quem elege com o seu voto? Democracia sem controle é uma democracia disfuncional. Enquanto não entendermos, às claras, os motivos pelos quais o sistema político brasileiro definha, dificilmente compreenderemos as possíveis soluções. As deficiências do sistema eleitoral praticado no Brasil ocupam um lugar de destaque da prateleira dos motivos que levam ao fracasso da política. A adoção de um sistema eleitoral distrital, que não se confunde com o que se costuma chamar de "distritão"6, está na ordem do dia. Ciente de que sem a boa política não avançaremos na solução dos problemas estruturais brasileiros, só nos resta avançar no estudo de aperfeiçoamentos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 
sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O descaso dos eleitores com o Legislativo

A democracia é um regime complexo. O que funciona bem em um lugar, pode não ter o mesmo sucesso em outro. O êxito de um regime democrático depende de uma série de fatores. Três se destacam. 1. Instituições eficazes e fortalecidas, com uma configuração apta a lidar com as exigências de cada época. 2. Patamares socioeconômicos e culturais adequados, que permitam à população compreender o seu papel na manutenção da democracia. 3. Valores éticos mínimos, que orientem a escolha de bons representantes e mantenham um controle efetivo. Portanto, a manutenção de uma democracia funcional requer constantes investimentos. Quando um dos pilares é fortalecido, os demais são impulsionados, em benefício do todo. Quando um vai mal, os outros tendem a ruir. Por depender simultaneamente de vários elementos, que não são fáceis de serem obtidos, a manutenção da ordem democrática representa um autêntico desafio. O quadro revela que uma democracia não vive apenas de eleições, ainda que o sufrágio universal, livre e justo seja um dos seus traços mais marcantes. Pesquisas revelam que a maioria da população mundial está convencida das vantagens da democracia, ao mesmo tempo em que muitos, em diversos países, estão decepcionados não apenas com os representantes eleitos, mas também com o funcionamento do próprio sistema. Os motivos são claros: problemas na economia, desemprego, ineficácia dos direitos sociais, insegurança, receio do futuro e, logicamente, má administração e corrupção por parte de governos e partidos1. No Brasil, uma característica que ajuda a desprestigiar a democracia é a atitude, dominante na população, de indiferença frente às escolhas para o Poder Legislativo. Às vésperas das eleições gerais, fica mais fácil perceber. A atenção preponderante do eleitor se dirige, quando muito, à figura dos candidatos à presidência da República. São poucas as pessoas que prestam, igual atenção, aos cargos destinados ao Legislativo. Quando somos questionados em quem votamos nas eleições passadas para os cargos de deputado e senador, tendemos a não recordar. Já quando indagados sobre o voto para presidente, a memória costuma estar mais fresca. O fato de o processo eleitoral direcionar os holofotes para a chefia do Poder Executivo, em particular para figura presidencial, coloca os candidatos ao Congresso Nacional em posição secundária. A imensa maioria do eleitorado não pesquisa as opções que se apresentam ao Legislativo, deixando para decidir em cima da hora, muitas vezes recorrendo a dicas de que tem o mesmo déficit. O assunto preponderante nas eleições diz respeito aos candidatos à presidência. Nós vivemos em uma sociedade que não percebe a importância que os congressistas detêm para o desenvolvimento nacional. Esta indiferença tem cobrado um preço elevado. Falta ao povo a noção de que grande parte das reformas que necessitamos, com urgência, são medidas que dependem da vontade dos deputados e senadores. É o Congresso Nacional que detêm a última palavra em assuntos relevantes para a população, como as reformas política, trabalhista, previdenciária, tributária, administrativa, dentre outras. A palavra final em matéria orçamentária, decisiva para o êxito dos direitos sociais e das políticas públicas, também cabe ao Legislativo. A atualização das leis, o enfrentamento de temas sensíveis à nação e o próprio combate à corrupção, que tantos prejuízos gera ao Brasil, passam, igualmente, pelo Congresso. O próprio sistema de freios e contrapesos, responsável pela atuação segura e equilibrada de todos os poderes públicos, encontra nos representantes eleitos papel primordial. Apesar disto, costumamos tratar a escolha dos deputados federais e senadores com desprezo. Igual atitude se reproduz nas eleições no âmbito dos estados. Este cenário se deve a uma série de fatores. Inicia na escolha por um sistema presidencialista de governo, cuja cultura, difícil de remover, tende a colocar e a centralizar na pessoa do Presidente um poder que, em verdade, não possui. Não é exagerado dizer que os presidentes eleitos representam, no imaginário da população, uma figura paternal ou maternal, com poder quase mágico. Passa pelo modelo de eleição proporcional dos deputados, que dificulta as boas escolhas, gerando inegável e ao mesmo tempo perigoso desinteresse por parte da população, sobretudo pelas questões que seguem: a) Um candidato a deputado pode receber votos de qualquer eleitor do seu estado, afastando-o dos seus eleitores; b) Favorece a eleição de candidatos ligados a corporações, instituições ou de celebridades dos mais variados seguimentos, já que o elevado número de votos que se faz necessário para eleger um deputado beneficia tais perfis, em um ambiente de extrema pulverização de candidaturas; b) Torna a campanha excessivamente cara, beneficiando aqueles que detêm poder econômico e os rostos mais visíveis, candidatos à reeleição, diminuindo, assim, a igualdade de chances; c) Pelo fenômeno dos puxadores de votos, ao se votar em um, se elege outro por "tabela", configurando um modelo em que o eleitor, principal ator do processo, não tem controle de quem está elegendo com seu voto; d) Apresenta ao eleitor centenas de opções para o mesmo cargo, tornando impossível conhecer os perfis e as propostas de cada candidato. Isto faz com que o eleitor se sinta confuso e perdido, no momento de escolher. E culmina no fato de que a capacidade funcional dos governos eleitos depende das possibilidades de aprovarem seus projetos perante o Poder Legislativo - a chamada governabilidade, que é costurada por meio de coalizões e ajustes políticos diversos. Apesar disto, a lógica das eleições não é conduzida pela obtenção da governabilidade, mas por um cenário hiperpartidário, que beira o caos e provoca o desinteresse da população pelos candidatos ao Congresso Nacional. Se poderia ainda acrescentar a incompreensível figura do suplente de Senador, eleita na prática sem votos, já que não se revela de forma transparente nas campanhas e, ao substituir o titular, passa a desempenhar a representação em sua plenitude. O que dizer frente à intolerável duração de oito anos para o mandato dos senadores? Ainda que a população eleja um senador visando a facilitar a governabilidade do presidente eleito, pode ocorrer a troca de governo com a inevitável manutenção de quem foi eleito (ou suplente) no pleito anterior. Apesar de todos estes fatores, o povo, em geral, tende a acreditar que os presidentes são responsáveis por todos os acertos ou erros que o país apresenta. Desconhece-se, assim, que o sistema político brasileiro deposita no Congresso Nacional enorme responsabilidade pelas ações e omissões de natureza política. Isso não significa que a escolha de um bom candidato à Presidência seja algo irrelevante. Pelo contrário. Bons presidentes colaboram, em elevada medida, para a obtenção de bons resultados, assim como os maus atrapalham. O poder de agenda dos governos eleitos influencia a pauta dos debates legislativos, auxiliando na aprovação das medidas necessárias à boa condução do país. Mas, repita-se: quem decide, ao fim e ao cabo, são os membros do Congresso Nacional, aqueles que geralmente desconhecemos, cuja trajetória nos é estranha e a atuação é ignorada. Enquanto insistirmos em tratar a eleição dos membros ao Legislativo como uma obrigação de caráter secundário, meramente formal e desinteressante, dificilmente colheremos bons frutos na democracia. Somente por meio de reformas de natureza institucional e política, o quadro vigente poderá ser modificado. Um sistema eleitoral distrital para a eleição dos deputados federais e estaduais seria um ótimo começo. A redução do mandato dos senadores para quatro anos, também é uma medida necessária. A opção por um sistema de governo parlamentarista, que separe as chefias de Estado, de governo e da administração, com foco na governabilidade e na responsabilidade política do chefe de governo, não pode sair do radar das reformas prioritárias. Enquanto as reformas não vêm, todos nós devemos atuar como agentes de transformação cívica. Esta transformação começa pela formação de um juízo seguro, quanto às nossas escolhas eleitorais, em particular no ângulo que mais descuidamos: o Congresso Nacional. __________ 1 HOFMEISTER, Wilhelm. Os Partidos Políticos e a Democracia. Seu papel, desempenho e organização em uma perspectiva global. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer, 2022, p. 25. Disponível aqui.
As comemorações alusivas aos 200 anos da independência do Brasil servem de reflexão para muitas questões. É inegável que, desde então, o país avançou. Entre avanços e retrocessos, o saldo é positivo. O primeiro fato a ser lembrado é que a independência do Brasil foi marcada por uma questão, no mínimo, surpreendente. Enquanto os outros países sul-americanos foram quebrando os vínculos morais que os ligavam aos colonizadores, entre Brasil e Portugal, ao contrário, a independência apagou ressentimentos que provinham da colonização. Ela trouxe, como consequência, maior aproximação espiritual e entendimento, razão pela qual no terreno cultural e artístico os dois países só se uniram depois da separação. A questão da independência ficou no plano meramente político1. A separação entre Brasil e Portugal veio por uma evolução, sem choques. Nas palavras de João Camillo de Oliveira Torres: "como dois ramos de uma árvore que se separam, conservando o tronco comum"2. Contudo, além dos aspectos positivos, a independência não foi capaz de colocar o Brasil no topo dos países com organização institucional privilegiada. Dela não brotaram soluções longas e duradouras para a manutenção de um Estado próspero e com democracia estável. Prova disso são os sucessivos ciclos constitucionais, golpes e crises que, desde então, se anunciaram. Ainda não fomos capazes de consagrar um sistema de governo minimamente apto a colocar o país nos trilhos da racionalidade. É inconcebível que um país com as riquezas naturais e culturais que possuímos ainda sofra com tantos problemas. É igualmente inconcebível que os objetivos fundamentais da República, previstos no art. 3.º da Constituição, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos, não se tornem realidade na vida das pessoas. Grande parte desta inaptidão deve-se à escolha de um sistema político inadequado. Saliente-se: o sistema pesa muito mais que as pessoas que, eventual e transitoriamente o tripulam. Este sistema é composto por decisões equivocadas que vêm se repetindo, em maior ou menor grau, desde o advento da República e que nem a Constituição Federal de 1988, exaltada por muitos como a "Constituição cidadã", foi capaz de consertar. Não é possível que sejamos independentes como nação e, ao mesmo tempo, tenhamos que conviver com situações desprovidas de racionalidade, que não se mostram aptas a colaborar para o bem comum. Várias podem ser elencadas. A opção por um sistema presidencialista de governo, no qual uma única autoridade exerce, simultaneamente, as chefias de Estado, de governo e da administração. Tal situação leva à confusão institucional de confundir órgãos de Estado e de governo, fazendo com que as reclamações contra governos - que são normais e necessárias em uma democracia - acabem se misturando com insatisfações contra o próprio Estado. Esta confusão nos priva, igualmente, da existência de um legítimo poder moderador, que em momentos de graves crises poderia agir de forma legítima na busca de consensos mínimos. Da mesma forma, o sistema presidencialista de governo faz com que um político seja eleito presidente da República, sem que tenha maioria para governar junto ao Congresso Nacional, ao mesmo tempo em que lhe confere a chefia da administração pública federal. A governabilidade do Brasil, quando existe, e de forma precária, se dá às custas do loteamento de cargos na administração, da distribuição de orçamentos secretos, mensalões etc. A busca da governabilidade em um cenário político hostil induz a corrupção. O presidencialismo de coalizão está falido. Ele se transformou em um gerador permanente de crises. Além disto, o orçamento para manutenção dos poderes públicos não condiz com as carências do país e com um estado permanente de pobreza. O orçamento destinado ao funcionamento do Congresso Nacional é elevadíssimo. Mantemos um Senado Federal com três senadores eleitos pelos estados e pelo Distrito Federal, com mandatos de oito anos. Muitos deles são substituídos ao longo desses longos oito anos por suplentes absolutamente desconhecidos da população que, a rigor, se escondem na chapa majoritária. Não há exagero em falar que possuímos senadores sem votos. Mantemos uma Câmara dos Deputados composta por 513 parlamentares, cuja distribuição dos assentos não corresponde, proporcionalmente, à quantidade de eleitores por Estado. O sistema legislativo bicameral se tornou disfuncional no Brasil, seja pela falta de legitimidade democrática dos suplentes de senadores, seja pelo fato de que o igual número de senadores por estado conduz a uma desproporcionalidade na representação política, considerando que ambas as casas detêm o mesmo peso no processo legislativo federal. O sistema eleitoral proporcional, empregado para eleger os deputados federais, faz com que o eleitor não tenha o menor controle de quem elegerá com o seu voto, já que pelas regras dos quocientes eleitoral e partidário pode votar em um e eleger outro por "tabela", que não gosta ou desconhece. Este mesmo sistema faz com que a cada eleição milhares de candidatos se apresentem aos eleitores, sem que seja possível saber quais são as suas propostas, histórico ou outras informações relevantes, aptas a formar um juízo de convencimento mínimo para embasar um bom voto. O custo das campanhas em um sistema proporcional é tremendo, atraindo a necessidade de financiamentos públicos (os famosos "fundões"), que destinam aos partidos políticos verbas significativas, que deveriam ser empregadas em outros setores, de maior interesse para a coletividade, como educação, saúde, segurança etc. A possiblidade de reeleição nos Poderes Executivo e Legislativo traz muito mais desvantagens, do que vantagens. No Executivo, faz com que, desde o primeiro momento, o Presidente eleito assuma o cargo tentado à reeleição, o que favorece comportamentos que se destinam a colocar a máquina pública a serviço de projetos pessoais. No legislativo não é diferente. Além de impedir uma competição justa, pelo fato de que os atuais detentores de mandato eletivo contam com inúmeras vantagens para manter sua exposição pessoal, a possiblidade de reeleição faz com que muitos parlamentares deixem de atuar nas reformas necessárias, temendo as repercussões eleitorais. Além disso, a ausência de rígidos mecanismos de desincompatibilização incentiva que políticos eleitos, tanto para cargos executivos quanto legislativos, não completem os seus respectivos mandatos, para se lançarem em constantes aventuras políticas, o que desqualifica a natureza sagrada do mandato eletivo. Não há como uma democracia funcional sobreviver a tantos obstáculos. Por sua vez, a forma federativa de Estado concentra competências legislativas e orçamentárias de modo desproporcional nas mãos do ente central (União), anulando a essência da federação, que é o princípio da subsidiariedade. Na prática, a federação brasileira descentraliza encargos e centraliza recursos. No tema da racionalização de gastos a arquitetura constitucional vigente consagra a manutenção de inúmeros privilégios e regalias no âmbito dos três poderes, favorecendo o corporativismo que resiste, duramente, às tentativas de racionalização das verbas públicas. No plano judicial a insegurança jurídica reina como marca do sistema, em que a celeridade e a razoável duração dos processos estão longe de ser a regra. No órgão de cúpula do Poder Judiciário o número de decisões monocráticas prepondera sobre as colegiadas, o que afasta a própria natureza de um tribunal, na condição de órgão colegiado. Como se não bastasse, possuímos um modelo híbrido de controle de constitucionalidade das normas, que mistura o tradicional sistema concentrado, por meio do qual a competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma fica restrita a um único tribunal, com o sistema difuso, que permite a qualquer juiz ou tribunal deixar de aplicar uma norma no caso concreto, por considerá-la incompatível com a Constituição. Com isso, cada magistrado no país atua como uma espécie de tribunal constitucional, motivo pelo qual se poderia dizer que não possuímos um sistema de controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, mas sim confuso! Enfim, os pontos sumariamente expostos demonstram que o Brasil, apesar de ter conquistado a sua independência, insiste em manter uma arquitetura institucional de baixa qualidade, em diferentes setores cruciais, cujos efeitos vêm sendo impostos à população ao longo destes 200 anos. A pergunta que fica é: quando seremos capazes de perceber que a falta de reformas institucionais profundas torna o país refém de hábitos e comportamentos incompatíveis com os legítimos objetivos da nação? Ser independente é, acima de tudo, ter consciência do que está errado e de como se pode agir para consertar. Do contrário, o que se tem é dependência. __________ 1 TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 557s. 2 TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 558.
O sucesso de um país pode ser medido pela capacidade de os avanços superarem os retrocessos. Quando se trata de configuração institucional o Brasil, dificilmente, apresenta boas respostas. Não raro, esforços para melhorar as instituições são anulados por medidas desfavoráveis. As regras que regem o processo político e as campanhas eleitorais têm seguido esta lógica. O avanço foi a disponibilização, pelo TSE, de uma ferramenta por meio da qual os eleitores podem visualizar o patrimônio pessoal dos candidatos, denominada DivulgaCandContas1. Ela se insere em uma das medidas que integram o importante regime de transparência nas eleições. Um recurso fundamental para que os eleitores possam visualizar o perfil dos que disputam cargos públicos eletivos. A ideia é permitir a divulgação de informações cruciais sobre as candidaturas, como, por exemplo, declaração e bens dos candidatos, doadores, financiadores etc. O retrocesso é a decisão do TSE que, antes do início das campanhas em 2022, passou a restringir, na referida ferramenta, a divulgação de informações relativas ao patrimônio pessoal dos candidatos. No pleito anterior, em 2020, o site do TSE divulgava três informações sobre o acervo patrimonial dos candidatos: tipo, descrição e valor dos bens declarados. No início da campanha de 2022, por força das resoluções vigentes do Tribunal, a descrição pormenorizada dos bens não estava disponível. O argumento empregado pelo TSE para restringir as informações foi a necessidade de observar as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD2. A Resolução TSE 23.609/20193 estabeleceu, em seu art. 27, I4, que os candidatos podem apresentar suas declarações de bens de forma simplificada, contendo apenas a indicação dos bens e os respectivos valores declarados à Receita Federal, dispensando-se a inclusão de informações pormenorizadas. Esta previsão de declaração de bens de forma simplificada sempre rendeu polêmicas. Nos dias 2 e 3 de junho de 2022, o TSE promoveu audiência pública para debater a aplicação da LGPD nas eleições. Sem surpresa, os partidos, de modo geral, defenderam restringir os dados divulgados pelo Tribunal. Já as associações que militam pela transparência nas eleições se manifestaram pela divulgação efetiva e transparente. Na prática, o TSE acolheu a visão dos partidos políticos, ao não exigir dos candidatos o dever de divulgar uma descrição detalhada dos seus bens. Impede-se, assim, o acesso a informações amplas e transparentes sobre o patrimônio das pessoas, que se apresentam para governar e legislar em um cenário de democracia representativa. De acordo com as referidas resoluções, exige-se dos candidatos apenas o dever de prestar informações genéricas sobre o seu patrimônio, vale dizer, informar que possuem imóveis, veículos ou empresas, sem, contudo, revelar o tipo e local dos imóveis, ano e modelos dos veículos ou o endereço, espécie e ramo de atividade das empresas. Ou seja, por força de um posicionamento do TSE, este controle restou quase esvaziado. O motivo pelo qual a ampla divulgação do patrimônio dos candidatos se mostra como um imperativo dos valores republicanos é evidente. É o único meio que permite aos eleitores acompanhar e, na medida do possível, constatar crescimento patrimonial incompatível com funções previamente exercidas, servindo como efetivo alerta para situações de corrupção ou fraude. É importante perceber que não se trata apenas de um controle sobre incompatibilidade da evolução patrimonial dos candidatos, mas, igualmente, em face de eventuais suspeitas de conflitos de interesse. No instante em que um candidato não precisa detalhar as empresas que possui, como o eleitor poderá aferir se aquele que pede o seu voto poderá legislar em causa própria? Ao omitir informações essenciais, facilita-se o caminho para que um político venha a aprovar leis que beneficiam o setor em que atua, em detrimento de outros. Facilita-se, igualmente, o caminho para políticos priorizarem dotações orçamentárias em áreas onde as suas famílias possuem inúmeros bens, dentre tantas outras possibilidades de caráter não republicano. Não restam dúvidas de que as resoluções do TSE configuram inadmissível retrocesso no dever de transparência das eleições. O quadro se agrava quando se leva em conta o elevado índice de corrupção na política como um todo. A própria defasagem dos valores que costumam ser atribuídos aos bens declarados pelos candidatos, aspecto que na prática não é objeto de fiscalização eficaz, enfraquece, ainda mais, o controle social em face dos que se apresentam a ocupar cargos eletivos. O tema foi objeto de processo administrativo perante o TSE5, que, por maioria, em sessão plenária realizada no dia 18/08/2022, reverteu a decisão em rumo à transparência6, assentando que os dados sobre os candidatos devem ser públicos. Um avanço, em meio a retrocessos. Antes da sessão plenária, o relator do processo, Ministro Edson Fachin, votou pela transparência como regra7. Todavia, propôs a supressão de informações que, na sua ótica, dizem respeito à intimidade e à vida privada dos candidatos, à base de um juízo de ponderação que, inegavelmente, restringe a transparência no processo eleitoral. A ponderação que conduziu ao teor das resoluções do TSE que restringiam o controle dos eleitores partiu de pressuposto questionável. A não divulgação da descrição dos bens dos candidatos fundamenta-se no maior peso que se deve atribuir ao direito fundamental de proteção de dados pessoais, focado na inviolabilidade da privacidade, em relação ao que se atribui ao princípio democrático em sentido amplo. Na prática, pelo entendimento que vigorava no TSE, a proteção da privacidade prevaleceu sobre o direito dos eleitores à formação de um amplo convencimento sobre os candidatos, sobre o controle da legitimidade do pleito e sobre a própria noção de empoderamento pelo controle social. A ponderação de bens constitucionais situa-se no núcleo do processo constitucional. Quando se avaliam princípios colidentes de modo desproporcional, com o resultado de um sufocar outro, o achado jurídico será marcado não apenas por imprecisão, mas, igualmente, pela incapacidade de gerar bons frutos para a coletividade. Como bem observado pelo Ministro Fachin, as diretrizes emanadas da LGPD, que, em verdade, são fruto do próprio reconhecimento da proteção de dados como direito fundamental8, devem ser compreendidas à luz da realidade particularizada da dinâmica eleitoral. É justamente a dinâmica eleitoral brasileira, bem conhecida da população, que recomenda um olhar cauteloso. Isso porque deve levar em elevada consideração os riscos gerados ao processo eleitoral pela falta de uma fiscalização efetiva dos candidatos, que se apresentam à população para conduzir os destinos do país. E esta ponderação, ao concluir pela possibilidade de ocultação de informações essenciais à formação do convencimento do eleitorado e ao controle da lisura das eleições, incorre em equívoco de avaliação dos bens constitucionais em jogo. Ponderações equivocadas trazem consigo amplas consequências para o ordenamento jurídico. Isto ocorre pela ampliação dos espaços de discricionariedade decisória, que derivam do sopesamento de interesses opostos frente a normas de conteúdo vago que, não raro, exprimem interesses conflitantes entre posições jurídicas diversas9. A ponderação de bens de hierarquia constitucional somente será compatível com a segurança jurídica, quando o seu resultado for marcado por uma mínima previsibilidade, ainda que o seu grau seja passível de discussão. No caso em exame, a interpretação do TSE apartou-se desta previsibilidade e da própria segurança jurídica. Em diversas oportunidades, o STF ponderou o direito fundamental à privacidade frente aos princípios constitucionais da Administração pública e ao direito fundamental de acesso à informação. Conhecidos são os casos que envolviam a constitucionalidade da divulgação dos vencimentos de servidores públicos nos chamados portais de transparência10, casos que têm muito em comum com a temática ora analisada. Nestes julgados o STF concluiu que: A remuneração bruta dos servidores públicos enquadra-se no conceito de informação de interesse coletivo ou geral, expondo-se, portanto, à divulgação oficial. A divulgação da remuneração dos servidores públicos não expõe a sua intimidade a um patamar que justificasse as exceções de não divulgação, tais como a segurança do Estado ou do conjunto da sociedade. Não cabe falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação de vencimentos dizem respeito a agentes estatais agindo "nessa qualidade" (art. 37, § 6º CF). Quanto à segurança física dos servidores, seja pessoal, seja familiar, claro que ela resultará um tanto fragilizada com a divulgação nominal dos dados. Contudo, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. A prevalência do princípio da publicidade administrativa é um dos mais altaneiros modos de concretizar a República, enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado.  O "como" se administra deve preponderar sobre "quem" administra a coisa pública. Esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da República. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. Ou seja, quando estava presente a ponderação entre o direito à privacidade e à própria segurança pessoal dos servidores públicos, o STF entendeu, de forma clara e objetiva, que o interesse social deveria prevalecer sobre o privado. Na temática eleitoral o TSE estava atuando em direção contrária. Ao restringir o acesso dos eleitores a informações sobre o patrimônio dos candidatos, as resoluções do Tribunal não lograram êxito em construir uma interpretação da Constituição Federal, tampouco da LGPD, adequada às nuances e dificuldades que o processo eleitoral brasileiro impõe aos eleitores em termos de controle de quem será eleito. A postura do TSE enfraquecia, assim, dois dos mais basilares fundamentos da República: a soberania popular, como fundamento de origem da democracia e a cidadania, como seu fundamento de exercício (art. 1.º, I e II CF). Há que se perceber que a necessidade de controle social sobre as candidaturas deve servir de vetor interpretativo ao alcance das garantias constitucionais e legais relativas à disciplina de proteção de dados pessoais. Com isso, não se advoga que todo e qualquer dado pessoal dos candidatos deva ser revelado, como números de telefone, seus contatos, ou registros médicos, por exemplo, mas que as informações relativas à descrição pormenorizada do seu patrimônio são indispensáveis para um controle social efetivo. Reconhecer ao eleitorado a prerrogativa de conhecer o mais detalhadamente possível o perfil dos que lhe pedem votos, passa pela análise de quais informações possuem significado para esta escolha. Trata-se de informações que podem ter impactos na privacidade destes candidatos, mas que, por seu turno, têm inegável influência na escolha do eleitorado e na transparência do processo eleitoral. Dentre elas, indiscutivelmente, está a relação, mais detalhada possível, do patrimônio pessoal e empresarial de cada um. Como observado pelo STF, é até possível concluir que parte destas informações possa acarretar cuidados adicionais na manutenção da segurança pessoal dos candidatos. Todavia, este é o preço que se paga pela natureza e relevância da função de representação política, que devem motivar a participação na disputa eleitoral. É certo que a honra e responsabilidade de exercer cargos públicos eletivos sempre impõem certos sacrifícios, que devem ser proporcionais. A mera divulgação do acervo patrimonial dos políticos está longe de qualquer desproporcionalidade. Pelo contrário, desproporcional é a sua ocultação. No caso, as resoluções sobre o tema então vigentes no TSE invertiam esta lógica. Ao proporem um modelo que sonegava informações essenciais à formação do convencimento do eleitorado, acabavam por privatizar os benefícios (privacidade) e socializar os prejuízos (déficit fiscalizatório), em detrimento da coletividade. A presente reflexão propõe, assim, um sério e inevitável debate acerca da própria identidade republicana. Essa questão só será vencida, caso se considerar que o poder de um tribunal - e, por assim dizer, o seu próprio prestígio - depende da força de convencimento (Überzeugungskraft) dos argumentos empregados nas suas decisões11. No centro da lógica do discurso jurídico está o argumento que sustenta as escolhas valorativas que se apresentam no caso concreto12. A ponderação é considerada a "escola superior" da jurisprudência, mas somente quando ela é executada de modo materialmente justo e racional. É verdade que a cultura de proteção de dados está em construção no Brasil e que, por certo, ainda estamos atrasados no tema. Também é verdade que não é simples obter respostas prontas e acabadas, para conflitos que envolvem bens constitucionais relevantes, como a inviolabilidade da privacidade e o direito de fiscalização das opções políticas em um processo eleitoral. Entretanto, não há como desconsiderar que a interpretação das garantias constitucionais não pode se dar de forma dissociada do terreno em que são projetadas. As necessidades de depuração, de preservação dos valores republicanos e de construção de instituições minimamente aptas aos desafios presentes e futuros têm que servir de norte nesta difícil equalização. O atual entendimento do TSE, a partir da sessão plenária de 18/08/2022, é um alento na busca da transparência das eleições. O Tribunal deixou claro que a partir da Constituição emerge um dever do Estado de garantir a livre informação da coletividade, imprescindível para o interesse público e em limitação ao particular, que se deixa fundamentar no princípio da transparência. Se poderia argumentar que o TSE poderia ter avançado ainda mais na transparência, pelo fato de que, sob o argumento de garantir a segurança pessoal dos candidatos, manteve o sigilo sobre dados relativos aos endereços completos, telefones e e-mails pessoais. A crítica poderia repousar na manutenção da ausência de obrigação de os candidatos indicarem seus endereços de modo completo. Esta restrição, bem ou mal, dificulta o acesso a informações sobre o patrimônio pessoal dos candidatos. E, de certa forma, ingressa em contradição com observações constantes na tese vencedora, em particular no seguinte sentido: 1. No caso da divulgação de bens dos candidatos, há necessidade da total publicidade. 2. O princípio da transparência afirma-se como um dos vetores imprescindíveis à administração pública, conferindo-lhe absoluta prioridade na gestão administrativa e garantindo pleno acesso às informações a toda a sociedade. Por outro lado, de forma positiva, o TSE entendeu que não deve existir limite de tempo para que os dados divulgados estejam acessíveis à sociedade. Trata-se de questão fundamental, para evitar que se criem janelas temporais que impeçam a correta apreciação da evolução patrimonial dos postulantes a cargos políticos eletivos. Assim, no cômputo geral, a evolução jurisprudencial é positiva. A partir de agora, impõe-se ao TSE a tomada de imediatas providências de índole técnica e administrativa, para que tais informações, até então sonegadas, sejam imediatamente disponibilizadas ao eleitor na ferramenta de controle. Para efeitos de conclusão, não se deve interpretar o direito fundamental a proteção de dados pessoais como um fim em si mesmo, mas como uma garantia ligada ao livre desenvolvimento da personalidade, que se projeta no contexto de outros direitos e garantias, de mesma hierarquia. É importante que a interpretação deste direito fundamental e da própria LGPD avance para compreender que, em uma República democrática, dados gerais não podem, em todas as situações, ter idêntico tratamento que dados eleitorais. Para tanto, basta perceber que é a qualidade do corpo legislativo, fruto do resultado das eleições, que impacta na própria compreensão e realização dos direitos fundamentais. A LGPD cumpre a nobre finalidade de garantir o direito à autodeterminação informativa, protegendo a liberdade, a privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural na condição de sujeito vulnerável frente ao tratamento de dados pessoais. Esta meta, contudo, não pode ser obtida por meio da manutenção de privilégios, que aumentem a vulnerabilidade da própria sociedade. Recorrer à LGPD para esvaziar as possiblidades de o cidadão formar o seu autêntico convencimento no processo eleitoral, mediante pleno direito ao controle das opções eleitorais asseguradas pelo fundamento republicano da soberania, implica subverter os próprios pilares da legislação de proteção de dados, baseados nas noções de liberdade e vulnerabilidade. Trata-se de medida contraproducente, conflitante com parte significativa dos princípios constitucionais que dizem respeito à manutenção da ordem democrática. Em matéria de eleições a transparência, de forma geral, deve se sobrepor à privacidade. Entendimento contrário revelaria a própria inaptidão para ocupar cargos públicos eletivos, cuja relevância e responsabilidade são indiscutíveis. Trata-se de compreender que a mera pretensão de ingresso na função eletiva e temporária - já antes do seu exercício efetivo - traz consigo a sujeição a um regime jurídico próprio, no qual se insere o encargo de relativizar a proteção de certos dados pessoais, que são considerados relevantes para que o eleitorado possa realizar um juízo minimamente seguro quanto às suas escolhas. Em debates como o ora proposto, argumentos convincentes podem até gerar descontentamento pela parte vencida em uma controvérsia, situação normal e imaginável em um cenário de dúvidas, mas, por regra, não um sentimento de desconfiança no sistema. A forma como os candidatos vêm ocultando informações relativas ao seu acervo patrimonial, pelo contrário, gera um inegável sentimento de desconfiança na lisura do pleito. Urge que o TSE siga avançando em favor da manutenção da soberania e da cidadania, de modo a fortalecer o empoderamento e o controle social dos eleitores. Trata-se de medida voltada a garantir a efetividade e a mudança de um modelo de democracia, em direção republicana e não personalista, dentro da lógica de se afastar da nefasta cultura de apego ao poder e de manutenção de privilégios. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Com redação dada pela Resolução TSE 23.675/2021. Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 A EC 115/2022 acrescentou ao art. 5º da CF o inciso LXXIX, que assegura, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, como um direito fundamental.  9 HEUN, Werner. Funktionell-rechtliche Schranken der Verfassungsgerichtsbarkeit. Reichweite und Grenzen einer dogmatischen Argumentationsfigur. Baden-Baden: Nomos, 1992, p. 10. 10 STF, AR-SS 3.902/SP, Rel. Min. Ayres Britto, DJ 03/10/2011; SL 689/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 14/04/2013; ARE 652.777/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 01/07/2015. 11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 567. 12 ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. 2. Auflage. Frankfurt: Suhrkamp, 1990, p. 147.
O superendividamento é problema complexo, que arruína as finanças de um considerável número de pessoas, que não conseguem se livrar de dívidas relacionadas ao consumo. Ao projetar as dívidas acima da capacidade de pagamento, o superendividamento representa uma efetiva ameaça ao mínimo existencial destes consumidores, que passam a se ver privados do acesso aos itens de primeira necessidade. Um dos traços marcantes do superendividamento é criar um grupo de devedores cativos, que passam a depender de sucessivos empréstimos, dentro da lógica de se prender, indefinidamente, a um grupo de instituições financeiras. Eterniza-se um problema, ao tornar o inadimplemento constante na vida de muitas famílias. Estudos dão conta de que milhões de pessoas no Brasil não conseguem efetivar o pagamento das suas dívidas. Fala-se que sete em cada dez brasileiros têm renda inferior aos gastos mensais, em um cenário em que cerca de 75% da população apresenta algum tipo de dívida1. É fato que as famílias brasileiras permanecem altamente endividadas e o quadro de inadimplência não para de crescer2. É fácil perceber que o superendividamento, além de colocar em risco o mínimo existencial das pessoas, ameaça a própria economia do país. Isso torna o problema um assunto de direito constitucional, considerando que um dos princípios da ordem econômica (art. 170 CF) é o asseguramento da existência digna, conforme os ditames da justiça social. Com base neste complexo quadro, foi publicada, em 1º de julho de 2021, a lei 14.181, conhecida como lei do superendividamento3. A norma atualiza do Código de Defesa do Consumidor, visando a aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor, dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. O escopo foi o estabelecimento de um novo regime de prevenção e tratamento do superendividamento no Brasil, baseado em práticas internacionais. A norma possui a natureza de política pública de fomento à concessão responsável de crédito, educação financeira e de promoção de conciliação por meio de planos de pagamento que permitam o pagamento das dívidas4, de forma racional. Trata-se de um consenso legislativo em torno da necessidade de se preservar uma reserva de renda voltada ao sustento do consumidor superendividado, assegurando a manutenção da sua dignidade. De forma equilibrada, a lei protege apenas o consumidor pessoa natural que age de boa-fé, que se vê impossibilitado de pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, sem comprometer seu mínimo existencial (art. 54-A, § 1.º CDC). A questão é que a Lei do Superendividamento deixou a cargo do Poder Executivo a regulamentação do que seria uma quantia mínima, que na negociação das dívidas dos consumidores deveria ser preservada, de modo a não comprometer o sustento e a dignidade dos endividados. Eis que, no dia 26 de julho de 2022, é publicado o decreto nº 11.150, que, dentre outros pontos problemáticos, fixa um valor irrisório e defasado, como caracterizador do mínimo existencial. Estabeleceu-se, em seu artigo 3º, que no âmbito da prevenção, do tratamento e da conciliação administrativa ou judicial das situações de superendividamento, considera-se mínimo existencial a renda mensal do consumidor pessoa natural equivalente a 25% do salário-mínimo vigente na data de publicação do Decreto5. Surge, portanto, uma evidente inconstitucionalidade. Ao fixar um valor irrisório como definidor do que seria a manutenção da garantia do mínimo existencial das pessoas endividadas de boa-fé, o ato regulamentar aparta-se da natureza de norma secundária, subordinada à lei. Ele esvazia, completamente, o núcleo essencial do dever de proteção estatal em favor dos consumidores superendividados. São três situações que evidenciam, claramente, a incompatibilidade do decreto 11.150/2022 com a lei do superendividamento, que acabam por gerar uma crise de legalidade e ferir, frontalmente, inúmeros preceitos fundamentais da Constituição Federal. 1. A fixação do mínimo existencial em patamar equivalente a 25% do salário-mínimo, para fim de tratamento do superendividamento, afasta-se da realidade de qualquer família brasileira, mostrando-se, desde a sua edição, completamente defasado, apto a perpetuar inaceitável situação de miserabilidade. Tomando-se por base o valor do salário-mínimo no ano de 2022 (R$ 1.212,00), o ato regulamentar considera como mínimo existencial, a ser protegido da cobrança de dívidas, a renda mensal do consumidor equivalente a R$ 303,00. O que uma família pode fazer, no mês, com tão insignificante quantia? Em que medida pode ter assegurada a sua existência digna, considerando o custo de vida mais singelo? Evidentemente que nada! 2. O Decreto restringe a abrangência da Lei 14.181/2021 e, consequentemente, do próprio Código de Defesa do Consumidor. Isso ocorre pelo fato de o Decreto estabelecer uma série de situações de inadimplemento, que não deverão ser computadas na aferição da preservação e do não comprometimento do mínimo existencial (art. 4º, § único), sendo que, em nenhum momento, há autorização, pela lei, para que tais exclusões sejam levadas a efeito nas negociações decorrentes da repactuação das dívidas. 3. O decreto, em seu art. 4º, I, "f", afasta o direito do consumidor à nova renegociação por superendividamento, em que pese existir na lei expressa autorização neste sentido, após o decurso do prazo de dois anos da repactuação originária (art. 104-A, § 5º do CDC, com redação dada pela lei 14.181/2021). Estas três situações, dentre outras, comprovam que o Decreto 11.150/2022 aparta-se da natureza de uma autêntica norma regulamentar, adquirindo as feições de um verdadeiro ato normativo autônomo, situação que justifica o exame de sua constitucionalidade em abstrato, à luz de preceitos fundamentais da Constituição. Ao limitar a abrangência da norma primária, restringindo desproporcionalmente seu conteúdo, criando situações não previstas pelo legislador, ferindo o conteúdo essencial de inúmeros preceitos fundamentais da Constituição e mitigando deveres estatais de proteção de hierarquia constitucional, estabelece-se uma situação normativa que extrapola a mera questão de legalidade, disposta na relação lei e decreto, para se adentrar na inegável violação da Constituição Federal. A incontestável incompatibilidade do Decreto 11.150/2022 com a ordem constitucional emerge a partir da violação dos seguintes preceitos fundamentais da Constituição. Art. 1º, III, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República; Art. 2º, pelo fato de a regulamentação executiva extrapolar os limites definidos pelo legislador; Art. 3º, I e III, por se apartar dos objetivos fundamentais da República voltados à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza, da marginalização e à redução das desigualdades sociais e regionais;  Art. 5º, XXXII, por esvaziar o dever do Estado de proteger o consumidor;  Art. 6º, por privar as famílias de seus direitos sociais básicos, consolidando situações de miserabilidade; Art. 7º, IV, por promover um recorte defasado e desproporcional no valor do salário-mínimo para efeito de proteção do mínimo existencial, considerado minimamente necessário para suportar as necessidades básicas dos consumidores; Art. 84, IV, por caracterizar a extrapolação do poder regulamentar de competência do Chefe do Poder Executivo Federal, ao esvaziar o conteúdo da lei 14.181/2021; Art. 170, caput e incisos V e VII, por ignorar que a ordem econômica tem como fundamento assegurar a existência digna, com base na justiça social, fundamentada nos princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades regionais e sociais. Ao colocar a garantia do mínimo existencial em patamar totalmente desconectado da realidade, o Decreto 11.150/2022 incorre em flagrante contradição com as disposições constitucionais e legais vigentes, que devem condicionar os limites do poder regulamentar. A partir do instante em que um decreto desconfigura o espírito de uma lei, opera-se uma cisão normativa incompatível com a ordem constitucional. Não é dado a Presidente da República, no exercício do poder regulamentar, desconfigurar, pela via de um ato administrativo, uma construção legislativa vigente, sobretudo quando a lei em questão decorre do dever fundamental do Estado de proteger os consumidores. O fato de uma lei deixar a cargo do Chefe do Poder Executivo um espaço de configuração regulamentar, voltado a proporcionar as melhores condições para a sua execução, não pode significar uma espécie de "carta branca", apta a descontruir a própria gênese da inovação legislativa. Ao restringir, desproporcionalmente, o que se considera mínimo existencial, para efeitos de prevenção e de tratamento do superendividamento, o Presidente da República incorre em abuso do exercício do seu poder regulamentar. Não se ignora o livre exercício de competência constitucional, fundamentada na discricionariedade política do Chefe de Governo. O que se aponta é o total descompasso entre o espírito da lei - que atrai a regulamentação - e a função regulamentar. A tese da extrapolação do poder regulamentar resta igualmente comprovada à luz da hierarquia jurídico-fundamental dos bens envolvidos. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 consagrou um dever de proteção do consumidor (art. 5º, XXXII). Um legítimo direito fundamental, construído na forma de um dever de proteção estatal. Não se trata de recado ao legislador ou de mera recomendação, mas sim de uma norma dotada de máxima cogência no ordenamento jurídico, considerando que se afirma como pressuposto da garantia de intangibilidade da dignidade humana. O Decreto 11.150/2022, ao restringir, de forma desproporcional, o patrimônio das famílias brasileiras que deve ser protegido contra o superendividamento, a partir de uma noção absolutamente defasada de mínimo existencial, desconsidera a função de proteção dos direitos fundamentais. Aceitar um enquadramento do mínimo existencial no patamar de apenas 25% do valor do salário-mínimo, para efeito de proteção contra o superendividamento, significa, na prática, esvaziar todo o esforço constitucional de impor ao Estado o dever de proteger aquele que é o sujeito decisivo para qualquer economia, detentor de sucessivas e marcantes vulnerabilidades: o consumidor. Importa deixar claro que não se advoga a tese de ausência de discricionariedade política por parte do Chefe do Poder Executivo Federal, no momento de regulamentar as leis. O que se defende é que esta discricionariedade política não pode ser ilimitada, ao ponto de desconfigurar, totalmente, a essência da lei. Entendimento contrário ignoraria, até mesmo, o princípio da separação dos poderes, pilar indissociável da democracia e da estabilidade das instituições políticas. O Decreto 11.150/2022, sob a justificativa de proporcionar a regulamentação exigida pela Lei 14.181/2021, esvazia, demasiadamente, a vontade manifesta pelo legislador, em atenção às exigências constitucionais vigentes. Fere, assim, o conteúdo essencial do direito fundamental de proteção do consumidor em matéria de tratamento e combate ao superendividamento. O resultado é o comprometimento do mais importante fundamento da República: a intangibilidade da dignidade da pessoa humana e do mínimo existencial. A lei do superendividamento insere-se totalmente nesta lógica de proteção, que veio a ser deturpada pela regulamentação executiva. Um longo esforço de natureza política, associativa e jurídica, que lutou contra as mais intensas e diferentes pressões, mas que, ao final, conseguiu ser aprovada por reunir um legítimo consenso parlamentar. Ao reduzir o tratamento do superendividamento a um patamar meramente formal, defasado e distante da realidade, o decreto presidencial ignora a própria função dos poderes públicos ditada pela Constituição. No lugar de proteger o consumidor do superendividamento, protege o superendividamento contra o consumidor, em uma lógica, de todo, insustentável. O que se quer combater, com o rechaço à regulamentação desproporcional, é que um dever de proteção estatal tão relevante, como a proteção do consumidor, deixe de possuir significado prático para a coletividade. Portanto, a essência da lei 14.181/2021, que atualizou o Código de Defesa do Consumidor, inserindo diretrizes voltadas à prevenção e ao tratamento do superendividamento, não pode ser anulada pela via da regulamentação executiva, que contribui para a manutenção de um estado permanente de miserabilidade. Do exposto, evidencia-se que a total falta de conexão entre a norma primária e o poder regulamentar extrapola a questão relacionada à chamada crise de legalidade, que advém da falta de sintonia entre a lei e o decreto, passando, também, a gravitar na inegável crise de inconstitucionalidade. Conclui-se que o decreto 11.150/2022 deve ser retirado do mundo jurídico, dando-se lugar à nova regulamentação, que, desta feita, observe, de fato, o significado do mínimo existencial, sob pena da manutenção de um flagrante estado de inconstitucionalidade. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Ao atingir a marca de 125 emendas constitucionais, é possível afirmar que ainda possuímos uma Constituição rígida? A doutrina costuma enquadrar a CF/88 como rígida, por exigir um procedimento dificultoso de alteração, em relação ao que se mostra necessário para alteração das leis infraconstitucionais. Em pensamento clássico, Pinto Ferreira afirmava que a supremacia da constituição decorre do seu caráter rígido, considerada como "pedra angular em que assenta o edifício do moderno direito político"1. O ponto diz respeito às limitações procedimentais ao poder de reforma da Constituição. Pelas regras vigentes, a Constituição somente poderá ser emendada por meio de quatro votações, duas na Câmara dos Deputados, duas no Senado, exigindo-se em todas aprovação por pelo menos três quintos dos respectivos membros (art. 60, § 2º CF/88). Aparentemente, trata-se de exigência que confirma o caráter rígido da lei Maior. Contudo, a prática não confirma esta realidade. O primeiro semestre da sessão legislativa de 2022 bateu o recorde de alterações na Constituição, em um único ano. Até o início do recesso parlamentar de inverno (julho de 2022) foram aprovadas onze emendas constitucionais. O cardápio das EC aprovadas no primeiro semestre de 2022 é amplo2 e evidencia que o processo de alteração da Constituição está banalizado. O Congresso Nacional chegou à proeza de promulgar três emendas constitucionais em um único dia (EC 123, 124 e 125). Algumas são votadas e aprovadas de forma relâmpago e, por vezes, na calada da noite. Esta forma de alterar a Constituição, de afogadilho, independentemente de maior debate ou reflexão, é preocupante e revela como o princípio da rigidez constitucional encontra-se ameaçado no Brasil. O Estado democrático de direito encontra seu fundamento na legitimidade de uma Constituição rígida, dotada de supremacia3. A ideia de um procedimento diferenciado para aprovação das emendas deriva da necessidade de cautela no momento de promover alterações na Constituição. Visa a garantir a permanência da identidade da lei maior, que define a conformação essencial do Estado. Quando se percebe a facilidade com que são aprovadas emendas constitucionais no Congresso Nacional, fica claro que essa cautela não mais se verifica. As sucessivas alterações da Constituição seguem a lógica da conveniência e oportunidade políticas. Os debates costumam ser esvaziados e pouco transparentes. Os ritos são constantemente atropelados por meio de manobras regimentais. A regra das duas votações em cada casa legislativa não adota um lapso temporal mínimo para o amadurecimento das ideias. A estratégia é a pressa. Ao exigir duas votações em cada casa legislativa para aprovação de uma emenda, a Constituição parte de uma constatação evidente: a necessidade de um consenso amadurecido sobre os respectivos temas. A aprovação relâmpago de emendas constitucionais vai em direção oposta, ignorando que a limitação do poder decorre de sua sujeição irrestrita à Constituição4. Quando a Constituição passa a ser sistematicamente alterada, de forma descompromissada, sem o devido debate, abre-se caminho para um processo de erosão da identidade constitucional de uma nação. Além disto, a prática reforça o caráter analítico do texto constitucional. Esta é outra questão, típica da realidade constitucional brasileira, cuja análise não pode ser deixada de lado. O elevado número de emendas está diretamente relacionado à natureza prolixa da Constituição. O problema é que a opção por uma Constituição analítica está longe de ser a mais acertada. Ela favorece um sentimento de banalização constitucional, à medida que matérias importantes passam a dividir espaço na Constituição com outras, que não detêm natureza constitucional propriamente dita. Na prática, quanto mais analítico for o texto da Constituição, maior será o número de emendas que enfrentará. Uma Constituição analítica não se limita a se ocupar dos direitos fundamentais, da organização estatal e do estabelecimento das linhas basilares para a atuação dos poderes públicos. Pelo contrário, ingressa em detalhes, que poderiam estar devidamente albergados pela legislação infraconstitucional. Como os detalhes são mais suscetíveis a alterações no decorrer do tempo, nenhuma Constituição analítica costuma sobreviver sem um número considerável de emendas. Na realidade brasileira, a questão atingiu contornos desproporcionais, originando a máxima de que a nossa lei maior é uma "colcha de retalhos". Um equívoco que normalmente se comete é confundir a relevância de um tema com a necessidade de sua constitucionalização. Deve ficar claro que nem todo tema juridicamente relevante merece o status de norma constitucional. A hierarquia constitucional não decorre apenas e tão somente da relevância da matéria jurídica. Se o critério fosse apenas o de relevância, boa parte das regulamentações do CC/02, por exemplo, deveria ser transportada para o plano constitucional, o que não é de se cogitar. A questão está na vocação normativa. Existem matérias que estão vocacionadas, por sua natureza, ao ideal de garantia de direitos fundamentais e aos elementos básicos da configuração estatal. Outras não. As constituições prolixas, como a brasileira, chamam ao debate a questão de que nem tudo que está no texto constitucional mereceria, em rigor, a dignidade formal da Constituição5. O problema é que toda matéria, quando formalmente inserida na Constituição, passa a gozar do status de norma constitucional, passando a se sujeitar às limitações impostas à manifestação do poder constituinte derivado. Ou seja, para serem alteradas, dependem da aprovação de emendas constitucionais. Além disso, o excesso de constitucionalização deturpa, de certo modo, a própria democracia, pelo fato de retirar da deliberação ordinária do poder legislativo uma série de assuntos, que lá poderiam estar bem acomodados. A análise de quais matérias deveriam estar presentes na Constituição esbarra na dificuldade de que não existem critérios seguros capazes de permitir, em todos os casos, a distinção entre o que é verdadeiramente constitucional e o que não é6. É inegável a existência de um elemento de tensão entre a rigidez e a elasticidade da ordem constitucional7. Está em jogo a preservação da substância, expressa pela manutenção da identidade da Constituição8. Todavia, uma certa flexibilidade é a chave para uma interpretação do sistema que assegure o equilíbrio9. Isso porque se por um lado não se deve exagerar nas alterações, sobretudo as que são aprovadas de forma irrefletida, por outro, há a necessidade de se manter a Constituição aberta ao tempo. A elasticidade é que possibilita a superação de uma grande diversidade de situações problemáticas, que se transformam ao longo da história, adaptando a ordem constitucional às mudanças advindas da evolução e do desenvolvimento10. Esta realidade não nega que uma das distinções do campo de atuação dos poderes constituintes originário e derivado reside na constatação de que o último - que promove as emendas - atua como um poder apoiado pela Constituição (verfassungsgestützter Gewalt)11. Porém, quando se passa a modificar o texto constitucional com uma facilidade cada vez maior, suprimindo o debate democrático, passa-se a adentrar em um terreno perigoso, que considera a Constituição uma mera formalidade. Nesta hipótese, o poder constituinte derivado deixa de se manifestar apoiado pela Constituição, passando a atuar como um poder desvinculado. De fato, a seguir assim, deixaremos de ter uma constituição rígida, se é que ainda possuímos uma. O tema abre o debate para a necessidade de um enxugamento das matérias constitucionais, que aposte na qualidade e não na quantidade. _____ 1 PINTO FERREIRA, Luiz. Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 90. 2 Direito fundamental à proteção de dados pessoais, imunidade de IPTU em favor de templos religiosos, regras para promoção da participação política das mulheres, autorização de emprego de radioisótopos para pesquisa e uso médicos, mitigação dos critérios de responsabilidade fiscal dos entes federativos, política remuneratória em favor dos agentes comunitários de saúde, regime especial das zonas francas, elevação da idade máxima para a nomeação de magistrados em tribunais, reconhecimento do estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, instituição do piso salarial das carreiras de enfermagem e, finalmente, demonstração da relevância das questões de direito federal como critério de admissão de recursos especiais junto ao STJ. 3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 124. 4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 116. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.125s. 6 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1.126. 7 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62. 8 KIRCHHOF, Paul. Die Identität der Verfassung. In: Isensee, Josef; Kirchhof, Paul. (Hrsg.). Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland (HStR). 3, völlig neub. und erw. Auf. Heidelberg: Müller, Band II, 2004, § 21, Rdn. 1ss. 9 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 62. 10 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdnr. 23 e 36ss. 11 HERDEGEN, Matthias. Grundgesetz Kommentar (Art. 79 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 96 EL. November 2021, Rdn. 74.
Na coluna passada analisei uma polêmica decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), que entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir críticas em face de um partido alemão de extrema direita, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo1. A decisão levou em conta o fato de a manifestação de Merkel ter sido proferida por ocasião de uma visita oficial ao exterior. Por apertada maioria (5x3) o Tribunal decidiu que: 1. A manifestação da chefe de governo (Primeira-Ministra) violou o direito do partido a uma competição política justa. 2. A Chanceler violou a sua obrigação de agir de forma neutra no exercício da função de chefe de governo. Muito se pergunta sobre a eficácia da decisão do TCF. Por se tratar de um procedimento de litígio entre órgãos em âmbito federal, a decisão, na prática, tem mais efeito moral do que prático, já que nem mesmo um ressarcimento de despesas do procedimento foi imposto à Merkel. Não se fala, portanto, em uma condenação do ponto de vista indenizatório, de restrição de direitos ou algo parecido. O efeito moral se dá, sobretudo, na demarcação de uma posição do TCF quanto à conduta dos chefes de governo, posição que, por não ser majoritária, poderá ser revista no futuro. A decisão possui relevância constitucional, pelo fato de questionar até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país, tem que manter um dever de neutralidade na política? Na coluna anterior demonstrei que os fundamentos jurídicos da decisão do TCF são questionáveis, pelo fato de, na prática, ignorarem a distinção entre chefia de Estado e de governo. Não é crível exigir um dever de neutralidade de uma chefe de governo, a qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas partidárias e ideológicas. Pelo menos três, dos oito juízes constitucionais, entenderam que Merkel, na condição de chefe de governo, tem o direito de criticar partidos políticos, ainda que o faça em visita oficial ao exterior. A complexidade da matéria emerge já a partir da existência de votos divergentes, prática incomum na atuação do TCF. Visando a contribuir para o debate, sintetizo os principais argumentos dos três votos divergentes. 1. Quando a Chanceler emite uma declaração política, o conteúdo dessa declaração não está sujeito a uma avaliação de neutralidade por parte do Tribunal Constitucional. 2. Os detentores de cargos governamentais são normalmente percebidos no seu duplo papel. Dada a sobreposição de cargos públicos e filiação partidária, os cidadãos esperam apenas uma limitada neutralidade de um membro do governo. 3. As normas de dever de neutralidade são controversas no que diz respeito às atividades de relações públicas do governo, ou seja, a forma como o governo apresenta o seu trabalho ao público, relacionadas a assuntos pontuais. Essas últimas são uma forma específica de trabalho administrativo e estão sujeitas a requisitos de exatidão, objetividade e contenção. 4. Já no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público, não há qualquer indicação de que um dever de neutralidade possa servir para proteger o processo democrático de baixo para cima, por meio do qual a vontade política é formada. 5. Não constitui um problema se os membros do governo se colocarem abertamente ao lado dos partidos políticos que formam este governo. Os cidadãos só esperam que tais membros sejam neutros, no momento em que exercem funções administrativas. 6. O conceito de separação (Trennungskonzept) entre membros de governo e políticos partidários não deve ser aplicado para distinguir entre o exercício de cargos públicos e atividades partidárias. Ele deve ser empregado para distinguir entre atos da administração e atos políticos do governo. 7. Pelo contrário, a posição majoritária do Tribunal estabelece requisitos que, em princípio, dizem respeito aos atos administrativos e aplica-os de toda a forma quando os membros do governo exercem as suas funções públicas. 8. Ao fazê-lo, o Tribunal, em sua composição majoritária, não reconhece que no sistema parlamentarista de governo o Parlamento confere à Chanceler a tarefa de governar. 9. O trabalho do governo é de natureza política e, em uma democracia partidária, é moldado por partidos políticos. A aparência de neutralidade da ação governamental suscita preocupações sobre a potencial inversão do processo democrático ascendente, por meio do qual a vontade política é formada. 10. A definição da agenda, a ponderação de interesses, a seleção de competências, a avaliação de argumentos, ou seja, todas as escolhas necessárias para governar são, pela sua própria natureza, decisões. 11. Essas decisões nunca são neutras. Em vez disso, baseiam-se em experiências, convicções e percepções da realidade que diferem muito dentro da sociedade. As eleições servem para refletir estas diferenças quando se trata de decisões políticas. 12. Assim, não existem argumentos válidos que apoiem um dever de neutralidade no que diz respeito à forma como o governo se apresenta ao público. 13. Mais ainda, as declarações pessoais sobre questões políticas específicas de membros do governo não estão, desde o início, sujeitas a um dever de neutralidade. 14. Caso seja adotado o ponto de vista de que as atividades de relações públicas do governo estão sujeitas a deveres de neutralidade, teria que ser especificada uma norma geral para todas as declarações políticas dos membros do governo, tanto em termos de formato quanto de contexto. 15. O voto majoritário opta pelo conceito de separação entre membros de governo e políticos partidários. Esta separação sujeita as declarações críticas feitas pela Chanceler à capacidade oficial do governo de estreitar os requisitos de neutralidade, relegando a política partidária para um domínio fora das suas funções oficiais. 16. No que diz respeito às campanhas eleitorais, faz sentido diferenciar entre as atividades de relações públicas do governo e as campanhas políticas. 17. Os membros do governo não devem ser autorizados a utilizar recursos governamentais para campanhas eleitorais, mas devem dirigir as suas campanhas, tal como outros políticos partidários, utilizando os seus meios e canais pessoais. 18. Além disso, a diferenciação entre declarações de opinião oficiais e pessoais pode ser justificada em muitos outros contextos. Tal diferenciação permite o exercício das liberdades pessoais, ao mesmo tempo que protege a instituição à qual a pessoa está oficialmente filiada, de ser equiparada às suas opiniões ou comportamentos. 19. Contudo, nenhuma destas duas razões se aplica quando os membros do governo fazem uma declaração em que tomam posição em favor de um partido político. 20. As consequências legítimas dessa diferenciação não devem ser extraídas quando se trata do exercício de cargos públicos pelo governo, mas sim no que diz respeito às atividades partidárias. 21. No que tange às atividades partidárias, os membros do governo não devem ser autorizados a fazer uso das opções e meios específicos do seu cargo ministerial. Não há necessidade de uma proibição baseada no conteúdo de uma declaração política, mas sim de uma proibição de fazer uso dos recursos governamentais. 22. Esta proibição da utilização de recursos pode impedir o governo de realizar atividades excessivas de relações públicas durante as campanhas eleitorais. Ao impedir a utilização de recursos governamentais para objetivos político-partidários, tal proibição assegura a igualdade de competição política. 23. No entanto, tal proibição só é plausível se disser respeito à utilização de recursos financeiros. 24. Ao fazer uso de tais meios, os partidos políticos no governo evitam despesas que de outra forma teriam de suportar. Isto pode, de fato, distorcer a concorrência dos partidos políticos. O mesmo não pode ser dito sobre o conteúdo das atividades de relações públicas. 25. Portanto, mostra-se equivocado equiparar a utilização de recursos à utilização da autoridade do gabinete (Primeira-Ministra). Como se pode perceber, ao menos do ponto de vista da essência das funções de chefia de Estado e de governo, os votos dissidentes possuem argumentos muito fortes. Se por um lado a posição majoritária do TCF parte do pressuposto de que: a) A exigência constitucional de neutralidade não é contrariada pelo fato de os detentores de cargos governamentais serem regularmente vistos no seu duplo papel de membros do governo e de políticos partidários. b) Do ponto de vista dos cidadãos pode haver apenas expectativas limitadas de neutralidade em relação a um membro do governo, devido ao entrelaçamento (Verschränkung) do cargo estatal e da filiação partidária. c) Independentemente disto, porém, continua a ser constitucionalmente necessário garantir o processo de formação da vontade política do povo para os órgãos de Estado através da participação igualitária dos partidos na competição política, na maior medida possível. d) O fato de não ser possível uma separação rigorosa das esferas de ministro federal, político-partidário e de atuação política por parte de pessoa privada, não conduz à inaplicabilidade do mandamento de neutralidade (Neutralitätsgebots) no âmbito oficial de atividade de um membro do governo. Por outro lado, ela ignora que a função de chefia de Estado é muito distinta da de chefia de governo. A principal crítica à posição majoritária do TCF está no fato de não distinguir, adequadamente, a natureza das funções de Estado e de governo, algo que na Alemanha, por força da tradição do sistema parlamentarista de governo, era de se esperar. Este é um debate que, cedo ou tarde, deverá ser aprofundado no Brasil, com a devida seriedade que merece. Infelizmente, por cultuarmos o presidencialismo - quase que às cegas - acabamos por nos afastar do principal, que é justamente compreender a arquitetura institucional do país. Tratar Estado como sinônimo de governo é um grande erro, que nos persegue desde a República Velha. Enquanto isso, os dilemas nacionais nos levam a outras questões, que frequentemente miram as consequências, mas nunca as causas dos problemas nacionais permanentes. O debate travado no TCF alemão pode, quem sabe, abrir os olhos dos verdadeiros estadistas. É o que se espera. __________ 1 Disponível aqui.
Até que ponto uma autoridade que exerce a chefia de governo de um país deve manter um dever de neutralidade na política? Esta é uma questão complexa, que envolve não apenas uma compreensão do funcionamento dos sistemas de governo, como também da própria natureza da função de chefia de governo. No dia 15 de junho de 2022, o Tribunal Constitucional Federal alemão proferiu uma decisão que reacende o interessante debate ligado aos limites da função executiva1. De forma um tanto quanto inesperada, o tribunal julgou procedente um litígio constitucional entre órgãos federais ajuizado pelo partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha), contra o governo federal, relativo a um fato ocorrido em fevereiro de 2020. Por maioria de 5x3 votos, o tribunal entendeu que a então Chanceler Federal, Angela Merkel, ao proferir comentários contra o partido AfD, violou o seu dever de agir de forma politicamente neutra no exercício da função de chefe de governo2. Um rápido resumo do episódio3. A Alemanha possui um sistema de governo parlamentarista, tanto em nível federal quanto estadual. Significa que os chefes dos executivos são eleitos pela maioria dos membros dos respectivos parlamentos, sendo relevante, para tanto, a realização de coalizões entre os partidos. Por ocasião das eleições no estado da Turíngia, o então governador, que representava um partido de esquerda, buscava a reeleição, sem obter sucesso nos dois primeiros turnos de votação. Por força de arranjos políticos locais, estabeleceu-se uma coalizão entre diferentes partidos, que levou à vitória de um candidato do partido liberal (FDP) para o cargo de governador. A vitória só foi possível pelo fato de diferentes partidos terem apoiado o candidato liberal, dentre eles, o próprio partido de Angela Merkel (CDU) e o polêmico AfD. O episódio chamou atenção pelo fato de ter sido a primeira vez, desde a sua criação, que o partido AfD ingressou em uma coalizão com os partidos tradicionais, para ajudar a eleger o governador de um estado alemão. Isso porque, até então, os principais partidos alemães vinham se recusando a ingressar em coalizões com o AfD, pelo fato de a legenda defender posturas consideradas xenófobas e extremistas, mesmo em estados como a Turíngia (leste da Alemanha), em que a agremiação costuma ter maior força. A questão gerou grande repercussão na Alemanha, provocando uma onda de manifestações contrárias à coalizão. Eis que surgiu o fato controverso. À época, em missão oficial na África do Sul, Angela Merkel afirmou que considerava "imperdoável" (unverzeihlich) o fato de um político do partido liberal ter aceitado votos de membros do partido Fada, para se eleger governador do estado da Turíngia. A então Chanceler ainda afirmou que aquele era um "dia ruim para a democracia", marcado pelo rompimento dos valores e convicções do seu partido, solicitando, assim, que o resultado da eleição, em que pese ser um caso único, fosse revertido4. A pressão política foi tamanha, que o governador eleito com o apoio do AfD acabou renunciando três dias após a sua eleição, devolvendo o governo estadual ao representante da esquerda. Este conjunto de fatos levou o partido AfD a ajuizar uma medida contra o governo federal junto ao Tribunal Constitucional, por considerar que as palavras da Chanceler representavam um "ataque direto" à legenda. A tese era que duras manifestações contrárias a um partido político, por ocasião de uma visita oficial da chefe de governo alemã a um estado estrangeiro, seriam inconstitucionais. Ao acatar a tese do partido AfD, o Tribunal Constitucional entendeu que a manifestação de Angela Merkel, na condição de chefe de governo (Primeira Ministra), acabou por violar o direito da legenda a uma competição política justa. Constatou, na prática, que ao proferir manifestações contrárias a um partido, Merkel violou o direito à igualdade de chances do processo eleitoral, bem como sua obrigação de agir de forma neutra enquanto no exercício da função de chefe de governo. Portanto, o aspecto que orientou a decisão não foi o mero teor da manifestação contrária ao AfD, mas o contexto em que foi proferida. A decisão ressaltou, contudo, que a situação teria sido diferente, caso as declarações fossem proferidas por ocasião de um evento eleitoral, hipótese em que a governante atuaria como política, e não como chefe de governo. A tese vencedora entendeu que comentários de teor partidário são incompatíveis com o dever de neutralidade a ser observado pela chefia de governo, sobretudo por ocasião de missões oficiais no exterior. A decisão do tribunal constitucional alemão baseou-se nos seguintes aspectos: 1. Por ocasião de uma campanha política aplicam-se para o cargo de Chanceler Federal as mesmas disposições que delimitam a atuação na função oficial e a participação não oficial, que são exigidas dos demais membros do Governo Federal. 2. Da ordem de competências do Governo Federal decorre que, em comparação com os outros membros do gabinete, a Chanceler Federal tem um direito de expressão mais amplo, mas isto não afasta a observância dos princípios de neutralidade e objetividade. 3. Os fundamentos que justificam um tratamento desigual, apto a conferir ao governo federal o poder de interferir na igualdade de oportunidades, devem: a) ser legitimados pela Constituição; b) ter um peso que possa equilibrar o princípio da igualdade de oportunidades das partes. 4. A proteção da estabilidade e da capacidade de ação do governo federal, bem como a reputação e a confiabilidade da Alemanha na comunidade internacional, são bens constitucionais que equivalem à igualdade de oportunidades para as partes. 5. A Chanceler Federal possui um amplo espaço de apreciação para decidir que medidas são necessárias para manter a estabilidade e a capacidade de trabalho do governo federal, inclusive no âmbito da política externa. Entretanto, frente a intervenções no princípio da igualdade de oportunidades, tem que ser possível demonstrar que existem interesses constitucionais que justificam tal ação. Nesta situação, torna-se necessário interferir no direito à igualdade de oportunidades dos partidos políticos. Na prática, o Tribunal Constitucional entendeu que as manifestações proferidas pela Chanceler contra o AfD violaram a igualdade de chances da legenda, sem que existissem, no caso concreto, questões ligadas aos interesses legítimos do governo federal. A preocupação dos juízes foi, portanto, garantir a igualdade de chances na disputa política, por mais que uma das partes seja um partido de atuação muito controversa. A decisão foi considerada surpreendente nos meios jurídico e político. Além disso, foi proferida por apertada maioria, algo não usual na tradição do Tribunal Constitucional alemão. Por ora, interessa a seguinte questão: o dever de agir de forma politicamente neutra é inerente ao exercício das funções de chefia de Estado e de governo, ou somente da primeira? Penso que pertence sobretudo à primeira, não devendo ser exigido demasiadamente da segunda. No marco da ordem constitucional dos sistemas parlamentaristas, como é o caso da Alemanha, o Chanceler Federal ocupa uma posição especial dominante no sistema estatal, que se caracteriza em termos de ciência política pelo termo "democracia chanceler" (Kanzlerdemokratie), que descreve com precisão a função de liderança do cargo "princípio chanceler" (Kanzlerprinzip). Neste quadro, o Chanceler Federal, e não o Governo Federal como órgão colegiado, é o chefe do Poder Executivo, dotado dos poderes essenciais de direção estatal, de acordo com as disposições constitucionais vigentes. A doutrina lembra que o chefe de governo, e somente ele, é o "senhor" (Herr) da formação, composição e da continuidade do governo federal. Isto baseia-se no fato de que apenas o Chanceler Federal é democraticamente legitimado diretamente pelo parlamento. Só ele é politicamente responsável por todas as atividades governamentais perante o parlamento. Simetricamente, somente o parlamento pode removê-lo do cargo por moção de desconfiança5. Essas considerações servem para lembrar que, na ótica de um sistema parlamentarista, em que pese competir ao chefe de governo determinar as diretrizes da política, não se pode desconsiderar que, muitas vezes, o Chanceler Federal só pode agir em relação à Realpolitik de um governo, dentro dos limites que as respectivas restrições da coalizão lhe impõem6. Ou seja, se o Chanceler não seguir a linha ideológica que permeia a coligação que o sustenta, não governará. Por sua vez, no que diz respeito à função de chefia de Estado, o dever de neutralidade torna-se não apenas mais evidente, quanto também mais amplo em relação ao que é exigido do chefe de governo. É característica dos sistemas parlamentaristas republicanos a falta de um detalhamento constitucional relativo às competências dos seus presidentes. Isso significa que a questão relativa ao grau de sua influência nos acontecimentos políticos de um país depende, em grande medida, da pessoa que exerce o cargo em questão. Isto é expresso na frase incisiva: "a pessoa dá forma ao cargo" (Die Person prägt das Amt)7. Na prática, os Presidentes nos sistemas parlamentaristas não se limitam a exercer os poderes que timidamente lhe são conferidos pela Constituição, na acepção, popularmente difundida - e de certa forma equivocada - como uma "Rainha da Inglaterra". Isso porque, a partir da sua nomeação, tentam, em conformidade com seus respectivos estilos, influenciar a política e as questões sociais nos discursos. Esta é uma prática estatal que molda mais o cargo na percepção pública, do que os seus poderes8. Para um brasileiro, acostumado com as disfuncionalidades do sistema presidencialista de governo, estas questões podem parecer secundárias, considerando que no presidencialismo uma única autoridade exerce, simultaneamente, as chefias de Estado e de governo. O ponto de análise se mostra essencial, pelo fato de que a natureza de ambas as funções é distinta. Este, aliás, é um dos grandes motivos que levam à inadequação do presidencialismo: chefiar o Estado difere muito de chefiar um governo. A boa doutrina lembra que, ao exercer a chefia de Estado, deve o Presidente da República estar acima dos partidos e das suas competições; já como chefe de governo, deve expressar os interesses do partido ou da aliança de partidos que o elegeu9. A função de chefia de Estado é suprapartidária e supraideológica, enquanto a de chefia de governo, contrariamente, identifica-se com partidos e ideologias. A raiz do problema está em que ninguém pode ser, ao mesmo tempo, em diversos temas, partidário e suprapartidário, parcial e imparcial, representante do todo e expressão da parte10. O Presidente ou atua como chefe de Estado em posição arbitral, ou atua como chefe de governo, claramente identificado, integrado e apoiado por um partido político. O que não conseguirá é levar a bom termo, conjuntamente, as duas funções11. Assim, o sistema presidencialista, sobretudo em um país como Brasil, exige, para o exercício das funções tão diversificadas, virtudes contraditórias, mutuamente anulantes12. E se, para fugir ao dilema, tentar exercer apenas parcialmente cada uma das funções, tende a fracassar nas duas posições13. Nas palavras sempre atuais de Raul Pilla, as funções de chefia de Estado e de governo são muito difíceis de conciliar em uma só autoridade. "É como se, numa partida de futebol, a mesma pessoa fosse o árbitro e o capitão de um dos bandos"14. Não é à toa que já fomos advertidos que um dos mais flagrantes contrastes da época em que vivemos está no descompasso entre a velocidade com que avança a tecnologia e os desafios e a lentidão com que caminha a evolução das instituições políticas15. Feitas essas considerações, fica a pergunta: é crível exigir de um chefe de governo, ao qual cabe demarcar posições políticas baseadas em determinadas linhas ideológicas, um dever de neutralidade? O Tribunal Constitucional alemão entendeu que sim. Surgem, todavia, muitas dúvidas quanto ao acerto deste achado jurídico. Na próxima coluna analisarei os votos dissidentes, com a finalidade de incrementar o debate. Um tema complexo para reflexão. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Essas características do Chanceler Federal alemão estão disponíveis em EPPING, VOLKER. Grundgesetz Kommentar (Art. 62 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 18. 6 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 9. 7 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 11. 8 PIEPER, Stefan Ulrich. Grundgesetz Kommentar (Art. 51 GG). In: EPPING, Volker; HILLGRUBER, Christian. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 51 Ed. Mai. 2022, Rdn. 12. 9 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21. 10 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 95. 11 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96. 12 LIMA, Antonio Amilcar de Oliveria. O Poder Executivo nos Estados Contemporâneos. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 38s. 13 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 96. 14 PILLA, Raul, Catecismo Parlamentarista. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, reimpressão, 1992, p. 21s. 15 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A missão do poder executivo no estado contemporâneo. Revista de Direito Administrativo 117. Rio de Janeiro, jul.-set. 1974, p. 29.
sexta-feira, 3 de junho de 2022

A não reforma e a desigualdade de chances

Acerta quem diz que o processo político democrático, em seu livre jogo, tem criado, com frequência, situações que colocam em perigo a sobrevivência da própria democracia1. Uma das questões mais importantes para a política é a renovação. A perpetuação no poder é algo nocivo para a democracia, pois, nos mandatos sucessivos, os defeitos costumam se mostrar mais presentes do que as qualidades. Isso porque aqueles que se agarram de todas as formas ao poder, fazendo dele a sua única opção de vida, costumam utilizá-lo como meio de satisfação pessoal e não como forma de proporcionar o bem comum. A questão é que o Brasil foi formado, desde o Império, por um processo no qual as elites se acostumaram a circular por cargos ou postos no âmbito dos três poderes públicos2. Permanecer no poder, indefinidamente, é uma estratégia que permeia grande parte da classe política nacional, sobretudo no âmbito do Poder Legislativo. Ocorre que o bem comum, enquanto finalidade precípua da democracia, não encontra compatibilidade com projetos pessoais de poder. É exatamente neste ponto que se visualiza uma das tantas mazelas do sistema político brasileiro: ele não converge para a alternância no poder, pelo contrário. Tome-se como exemplo a configuração do Poder Legislativo. Os que já são deputados federais ou senadores contam com inúmeras vantagens, a começar por uma quantidade expressiva de verbas custeadas pelos pagadores de impostos, destinadas à divulgação dos mandatos, viagens constantes para as bases, dentre outras. Contudo, é na aplicação das chamadas emendas parlamentares que o desequilíbrio se torna mais evidente3. Em uma sistemática que subverte a própria lógica da separação dos poderes, cabe ao Poder Legislativo decidir o emprego concreto de verbas em várias situações, como se Poder Executivo fosse. Anualmente, quantias expressivas são despejadas nos redutos eleitorais, com o efeito de fortalecer a presença dos políticos, potencializando a sua base de apoio local. A alocação de parcelas do orçamento público pela via das emendas parlamentares costuma ser conduzida mais por aspectos ligados à estratégia eleitoral, do que técnicos. Esta estratégia faz com que parcela significativa do orçamento seja executada pela perspectiva de interesses setoriais, que não são delineados por uma visão macro das carências estruturais. É o chamado gasto sem planejamento técnico, que costuma descontentar até mesmo gestores locais, pretensamente beneficiados pelos investimentos, pelo fato de que muitas vezes a alocação dos recursos não é direcionada às reais prioridades. O cenário é de uma completa degeneração moral, constitucional e administrativa do sistema orçamentário. O quadro piora, quando se leva em conta o desequilíbrio na disputa política que é gerado pela divisão do fundo eleitoral, considerando que grande parte do seu montante é destinada àqueles que já detêm mandato eletivo. A questão que se coloca é: como quem vem de fora do sistema pode competir, em igualdade de chances, com outros candidatos que têm à disposição expressivas verbas públicas para potencializar as suas candidaturas? De fato, não há igualdade de chances, pois o sistema é construído para perpetuar as pessoas no poder. A prova disso é que se fosse feita no Brasil uma pesquisa com a pergunta, "você está satisfeito com o desempenho dos seus representantes políticos?", a resposta preponderante, certamente, seria um notório "não". Como se explica, então, que à cada eleição a renovação não atinge elevada parcela dos congressistas? A resposta está na afirmação anterior: o sistema é feito para perpetuar as pessoas no poder. Aqueles que mais gastam com a divulgação dos seus mandatos, que mais empregam emendas parlamentares em suas bases eleitorais, são os que mais têm chances de serem reeleitos, eleição após eleição. Uma democracia funcional não sobrevive a um sistema político dessa natureza. Mais cedo, mais tarde, a conta chega. Quanto maior o esforço para se manter no poder, mais os benefícios que daí advêm devem ser compensadores. A conclusão inevitável é que quanto mais o dinheiro do pagador de impostos fluir nesta estrutura viciada, maior será o rol de oportunistas que desejará ingressar na política ou dela não mais sair. Há que se ter em mente que para a construção da democracia é essencial, por um lado, que o povo tenha liberdade para tomar as suas decisões. Por outro, também é fundamental que o processo de tomada de decisão deva ocorrer do povo para os órgãos do Estado e não ao contrário, dos órgãos do Estado para o povo4. Ou seja, se os próprios órgãos de Estado, pela configuração institucional vigente, dificultam a renovação na política, pouco se avançará em termos democráticos. Urge, portanto, a implementação de reformas políticas estruturantes, que tornem a política uma atividade mais atrativa aos bem-intencionados e menos atrativa aos oportunistas. Não há como desconsiderar que a desigualdade de tratamento no processo eleitoral acaba inibindo o surgimento de novas lideranças, de novas ideias ou propostas, abafando a real renovação. Real, pois a renovação não pode ser feita apenas sob a perspectiva de rostos. A verdadeira renovação envolve também uma nítida mudança de mentalidade. Enquanto a mentalidade permanecer intimamente ligada à lógica econômica das eleições, pouco se avançará. É nessa linha que algumas medidas podem ser pensadas, visando a promover a renovação na política. A primeira passaria pela adoção de um sistema eleitoral distrital, que ao substituir o proporcional, permitiria a realização de campanhas mais baratas, já que as candidaturas passariam a ocorrer apenas no interior dos distritos eleitorais nos quais os candidatos estão eleitoralmente alistados. A proximidade dos candidatos com seus eleitores é benéfica em vários sentidos. A segunda passaria pelo fim das emendas parlamentares. A alocação concreta das verbas orçamentárias aprovadas pelo Legislativo deve passar pelo Executivo, sobe pena de usurpação funcional de competências. A terceira passaria pela impossibilidade de se abandonar os mandatos, para concorrer a outros cargos. A hipótese de não conclusão dos mandatos, salvo motivo de força maior, deveria conduzir à inelegibilidade, pois, de certa forma, abandonar o cargo pelo qual foi eleito, para concorrer a outro, significa uma traição ao eleitor. Tanto é verdade, que não se vê nenhum candidato, no curso de sua campanha, advertir seus eleitores de que irá abandonar o mandato no meio do caminho, caso eleito, para disputar outro cargo. Enquanto não se chega lá, se poderia pensar, ao menos, na ampliação das hipóteses de desincompatibilização. Pela regra atual (art. 14, § 6º CF), exige-se apenas dos chefes do Poder Executivo que renunciem aos seus respectivos mandatos, seis meses antes da eleição, caso desejem concorrer a outros cargos. Todos aqueles que detêm mandato eletivo no âmbito do Legislativo deveriam ter que se desincompatibilizar dos seus respectivos cargos, ou seja, renunciar, caso desejassem concorrer a outras funções. Assumiriam, assim, o risco. Isso vale sobretudo para os Senadores que detêm mandato de oito anos e costumam se atirar em aventuras eleitorais diversas, sem qualquer receito de perderem seus cargos. Vale, da mesma forma, para os deputados que concorrem aos cargos de Prefeitos, em cidades de maior envergadura. A quarta medida, e a mais ambiciosa delas, seria limitar a possibilidade de reeleições no âmbito do poder legislativo. Isto impediria as chamadas dinastias na política, que se perpetuam anos e anos no poder. Todas essas propostas, em comum, tendem a contribuir para melhorar a igualdade de chances, em favor de novas lideranças que pretendem contribuir na política. Elas se mostram como verdadeiras ações afirmativas para a democracia, sem prejuízo das que já estão vigentes. Elas esbarram, todavia, em uma barreira que é, sem dúvida, a mais difícil de se transpor: como convencer os que já estão no poder a aprovar mudanças, cujo efeito será diminuir a sua chance de reeleição? As soluções existem, o problema é colocá-las em prática. Eis o verdadeiro dilema, que somente a cidadania ativa pode resolver, desde que transponha as atitudes de apatia e alienação, tão comuns entre nós. __________ 1 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 30. 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem. A elite política imperial. Tetro de sombras. A política imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 121. 3 Disponível aqui. 4 GRZESZICK, Bernd. Grundgesetz Kommentar (Art. 20 GG). In: DÜRIG, Günter; HERZOG, Roman; SCHOLZ, Rupert et. al. Grundgesetz Kommentar. München: Beck online. 95 EL. Juli 2021, Rdn. 17.
sexta-feira, 20 de maio de 2022

O sistema além das pessoas

Em matéria de debates políticos uma tendência salta aos olhos: passamos a maior parte do tempo debatendo pessoas e deixamos a análise do sistema de lado. As discussões vêm sendo pessoalizadas ao extremo. Simpatizantes, quando não apaixonados por mitos, de um lado; detratores ou que antipatizam, de outro. No meio, as vozes mais neutras são as que menos se fazem ouvir. Hans-Georg Gadamer, um dos mais geniais filósofos da hermenêutica, ensinava que o objetivo de toda a compreensão é um entendimento prévio sobre o que está sendo analisado1. Portanto, onde não há compreensão, ou quando ela foi distorcida, há que se tecer esforços para que venha a ser restabelecida. Penso que há muito deixamos de compreender que o principal problema, que nos coloca em crises políticas permanentes, passa menos pelas pessoas que provisoriamente exercem o poder e mais por uma sucessão de equívocos institucionais, que no caso brasileiro, vêm se impondo há muito tempo. Consequentemente, por mais que pessoas virtuosas cheguem ao poder, pouco se avançará em termos de correção de rumos. Nas últimas décadas, chefes de governo, com os mais diferentes perfis, ascenderam legitimamente ao poder. Independentemente das qualidades e defeitos de cada um, é forçoso reconhecer que ainda somos vítimas da manutenção de significativas mazelas institucionais, que perpassam as respectivas individualidades. Essas mazelas iniciam nos sistemas de governo, eleitoral e partidário. O sistema presidencialista de governo, tão festejado por alguns, centraliza na pessoa do Presidente da República poderes quase que mitológicos. A autoridade é transformada em uma espécie de Messias, pois dela tudo se espera. Quando as coisas não funcionam a contento, tudo passa, quase que automaticamente, a ser sua culpa. É verdade que pessoas mal preparadas ou de má índole contribuem para que esse indesejável estado de coisas, marcado pela disfuncionalidade, não apenas se perpetue, como também se agrave. Todavia, não se pode perder de vista que mesmo pessoas virtuosas e tecnicamente competentes não conseguem, por si só, vencer um sistema que padece de vícios de toda a sorte. Como ponto de partida pode-se referir uma das grandes disfuncionalidades do sistema presidencialista de governo: a eleição de uma única pessoa para chefiar o Estado, o governo e a administração de um país. Ou seja, unem-se, em uma mesma autoridade, funções absolutamente distintas, que requerem perfis, vocação e responsabilidades igualmente diferenciadas. Consequentemente, nenhuma delas acaba sendo exercida de modo eficaz. Os problemas, contudo, não param aqui. Esse mesmo sistema permite a eleição de um candidato, que não conta com maioria parlamentar minimamente apta à aprovação dos projetos centrais que integram o plano de governo vencedor nas urnas. O que as pessoas em geral relutam em compreender, é que de nada adianta eleger um presidente, se ele não contar com uma maioria minimamente confortável no Congresso Nacional para lhe dar suporte. Em verdade, o sistema constitucional brasileiro criou um paradoxo que inviabiliza qualquer governo eleito: é avesso à governabilidade. Isso porque confere ao presidente a direção das políticas de governo, ao mesmo tempo em que transfere ao Congresso Nacional a responsabilidade pela sua aprovação, em grande parte dependente da edição de leis ou até mesmo de emendas constitucionais. Como se não bastasse, ao prever um sistema eleitoral proporcional e exigências muito brandas para que partidos inexpressivos sejam representados no Congresso Nacional, acabou por produzir um ambiente hostil à formação de maiorias parlamentares e muito favorável, por outro lado, à formação de minorias. Esta excessiva fragmentação partidária representa um obstáculo quase que intransponível à governabilidade. Quase, pois há estratégias que favorecem acordos ou coalizões de plantão. O problema é que não costumam ser meios republicanos. É justamente aqui que o sistema revela uma de suas facetas mais cruéis: ele favorece a prática de condutas que em nada correspondem aos ideais democráticos de um Estado de Direito. Eu me refiro às diversas práticas, que em maior ou menor graus foram levadas a efeito em todos os governos, como distribuição de cargos na administração para compra de apoio político (inchaço da máquina pública), mensalão, corrupção em estatais e, mais recentemente, a farra orçamentária pela via das famosas emendas de relator2. Em comum, trata-se de práticas mais ou menos engenhosas, algumas mais refinadas, outras menos, algumas mais disfarçadas de legalidade, outras que nem perto chegam. O fato é que quando o sistema é ruim, ele induz as pessoas a se comportarem mal, fazendo com que as boas práticas, que deveriam conformar a boa política, sejam sufocadas. É claro que com esse raciocínio não se pretende absolver ninguém por condutas inadequadas. O que se quer é salientar que quando a organização política fundamental definida pela Constituição é inadequada, não se podem esperar bons frutos. Esse é um dos motivos pelos quais os famosos centrões - e suas práticas - não apenas se perpetuam na política, como também se fortalecem, a cada eleição. No caso, grupos suprapartidários, de representação heterogênea, mas que em comum demonstram apetite pela barganha política, pelo poder, patrimonialismo e, naturalmente, pelas benesses que são bem características, entre nós, da atividade política. Estes grupos são os que, na prática, pela sua atividade no dia a dia do Congresso, decidem o futuro da nação. Paradoxalmente, quase toda a atenção dos eleitores é voltada à eleição presidencial. A escolha dos membros do Poder Legislativo é tratada como assunto secundário, de menor importância. O resultado não poderia ser diferente. Um déficit muito elevado na qualidade da representação política e uma carência expressiva de políticas públicas voltadas à solução dos problemas nacionais permanentes. Enquanto o sistema eleitoral não evoluir para refinar a escolha dos membros do Congresso Nacional, poucos avanços serão verificados. Nesse ponto, a adoção de um sistema eleitoral distrital seria um caminho muito mais seguro3. Enquanto isso, o eleitorado fica brigando por seus mitos presidenciáveis, sem perceber que não existem salvadores da pátria na política. O que existe, sim, são arranjos institucionais mais aperfeiçoados, que permitem às pessoas proporcionar o seu melhor. Quando o arranjo é ruim, eventuais qualidades pessoais anulam-se em face de um comportamento coletivo inadequado, cujas exceções não dão conta de modificar. Caberia, pois, a cada estadista e, sobretudo, a cada eleitor, perceber que a partir de um sistema ruim, pouco pode se esperar. A saída para a crise passa pelo apoio às reformas que revertam as causas que levam à paralisia institucional, à manutenção de um status quo e de um establishment, que pouco agregam à nossa combalida democracia. Os modelos atualmente praticados estão falidos! Enquanto não se modificarem os sistemas de governo, eleitoral e partidário, o Brasil, no máximo, terá uma mudança de rostos na política, mas não de práticas e costumes. Esse, creio, é o entendimento do estado de coisas vigente no país, a partir do qual temos que voltar a nossa compreensão. __________ 1 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode. Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Band. 1. Tübingen: Mohr, 1990, p. 297. 2 Disponível aqui. 3  Disponível aqui.
Há uma espécie de consenso no Brasil no sentido de que, há algum tempo, o STF vem avançando em competências típicas dos demais poderes. É fácil constatar que o STF assumiu uma espécie de hegemonia no arquitetura político-institucional brasileira, considerando que muitas decisões de natureza político-administrativa acabam sendo revistas pelo tribunal. O problema se acentua quando o fundamento do controle de constitucionalidade, majoritariamente, não deriva de uma clara incompatibilidade daquelas decisões com a Constituição, mas sim de diferenças de visões de mundo entre os julgadores e os políticos. A falta de limites claros entre a atuação dos poderes é um dos grandes desafios às democracias contemporâneas. É inevitável perceber que o exercício do poder observa a lógica do preenchimento de espaços, no sentido de que a omissão de um acaba sendo preenchida pela atuação de outro. Tradicionalmente, um conjunto de omissões imputadas ao Poder Legislativo fez com que o Judiciário, em particular seu órgão de cúpula, fosse desenvolvendo, paulatinamente, uma cultura de atuação supletiva. O resultado foi uma progressiva intervenção em temas antes reservados exclusivamente à apreciação política. É por essa razão que o problema central de todas as jurisdições constitucionais faz lembrar a pergunta sobre os limites do controle jurídico dos poderes estatais1. Quanto mais o parâmetro de controle de constitucionalidade dos tribunais se basear em uma visão de mundo parcial, ou seja, valores, sentimentos ou concepções de natureza intuitiva a respeito da época em que se vive - o chamado Weltanschauung - maior será a probabilidade de surgirem tensões. Quem milita na área do direito constitucional sabe que um dos maiores riscos de quebra da institucionalidade reside na produção de decisões políticas em uma roupagem com forma de justiça2. Pode parecer estranho admitir, mas nem toda lei ruim, ou até mesmo estúpida, é necessariamente inconstitucional, pelo fato de que a Constituição permite uma ampla variedade de conformações legislativas nos mais diversos temas. A crítica aponta para uma atuação excessiva dos tribunais, sobretudo do STF, em temas que a rigor deveriam ser objeto de visões de índole política, em diferentes planos concretos. O tema costuma ser debatido à luz da expressão genérica ativismo judicial, que aponta para uma conduta proativa do Poder Judiciário, que acaba por interferir em posições políticas de outros poderes públicos. Por trás dessa questão repousa a ideia de que os membros do Poder Judiciário, por não serem eleitos, não detêm legitimidade para decisões de feição política, cabendo-lhes, evidentemente, o controle da legalidade e da constitucionalidade dos atos dos poderes públicos. Uma das tantas perspectivas de análise que o tema desperta é a da chamada "judicialização da política". Ela consiste em atribuir ao Judiciário decisões de natureza política, já que afetam o destino da nação, ou orientam a máquina governamental em direção a objetivos determinados, em decorrência de uma visão do bem comum expressa pelos próprios tribunais3. A politização da justiça é um problema que deve ser resolvido institucionalmente. Isso significa que quanto melhor for a qualidade da engenharia constitucional, vale dizer, da organização fundamental do Estado, menores serão os problemas. Há que se reconhecer que as tensões entre os poderes públicos não são uma exclusividade do Brasil. Contudo, por sermos um país marcado por uma organização institucional de baixa qualidade, que parte da cumulação, em uma única autoridade - Presidente da República - das funções de chefia de Estado, de governo e da Administração e que funde, em um mesmo órgão - Poder Judiciário - as jurisdições ordinária e constitucional4, os problemas por aqui acabam sendo mais intensos. Portanto, somente uma reforma focada na valorização e no aperfeiçoamento das instituições-chave pode se mostrar útil para as soluções dos problemas que, atualmente, dividem a sociedade de forma jamais vista. Um dos fatores que prejudica a análise de temas constitucionais é que perdemos muito tempo discutindo pessoas, que transitoriamente ocupam o poder, e pouco refletimos sobre as mazelas institucionais que favorecem comportamentos inadequados. Quanto antes percebermos que os graves problemas que enfrentamos decorrem mais de opções institucionais equivocadas e menos de subjetividades pessoais, mais próximos estaremos de correções significativas. Uma produtiva reforma constitucional passa pelo aperfeiçoamento do STF, na condição de instituição indispensável à manutenção do Estado democrático de direito. Quanto mais o STF se colocar na condição de guarda da Constituição, vale dizer, assumir como função primordial o controle de constitucionalidade, preferencialmente por meio de um sistema concentrado, que lhe atribua o monopólio de rejeição da norma inconstitucional, à semelhança dos modelos europeus de tribunais constitucionais, melhor será a sua contribuição para a manutenção da democracia. Isso passa, logicamente, por amarras institucionais que diminuam o fenômeno da judicialização da política. Uma delas, relativamente simples de ser implementada, seria o enrijecimento dos requisitos para a instauração do chamado controle abstrato de constitucionalidade, por meio das conhecidas ações diretas: ADI, ADC e ADPF. Em particular, se pode começar pelo estabelecimento de critérios mais rígidos para a proposição dessas ações por parte dos partidos políticos com representação no Congresso Nacional. De fato, grande parte dos temas ligados à judicialização da política decorre do excesso de ações trazidas ao STF por iniciativa das agremiações políticas, muitas delas com pequena representação popular. Pela regra vigente, constante no art. 103, VIII da CF, qualquer partido político que possua em seus quadros, pelo menos, um senador ou um deputado federal, estará legitimado a provocar o STF para se manifestar sobre a constitucionalidade das leis e dos atos dos poderes públicos. Na prática, um partido que possua um único deputado federal ou senador pode questionar a constitucionalidade de atos legislativos aprovados até mesmo pela maioria qualificada dos membros do Congresso Nacional. Isso é razoável? Essa facilidade pela qual se contesta a constitucionalidade das normas no Brasil representa uma banalização do controle de constitucionalidade, inflacionando o número de matérias que chegam ao STF para serem analisadas e debatidas. Além disso, fomenta o mencionado fenômeno da judicialização da política, já que muitos partidos passam a recorrer à jurisdição constitucional como forma de reverter derrotas na arena política, transformando o STF em uma espécie de "segunda instância" do debate político-ideológico. Dados atuais revelam que o STF possui em seu acervo cerca de 1.300 ADIs e 307 ADPFs pendentes de julgamento5. Parte significativa dessas ações têm como legitimados ativos (autores) os partidos políticos. A proposta, inspirada em modelos mais avançados de controle de constitucionalidade, seria condicionar o ajuizamento dessas ações de competência originária do STF a uma representação política mais expressiva. A Alemanha, por exemplo, possui uma regra bem efetiva, cristalizada no art. 93 (1), frase 2 da Lei Fundamental, que trata das competências do Tribunal Constitucional Federal. Ela estabelece que são legitimados à instauração do controle concentrado de constitucionalidade em abstrato, ou seja, aptos a submeter ao tribunal o requerimento de exame da compatibilidade formal e material da legislação federal ou estadual com a Lei Fundamental, apenas três entidades, a saber: O Governo Federal, o governo de um Estado ou um quarto (25%) dos membros do Parlamento Federal. Enquanto no Brasil o rol de legitimados é muito maior, já que contempla até mesmo confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional, a Alemanha parte nitidamente para a direção contrária, de caráter mais restritivo. Ela diminui, significativamente, em relação ao modelo pátrio, o rol dos legitimados ativos ao controle concentrado com técnica de exame em abstrato. O resultado não poderia ser diferente. O número de ações diretas submetidas anualmente ao Tribunal Constitucional Federal alemão é extremamente reduzido. É claro que existem diferenças abissais entre os parlamentos alemão e brasileiro. Sem embargo, um dos fatores que contribui para que o tribunal alemão não seja assoberbado por processos dessa natureza é exatamente o rigor na delimitação dos legitimados ativos ao controle abstrato de normas. Para encurtar e encerrar o debate, direciono o foco apenas nos partidos políticos. O Brasil poderia se inspirar na Alemanha e passar a exigir que as chamadas ações diretas, de competência originária do STF, fossem subscritas por, no mínimo, um quarto dos membros de uma das casas legislativas do Congresso Nacional, ou até mesmo um terço, em analogia ao quórum que se exige para a apresentação de emendas constitucionais (art. 60, I da CF). Essa inovação não retiraria, entre nós, a vocação de defesa contramajoritária do STF. Apenas estabeleceria um critério de exame da constitucionalidade das normas mais compatível com o pluralismo político no momento de provocar o tribunal a decidir, em respeito à própria instituição do Poder Legislativo. A proposta pode não ser suficiente para resolver todos os problemas, mas, certamente, contribuiria para valorizar a atividade do próprio Congresso Nacional, diminuindo a chamada judicialização da política e as tensões entre os poderes. Uma simples emenda constitucional poderia por isso tem prática. __________ 1 BENDA, Ernst. Das Bundesverfassungsgericht im Spannungsfeld von Recht und Politik. ZRP, n. 77, Heft 1. München: Beck, 1977, p. 1 2 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 28. 3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Constituição de 1988 e a Judicialização da Política. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 12, 1996, p. 189. Disponível aqui. 4 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. Direito Constitucional, Direito Ordinário, Direito Judiciário. Cadernos do PPGDir UFRGS, março de 2005, p. 13. Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
O STF, em um dos julgamentos mais polêmicos dos últimos tempos, formou ampla maioria para condenar o deputado Federal Daniel Silveira pela prática dos crimes de ameaça ao Estado Democrático de Direito e de coação no curso do processo criminal1. A pena imposta foi dura: oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, além de multa que, em valores atuais, atinge a cifra de R$ 212 mil2. Contudo, antes mesmo do início do cumprimento da pena3, visando a tornar sem efeito a condenação, o Presidente da República concedeu indulto individual ao condenado por meio de decreto presidencial4, com base no art. 84, XII da Constituição. Como se percebe, em que pese o placar da votação ter sido expressivo a favor da tese da condenação do deputado, o assunto está longe de ser considerado encerrado, tamanhas são as perspectivas de análise e polêmicas que o assunto desperta. Uma delas diz respeito ao âmbito de proteção da inviolabilidade parlamentar, aspecto que costuma ser levantado pelo lado que considera a decisão do STF incompatível com a própria Constituição. A questão que se coloca é: a inviolabilidade parlamentar, por si só, afasta a possiblidade de condenação do deputado pelos atos que lhe são imputados? O debate parte da premissa de que o art. 53 da Constituição conferiria ao parlamentar o direito de se expressar da forma que desejar, a partir do momento em que prevê: "Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos." Para muitos, a expressão "quaisquer" tornaria o congressista imune pelas suas falas, por mais duras que fossem. Neste ponto, haveria uma espécie de cisão entre o que é dito e as consequências que advêm das respectivas manifestações. Isso fica claro a partir do instante em que parte considerável das críticas que são dirigidas ao STF não deixa de reconhecer que as falas do deputado foram despropositadas. Fala-se em exagero de retórica, emprego de termos chulos, impropérios e até mesmo da incapacidade do parlamentar em formular críticas de modo condizente com o decoro que a sua função de representante do povo exige. Este talvez tenha sido o motivo pelo qual a própria Câmara dos Deputados, no início de 2021, por 364 x 130 votos, decidiu manter a prisão em flagrante e sem fiança do deputado, ordenada pelo relator do inquérito que investiga no STF a prática de desinformação5. Todavia, esse lado do debate pondera que mesmo uma linguagem inapropriada estaria coberta pela inviolabilidade parlamentar, já que, para o bem ou para o mal, estaria incluída nos termos "quaisquer opiniões ou palavras". Para essa corrente não se poderia cogitar de crime contra a segurança nacional e o regime democrático, ou por ataque à instituição STF, apenas pelo emprego de linguagem desonrosa e despropositada de um representante eleito. Nesse ponto, é interessante perceber que o art. 53 da CF foi objeto de atualização a partir da promulgação do texto original, de 19886, pela EC 35/2001. A redação final se deu apenas no segundo turno de votação na Câmara dos Deputados (PEC 610-D de 1998)7, justamente para acrescentar duas partes que são fundamentais na inovação constitucional. A primeira, que os deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente; a segunda, que a respectiva imunidade compreende "quaisquer" opiniões, palavras e votos dos congressistas. Suprimiu-se, ainda, a redação de que a imunidade se dava no exercício do mandato. Fica claro que o escopo da EC 35/2001 foi ampliar o instituto da inviolabilidade parlamentar. À época, a preocupação da então consultoria legislativa da Câmara era de que "no jogo dos interesses políticos, o Poder Judiciário pudesse eventualmente servir de posto avançado de pressão contra o desempenho autônomo do mandato parlamentar".8 Em suma, os críticos à condenação do deputado costumam partir do pressuposto de que a inviolabilidade parlamentar prevista na Constituição inviabilizaria, do ponto de vista jurídico, a condenação, mesmo diante de excessos verbais. Na prática, esse modo de analisar os fatos confere à inviolabilidade parlamentar um caráter quase absoluto. É justamente neste aspecto que a tese em favor do deputado parece enfraquecer, ao menos no que tange à impossibilidade de ser responsabilizado por suas afirmações. O principal motivo é que não existem direitos absolutos no ordenamento constitucional, razão pela qual a inviolabilidade parlamentar por opiniões e palavras também deve se sujeitar a condicionantes. Não se pode negar que a liberdade de expressão dos congressistas representa uma garantia essencial à democracia. Entretanto, há que se perceber que a inviolabilidade parlamentar é uma prerrogativa que é estabelecida pela Constituição mais a favor da instituição parlamentar e menos em favor do congressista em si, de forma a garantir a independência do Poder Legislativo frente aos demais poderes constitucionais9. Isso reforça a noção de que quanto mais as afirmações desastrosas se distanciarem do exercício do mandato, maiores serão as chances de não estarem cobertas pela inviolabilidade parlamentar. Se por um lado é inegável que a inviolabilidade representa uma conquista civilizatória, no instante em que valoriza a democracia representativa, por outro, o ideal que lhe agrega fundamento não pode transformá-la em escudo para negar os valores que a própria Constituição busca assegurar. Nesta linha há que se perceber que o recurso aos fins supremos do ordenamento não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição10, o que implica aceitar a ideia de que não se pode recorrer a uma garantia fundamental - como a inviolabilidade parlamentar - para acabar com a própria Constituição. Assim, no curso de um conflito entre liberdade de expressão e a manutenção da democracia, fica claro que não se pode admitir que a Constituição conceda uma liberdade cujo uso poderia significar a própria negação dos seus valores, dentre eles, instituir um Estado Democrático, como se percebe desde o preâmbulo. Entendimento contrário seria não só ludibriar, como igualmente subverter a própria Constituição. A análise das afirmações proferidas pelo deputado deixa claro que visavam não apenas a criticar o funcionamento da instituição STF e seus respectivos membros. Iam mais além, contendo ameaças, invocações ao AI-5, dentre outras questões graves. Se poderia até debater se o conjunto de impropérios consistiu, na prática, ameaça ou lesão efetiva à soberania nacional e ao regime democrático ou, ainda, crime contra a segurança nacional. O que não parece razoável é colocar na conta da inviolabilidade parlamentar toda e qualquer manifestação despropositada, pois não é isso que ela visa a garantir. A partir daí, ingressa-se no interessante tema da democracia militante (Militant Democracy ou streibare Demokratie)11, que alerta que a ordem democrática deve ser capaz de se defender dos inimigos da liberdade, levando-se em conta que a experiência mostra que a própria democracia e a tolerância que lhe é peculiar não raro são empregadas para a sua própria destruição, assunto que fica para outra oportunidade. O cerne dessa reflexão é que não se deve afirmar que a inviolabilidade parlamentar seria uma garantia que, por si só, afastaria a possiblidade de condenação do deputado pelos atos que lhe são imputados. No entanto, isso não significa que outros elementos não devam ser considerados na análise do caso. Em particular, as garantias do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa, dever de proporcionalidade na dosimetria da pena, bem como a questão de existir uma complicada mistura entre julgadores e vítimas, algo que em um Estado democrático de direito não costuma soar de bom tom. Isto faz com que o caso Daniel Silveira tenha que ser analisado a partir de diversas perspectivas, inclusive com ênfase nas garantias que não podem ser deslocadas de um processo criminal. Se a inviolabilidade não permite tudo, também é correto afirmar que não é dado ao tribunal recorrer a qualquer expediente para se proteger dos ataques que sofre. Afinal de contas, devido processo legal não se confunde com vingança. O grande risco é que eventuais excessos por parte do STF induzam a uma espécie de censura relativa às críticas públicas, que qualquer instituição, em uma democracia, tem que tolerar. A questão, como sempre, são os limites que a democracia deve suportar, análise que somente poderá ser feita a contento à luz de casos concretos, nunca em abstrato. Onde acaba a crítica possível, ainda que injusta ou impiedosa, e começa o excesso, que corrompe a própria ordem democrática? É exatamente esse o ponto que o caso em tela nos levará a debater, por vários anos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Art. 53 CF/88 (redação original). "Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos". 7 Disponível aqui. Vide, em particular, p. 264, onde constam às supressões e inclusão à mão. 8 Disponível aqui, p. 314 (com anotação original de "confidencial"). 9 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 539. 10 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33. 11 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss.
Recentemente, o Congresso Nacional promulgou a EC 117/221, que representa uma ação afirmativa voltada à participação das mulheres no processo eleitoral. A partir de agora, os partidos são obrigados a destinarem no mínimo 30% dos recursos advindos de financiamento público para as campanhas eleitorais de candidaturas femininas. A inovação constitucional prevê, ainda, que a distribuição dos recursos deve ser proporcional ao número de candidatas mulheres, a partir do patamar mínimo de 30%. Logo, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados às campanhas deve ser alocado em favor das mulheres, na mesma proporção, tal como já havia decidido o STF na ADIn 5.6172. Os montantes valem tanto para o Fundo Eleitoral quanto para os recursos do Fundo Partidário direcionados às campanhas. A EC 117 ainda destina 5% do Fundo Partidário para criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, a serem empregados de acordo com os interesses partidários. A partir de agora, os partidos também devem reservar às mulheres no mínimo 30% do tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão. Considerando que para as eleições gerais de 2022 o Congresso Nacional aprovou R$ 4,9 bilhões para o Fundo Eleitoral e R$ 1,1 bilhão para o Fundo Partidário3, os valores mínimos a serem destinados para as candidaturas femininas tornam-se expressivos. Se poderia dizer que o percentual mínimo de 30% do financiamento público para as candidaturas femininas ainda é baixo, considerando a representatividade das mulheres na sociedade em números absolutos. Todavia, não deixa de ser uma vitória, quando se percebe que a política sempre foi - e continua sendo - um ambiente muito hostil às mulheres, que tradicionalmente são discriminadas pelos partidos no curso de suas campanhas eleitorais. Vários motivos dão conta dessa realidade. Dados do TSE informam que, aproximadamente, 52% do eleitorado brasileiro é composto por mulheres4. Em contrapartida, a representação política feminina no Congresso Nacional ainda é pífia. Na largada da legislatura 2019-2023, a bancada feminina na Câmara dos Deputados foi composta por apenas 77 Deputadas Federais, dentro do número total de 513 parlamentares, o que representa apenas 15% das cadeiras5. No Senado Federal o cenário não é diferente. Dados atuais revelam que dos 81 Senadores, apenas 13 são mulheres6, o que equivale a cerca de 16% das cadeiras. Se há algo incontroverso nessa conta, é que existe uma enorme desproporção na representação política por gênero no Congresso Nacional. Isso mostra o grau de dificuldade que as mulheres enfrentam para ingressarem na política. Outros dados interessantes corroboram essa realidade. Com somente 15% de mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados, o Brasil ocupa um percentual de participação feminina na política muito abaixo da média na América Latina, equivalente a 28,8% de mulheres parlamentares7. Pesquisas igualmente indicam que, a partir de um levantamento de 2017, realizado pela ONU, o Brasil ocupava somente a 154ª posição, em um ranking de 172 países, relativo à participação de mulheres no Parlamento8. Some-se a isso o fato de que, até o momento, nenhuma mulher presidiu a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal. Todos esses dados demonstram que há um longo caminho pela frente, para consolidar a participação feminina na política, em patamares condizentes com a sua representação na sociedade. Quando se leva em conta que o direito ao voto feminino surgiu em 1932, ainda que de forma parcial, percebe-se o atraso que o país enfrenta na questão de gênero na política. Trata-se de uma realidade que reforça a importância do apoio às ações afirmativas em favor das mulheres no cenário político nacional. Parte delas deve ser focada na desconstituição de mitos9, como, por exemplo, de que mulheres não se interessam por política, de que mulher não vota em mulher, ou, ainda, de que ações afirmativas violam a garantia constitucional de autonomia partidária. As mulheres, apesar de enfrentarem violência política em grau muito maior que os homens (preconceito, discursos de ódio, hostilidades no momento de se expressarem, como a prática de Manterrupting10 etc.), têm grande interesse nos debates na esfera pública. Isso se percebe já a partir das escolas, passando pelos bancos universitários, ou pelos debates travados nas redes sociais. O que elas não encontram, por regra, é um ambiente partidário que lhes garanta oportunidades em igualdade de chances com os candidatos homens. É justamente esse ponto que leva à desconstituição do segundo mito, de que mulher não vota em mulher. Se mulher não vota em mulher, de maneira geral, é porque as mulheres ficam praticamente invisíveis no processo eleitoral, já que são sistematicamente discriminadas nas campanhas pelos líderes partidários. Não é novidade que o sistema político brasileiro concentra poder político nas mãos dos chamados caciques partidários, majoritariamente homens, em um ambiente nitidamente patriarcal. Levando-se em conta que o Brasil adota um falido modelo de eleições proporcionais para a composição dos órgãos políticos de representação coletiva, em que os votos são colhidos em uma ampla circunscrição eleitoral, o custo das campanhas torna-se estratosférico, sobretudo em um país de dimensões continentais. Isso faz com que o sistema convirja para uma relação direta dos chefes partidários com o poder econômico, que passa a ditar o sucesso das candidaturas, como regra geral. Some-se a isso o fato de que cada vez mais se verifica uma tendência à diminuição do período das campanhas, de forma a poupar recursos. Consequentemente, os eleitos tendem a ser aqueles com maior exposição pública. A lógica é: quem mais investe, tem mais exposição; quem é mais visto, é mais lembrado; e quem é mais lembrado, é mais votado. Isso favorece não apenas os que já se encontram na vida pública, como também os que podem investir mais recursos nas suas campanhas. Assim, as mulheres, como também os homens, tendem a votar em candidatos mais visíveis, ou seja, em que dissemina mais conteúdo, independentemente do gênero. Mulheres não são eleitas com mais frequência, portanto, porque permanecem em sua grande maioria invisíveis dentro dos partidos, já que são sistematicamente discriminadas na divisão dos recursos relativos ao financiamento público. Por fim, não merece guarida o argumento de que ações afirmativas favoráveis às mulheres violam a garantia constitucional de autonomia partidária. Levando-se em conta que os partidos políticos são instituições de direito privado, não podem se convolar em um terreno impermeável à influência dos direitos fundamentais, como aqueles ligados à igualdade e à proibição de discriminação. Trata-se de assunto ligado à teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais11, que, dentre outros temas, informa que a autonomia partidária não pode se sobrepor ao conteúdo valorativo que informa a ordem constitucional, com foco na dignidade da pessoa humana. Com base no exposto, ainda que se tenha em mente que a EC 117 representa um ganho político e de cidadania ativa para as mulheres, a luta por maior equiparação não para por aqui. Ela exige, ainda, providências complementares, de naturezas legislativa e judiciária. Em particular, medidas que aprimorem a democracia intrapartidária, já que a Constituição impõe a filiação a partidos políticos como condição de elegibilidade. Dentre elas, cita-se a decisão do TSE, em resposta à consulta 0603816-3912, que entendeu que a regra de reserva de gênero de 30% para mulheres nas candidaturas proporcionais também deve incidir sobre a constituição dos órgãos partidários, como comissões executivas e diretórios nacionais, estaduais e municipais. Nesse ponto, é fundamental que se consolide o entendimento de que a presença de mulheres nos partidos deve se refletir na composição dos seus órgãos de cúpula. Essa é uma questão de suma importância, pois enquanto as mulheres não ocuparem esses espaços de poder, o ideal de igualdade de representação feminina na política será muito difícil de ser alcançado. Vale dizer, muita semântica, pouca ação. Falta, ainda, uma postura mais incisiva dos órgãos judiciários contra as fraudes partidárias que registram candidaturas femininas apenas para cumprir o requisito formal do percentual mínimo, sem que elas sejam de fato impulsionadas nas campanhas. Trata-se de fenômeno apelidado de candidaturas "laranjas", por meio das quais mulheres se prestam a perpetuar a hegemonia masculina nas agremiações. Esse é, sem dúvida, o ponto negativo da EC 117, que prevê uma anistia em favor dos partidos que não preencheram a cota mínima de recursos, ou que não destinaram os valores mínimos em razão de sexo e raça em eleições ocorridas antes da sua promulgação. Seja como for, a EC 117 deve ser vista como um importante passo para a promoção e integração das mulheres na vida política e partidária. Novos avanços são esperados, sob pena de se perpetuar o indesejado histórico de segregação das mulheres na vida política nacional, em total desacordo com a natureza das coisas. O combate à discriminação afirma-se como aspecto indissociável da civilização e da própria condição humana, de modo a exigir constante dever de aprimoramento e controle. Mais vozes femininas na política representam não apenas um imperativo de justiça, como também o necessário aprimoramento do combalido sistema político brasileiro. ____________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Sobre os mitos relativos à inclusão de mulheres na política vide a conferência da pesquisadora Fabiana de Azevedo da Cunha Barth. Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Sobre o tema vide DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 1ss. 12 Disponível aqui.
A liberdade de expressão é um dos direitos fundamentais que mais desperta inquietações na atualidade. A revolução trazida pelo mundo digital tornou a liberdade de expressão um assunto por demais complexo, em que consensos mínimos são raros. A recente polêmica que envolveu a ordem de bloqueio do aplicativo de troca de mensagens Telegram, por decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes,1 posteriormente revogada,2 confirma essa realidade. A polarização extrema que permeia o debate político no Brasil vem minando a racionalidade do discurso. Atualmente, grande parte das análises é construída a partir de visões de mundo parciais, que buscam enxergar os fatos somente pelos filtros ideológicos que se mostram convenientes. O resultado não poderia ser outro: o empobrecimento do debate, a falta de argumentos racionais e o ódio dirigido a quem pensa de maneira diferente. O episódio Telegram não pode passar despercebido aos olhos do Direito Constitucional, pois coloca em evidência uma série de aspectos que não mais podem ser desconsiderados, ou simplesmente empurrados para o futuro. De maneira geral, a decisão de bloqueio do aplicativo de troca de mensagens não se mostrou despropositada, ainda que críticas pontuais possam ser apresentadas. Essas críticas repousam, basicamente, em dois aspectos. O primeiro é que decisões dessa natureza não deveriam ser tomadas de forma individual (monocraticamente), pelo simples fato de que atingem um número expressivo de pessoas. No momento em que um aplicativo como o Telegram é bloqueado, não é possível prever a quantidade de atividades lícitas que serão atingidas, aspecto relacionado, inclusive, à livre iniciativa e à ordem econômica, sem falar dos direitos de comunicação. O ideal seria que decisões dessa magnitude fossem tomadas de maneira colegiada, a fim de que juízos de ponderação mais seguros fossem construídos, levando em conta diferentes visões acerca de um mesmo tema. O segundo diz respeito à extensão da punição, que previa pesadas multas até mesmo para os usuários (pessoas naturais e jurídicas), que de uma forma ou outra burlassem a ordem de bloqueio, acessando o aplicativo por meio de artifícios tecnológicos eventualmente colocados à disposição dos interessados. Fora essas questões, os fundamentos sustentadores da decisão parecem corretos. Isso fica visível a partir do instante em que a análise se direciona para o aspecto principal da controvérsia: o reiterado desprezo à Justiça e a falta total de cooperação do Telegram com os órgãos judiciais brasileiros. É disso que se trata. A decisão do ministro Moraes evidencia, cronologicamente, uma sucessão de episódios que caracterizam a total falta de cooperação do aplicativo perante as autoridades nacionais. Pode-se até argumentar que a decisão foi dura - como de fato foi -, já que atingiu um elevado número de usuários que não praticaram crime algum. Contudo, não se pode ignorar um fato elementar: toda empresa que pretenda atuar no Brasil tem que se adequar às normas e às determinações das autoridades constituídas. Em particular, as determinações previstas no Marco Civil da Internet (lei 12.965/14),3 norma que regulamenta o uso da internet no Brasil, que, em situações extremas, permite o bloqueio de aplicativos, como o Telegram. Destacam-se as previsões do art. 12, III e IV,4 que preveem a suspensão das atividades desses aplicativos, bem como do art. 195, que fixa a possiblidade de responsabilização dos provedores por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências que lhe cabem. A base legal está posta. Havendo discordância quanto ao que é exigido, o Estado democrático de direito coloca inúmeros caminhos à disposição, para que eventuais controvérsias possam ser dirimidas em um ambiente de civilidade institucional. O que não se pode admitir é que uma empresa simplesmente ignore a legislação pátria, assim como a determinação das autoridades. É interessante notar, aspecto consignado na decisão de bloqueio, que o Telegram tem uma postura recorrente de não se submeter a diretrizes governamentais dos países em que atua.6 Esse aspecto é empregado, inclusive, como chamariz para novos usuários. Estamos falando, logicamente, de países de tradição democrática e não de ditaduras em que eventuais diretrizes de governos poderiam ser consideradas contrárias aos direitos humanos. Portanto, a decisão de bloqueio não pode ser vista apenas sob a ótica de uma pesada restrição ao acesso à informação, mas, igualmente, à luz das consequências que devem ser suportadas por empresas que se negam a cumprir as leis vigentes e a colaborar com as autoridades, sob o manto do devido processo legal. Do ponto de vista do direito constitucional está-se diante de uma hipótese de ponderação de direitos, por meio da qual concorrem, de um lado, a livre iniciativa, o acesso à informação e a liberdade de expressão e, de outro, às prerrogativas indispensáveis à manutenção do Estado democrático de direito. Portanto, o tema não pode ser analisado apenas sob a perspectiva das liberdades, pois, se assim fosse, eventualmente a decisão se mostraria equivocada. É exatamente pelo fato de se verificar que o fundamento nuclear da ordem de bloqueio foi uma reiterada postura de desprezo à Justiça e aos órgãos judiciais, que se pode concluir que a conduta do aplicativo colidia com a própria soberania nacional, circunstância, aliás, também verificada em outros países. Chama atenção o fato de que o Telegram, antes da ordem de bloqueio, sequer disponibilizava uma representação oficial no Brasil, responsável por receber os comunicados das autoridades, muito embora conte com milhões de usuários no país. Trata-se de postura de quem, de fato, não tinha a menor intenção de se submeter às leis vigentes, que, em um ambiente democrático, devem vincular a todos. A partir daí, a cronologia dos fatos fala por si só. Após a ordem de bloqueio, seguiu-se um pedido público de desculpas do Telegram, reconhecendo as falhas da sua atuação. Um novo prazo foi concedido para adequações e, em seguida, restabelecida a comunicação entre a direção do aplicativo e autoridades, com as medidas exigidas sendo tomadas, o bloqueio foi suspenso. Essa sucessão de episódios demonstra, claramente, que se não fosse a ordem de bloqueio, com as pesadas repercussões econômicas dela decorrentes, a direção do aplicativo estaria, até hoje, fazendo pouco caso das intimações que lhe eram direcionadas pelas autoridades brasileiras. Como previamente consignado, é difícil debater livremente este assunto, independentemente das paixões políticas e ideológicas que vêm provocando a erosão do debate público. Seja como for, é incontestável que foi a reiterada omissão do Telegram que levou à medida extrema. É verdade que a questão é traumática, mas o aprendizado que dela deflui não pode ser desconsiderado. O principal é que os provedores de aplicações de internet que armazenam e difundem conteúdos gerados por terceiros não podem se comportar como verdadeiras ilhas, desconectadas da realidade onde incidem e influenciam. É clara a noção de que regulamentar plataformas de conteúdo virtual é um assunto por demais complicado, precisamente pela falta de clareza quanto aos limites dessa regulação, onde o risco maior é partir de uma censura estatal para outra de caráter privado. É por isso que uma postura de equilíbrio não pode dispensar mecanismos de cooperação administrativa entre governos e autoridades locais com as respectivas plataformas, de modo a promover canais efetivos de interação. Essa cooperação é não apenas indispensável, como também fundamental para diminuir o grau de intervenção judicial sobre as respectivas atividades. Incentivar a eficaz colaboração com os provedores de conteúdo é o marco de um novo direito administrativo no formidável mundo digital. Ela deve ser levada a efeito, ainda que por uma dinâmica de natureza econômica. Afinal, foi justamente isso que levou o Telegram a ceder ao que se mostrava correto: o respeito às leis e às decisões judiciais. _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Art. 12 da lei 12.965/14. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: (...) III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; (...) IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11. 5 Art. 19 da lei 12.965/14. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. 6 A decisão consigna que conforme consta do relatório policial, a postura do Telegram de não se submeter a diretrizes governamentais a partir de princípios que regem a sua Política de Privacidade resultou em sanções impostas por pelo menos 11 países, incluindo a Alemanha e os EUA.
sexta-feira, 11 de março de 2022

A não-intervenção e a hipocrisia do Ocidente

A guerra da Ucrânia é um evento geopolítico de enorme complexidade. Ela desperta a questão de como um ordenamento constitucional democrático deve se comportar em face de atrocidades. Há uma conhecida expressão, cuja autoria é controversa, que afirma que a primeira vítima na guerra é a verdade. Sem embargo, as tecnologias de informação e de transmissão de dados contribuem para mostrar, inclusive ao vivo, o que acontece em locais conflagrados, permitindo que ao menos parte dos fatos sejam incontroversos. Nesta categoria, pode-se afirmar que entre Rússia e Ucrânia, a primeira é agressora e a última é agredida. Ou seja, a agressão russa caracteriza, além de crime de guerra, uma clara violação a princípios elementares das Carta das Nações Unidas. Por mais que os países envolvidos no conflito possam ter pontos de vista eventualmente legítimos, não há como aceitar que a primeira providência, frente a divergências, seja uma brutal invasão armada. Todo e qualquer país que pretenda honrar as conquistas civilizatórias não pode utilizar a força como primeiro recurso, no lugar da diplomacia. Uma invasão armada a um país soberano, que mostra a banalidade do mal, utilizando a conhecida expressão de Hannah Arendt,1 é algo que não pode ser aceito, ao menos por quem comunga valores comuns ligados à preservação dos direitos humanos. Não é por menos que a Constituição de 1988, ao tratar dos princípios que regem a República nas relações internacionais (art. 4º), estabelece uma série de diretrizes, todas sensatas e equilibradas. Dentre elas, a manutenção da independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a defesa da paz e solução pacífica dos conflitos. Tais diretrizes provocam importantes questionamentos. Como um país que segue a linha democrática deve ser portar quando outro é injustamente agredido? É possível, ao mesmo tempo, em um cenário de catástrofe humanitária, não intervir e preservar os direitos humanos? Se buscarmos as respostas nos princípios da não intervenção e da prevalência dos direitos humanos, já se descortina uma verdade, no mínimo, inconveniente. Em um cenário de conflito armado, à cada minuto que passa, a situação das vítimas se agrava, sobretudo das mais vulneráveis, como as crianças e os idosos. Esse trágico cenário impõe à comunidade internacional uma necessária reflexão quanto à viabilidade de alianças e parcerias comerciais com determinados países. Significa rever a cultura de que podemos ter bons parceiros comerciais, ainda que sejam violadores de direitos humanos. Os tradicionais sistemas de segurança coletiva, baseados em tratados como o da OTAN,2 não consideram uma ameaça à segurança global parcerias comerciais duradouras que financiam países que insistem em violar direitos humanos. A lógica dos tempos pós-modernos permanece a mesma de outrora. Negócios, negócios, atrocidades à parte. Vale dizer, nações que comungam dos valores democráticos e da bandeira dos direitos humanos não têm hesitado em manter prósperas parcerias comerciais com Estados que, incontestavelmente, perpetuam a violação a tais direitos de forma sistemática. A Rússia é só um exemplo. Enquanto as parcerias comerciais rendem dividendos interessantes, abrem novas frentes de negócios, pouco parece importar o modo como algumas nações parceiras tratam a sua população, vizinhos ou eventuais opositores. E esse, de fato, tem sido um comportamento que coloca o sangue dos ucranianos e russos nas mãos de boa parcela do Ocidente. E de uma parcela que, diga-se de passagem, se diz defensora dos valores ocidentais, da democracia, dos direitos humanos etc. Afinal, quem contribui para pagar os elevadíssimos custos de uma máquina de guerra? São, ao fim e ao cabo, os negócios que enriquecem muitas nações. Muito se tem dito acerca das duras sanções econômicas que estão sendo impostas à Rússia pela comunidade internacional, inclusive contra os famosos oligarcas russos, pessoas que enriqueceram de forma indecorosa às custas de um regime cleptocrático e que ostentam seus itens de luxo mundo afora. O que não se comenta, ao menos com a mesma frequência, é que grande parte desses oligarcas, que simbolizam a perpetuação dos donos do poder, não apenas investe no Ocidente, como mantêm parte de suas divisas em bancos ocidentais, em seu nome, ou de terceiros. Isso significa que se o Ocidente, realmente, pretende dar um basta em conflitos como o que ora visualizamos de forma perplexa, deve começar a rever a sua atitude de tolerância frente a nações que insistem em violar direitos humanos e em investir na força como prima ratio. Implica, igualmente, expor as próprias mazelas. Não devemos ser ingênuos ao ponto de acreditar que esses oligarcas não contam com cúmplices no Ocidente. Para ficar no exemplo dessas figuras obscuras, há tanto dinheiro de origem russa plenamente visível em países que agora se mostram indignados com a guerra, que fica difícil imaginar que se desconhecia sua procedência. Por exemplo, propriedades de famosos clubes de futebol, iates cujos valores de mercado são difíceis até mesmo de descrever, aviões, imóveis, carros de luxo e por aí vai. Essa é exatamente a perspectiva que foi levantada por Paul Krugman, Nobel de Economia em 2008, em artigo publicado em 24/02/2022, no Jornal New York Times, sob o título Laundered Money Could Be Putin's Achilles' Heel3 que poderia ser traduzido como "o dinheiro lavado pode ser o calcanhar de Aquiles de Putin". Segundo a correta análise de Krugman, pesadas sanções comerciais e financeiras contra a Rússia e seus oligarcas podem se mostrar eficazes, desde que o Ocidente mostre vontade e, sobretudo, esteja disposto a assumir a própria corrupção. A questão é que medidas dessa natureza esbarram em fatos muito desconfortáveis. Quem lava e armazena o dinheiro ilícito? Na visão de Krugman, que parece irretocável, várias pessoas influentes no Ocidente, tanto no ramo dos negócios quanto da política, estão profundamente enredadas financeiramente com os cleptocratas russos. Além disso, a partir do instante em que se decida buscar, de fato, esses recursos espúrios - medida possível -, tais ações acabarão por atingir outros praticantes do mesmo "esporte", que não são necessariamente russos. A precisa conclusão do analista é que tomar medidas efetivas contra aqueles que financiam o círculo de poder íntimo de Putin implica não apenas admitir, como também superar a própria corrupção do Ocidente. E isso, invariavelmente, leva à indagação: não se sabe até que ponto os respectivos países, que se consideram integrantes do chamado mundo democrático, estão dispostos a ir. Seja como for, está mais do que na hora de refletirmos: Que parceiros comerciais possuímos? Até que ponto boas parcerias comerciais podem ignorar práticas perversas? Em que medida a segurança energética e a política de proteção do meio-ambiente podem depender de ditaduras? O lucro e o superávit das balanças comerciais podem se justificar à custa de sistemáticas violações a direitos humanos? A guerra na Ucrânia, em grande parte, é resultado de violações a normas internacionais praticadas no passado, inclusive recente, que não trouxeram nenhuma consequência efetiva contra os respectivos agressores, inclusive a Rússia. Quando tivermos em conta que a bandeira dos direitos humanos é superior a qualquer ideologia, estaremos em condições de perceber, com clareza, a hipocrisia do Ocidente. Quanto antes percebermos esse quadro, mais perto estaremos de um mundo melhor, onde a Guerra não será tolerada. __________ 1 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Traduzido por José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 546. 3 Disponível aqui.