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A "escolha de Sofia": reflexões bioéticas sobre a alocação de recursos na Covid19

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Atualizado às 11:19

Texto de autoria de Carla Carvalho

Desde o início da pandemia de Covid-19, assiste-se a vídeos em que uma determinada pessoa, caracterizada como não aderente às medidas de distanciamento social, é confrontada com uma pergunta, a ser respondida enquanto familiares e pessoas de sua próxima convivência chegam ao ambiente: Qual seria um número aceitável de mortes? Ou de forma mais específica: "Com o fim do isolamento social e um colapso do sistema de saúde, se houvesse apenas um leito de UTI disponível, qual dessas pessoas você salvaria?"1

Se só é possível salvar uma de duas - ou quem sabe de três ou mais - pessoas doentes, quem deve ser priorizado? O mais jovem, porque tem mais tempo de vida pela frete? O mais velho, porque é mais vulnerável ou tem mais sabedoria? O profissional de saúde, porque salva outras vidas? O deficiente, porque nos comprometemos a protege-lo com prioridade? O que não tem deficiência, porque será supostamente mais produtivo? A mulher, porque dá a luz e cuida dos filhos? O político, porque deveria cuidar do bem comum? O professor, porque ensina?

A lista poderia se alongar, e sempre haverá justificativa para conferir prioridade a algum grupo, ainda que tal justificativa esbarre em princípios éticos ditos universais.

A questão da necessidade de estabelecimento de protocolos para triagem de pacientes, diante da escassez de recursos, não é inédita nos serviços de saúde, no mundo e no Brasil. É possível encontrar farta literatura sobre o tema23, que aparece sob nomenclaturas variadas: protocolos de alocação de recursos escassos, protocolos de triagem, protocolos de escolhas trágicas, entre diversos outros.

No tratamento da questão, é comum que se refira à expressão "escolha de Sofia", diante da caracterização de um evento em que o sujeito se vê compelido a optar entre alternativas igualmente insuportáveis, por referência à obra de William Styron, em que a personagem Sofia, prisioneira do nazismo, tem que escolher, entre seus dois filhos, aquele a quem salvar4.

O tema, que ganhou foco especial diante das graves situações de escassez de recursos decorrentes da pandemia de Covid-19, se insere entre os grandes dilemas bioéticos, na medida em que estabelece a necessidade de se balancear princípios e estabelecer um padrão ético de conduta, diante de situações concretas em que a vida e a saúde de muitas pessoas estão em jogo.

Na busca de um tênue equilíbrio, pela garantia de igualdade entre pessoas de diversas origens, etnias e grupos sociais, e equidade na distribuição de recursos riscos e benefícios, o princípio bioético da justiça ganha destaque, como instrumento para uma distribuição justa e apropriada no interior da sociedade. Os estudos da bioética, sob este olhar, que vai além dos quatro princípios estabelecidos por Childress e Bauchamp5, compõem uma metodologia conhecida por bioética da intervenção, segundo a qual a tomada de decisão deve ter por fim o alcance do

maior número de pessoas, pelo maior tempo possível, resultando nas melhores consequências para toda coletividade. Ao objetivar o bem comum para todos - a coletividade - procurou-se evidenciar que aqueles que detêm o poder, mesmo que representem a maioria, precisam considerar as perspectivas dos demais grupos e segmentos para estabelecer políticas que suprimam a desigualdade entre todos6.

Já nos primórdios da bioética, se discutia a necessidade de se estabelecer critérios de seleção de pacientes para a dispensação de recursos e tratamentos escassos. Frequentemente é citado, neste sentido, um artigo publicado na revista Life, em 1962, intitulado "Eles decidem quem vive, quem morre", que tratava da formação de um comitê, em Seattle (EUA), para selecionar pacientes para acesso ao procedimento de hemodiálise, então empreendido em caráter experimental7.

Pelo mundo, a questão da escassez de recursos e necessidade de estabelecimento de protocolos de triagem e alocação emerge especialmente em contextos de excepcionalidade, diante da ocorrência de desastres ou catástrofes que acarretam grande demanda por socorro de pessoas, em estado grave. Cidades atingidas por ciclones, grandes enchentes e até atentados terroristas, tiveram que lidar com a difícil tarefa de priorizar o atendimento de certos pacientes, em detrimento de outros, em virtude da escassez de leitos, insumos e profissionais para o atendimento de todos.

No Brasil, o tema acabou negligenciado, pela falta de registro de ocorrências tão graves, que ensejassem a necessidade de determinação de critérios de prioridade entre múltiplos sujeitos a demandar atendimento simultâneo, atingidos em virtude de um mesmo evento.

Isso não significa, contudo, que não se tenha realizado antes a seleção e priorização de pacientes no país. Ao contrário, os agentes de saúde realizam diariamente suas "escolhas de Sofia", tendo em vista a insuficiente distribuição de recursos na saúde pública brasileira. As escolhas vão de uma simples distribuição de pacote de gazes à de um leito único de UTI, passando por medicamentos e tratamentos de complexidade variada.

O cenário atual de pandemia ampliou exponencialmente a escala em que a escolha precisa ser realizada, diante do rápido crescimento da demanda por tratamento, sem tempo hábil para preparo ou mesmo recursos disponíveis para aquisição. Estabeleceu-se um cenário de escassez absoluta de recursos, em que "mesmo com uma boa política social referente à sua obtenção e distribuição, sempre haverá menos do que o necessário"8. Há notícias do esgotamento de leitos de UTI e enfermarias, testes para o diagnóstico de Covid-19, respiradores e medicações anestésicas e sedativas, dentre outros insumos, além da falta de profissionais especializados para a composição das equipes de saúde, em diversas localidades.

Nesse contexto, passou-se a cogitar da adoção de medidas da chamada "medicina de catástrofes ou calamidade"9, por meio do estabelecimento de protocolos transparentes, que busquem uma alocação adequada dos leitos e insumos, em proteção do interesse social mais amplo. A constatação da heterogeneidade de fórmulas e protocolos, resultado da ausência de consenso em torno de quais critérios são considerados superiores ou mais adequados, demonstra a ausência de critérios universais, indicando-se que componentes culturais, institucionais e mesmo espaço-temporais, podem determinar o padrão das escolhas.

Em geral, os critérios de alocação de recursos escassos classificam-se em quatro grandes grupos: (i) tratamento equitativo das pessoas, por meio da realização de "loterias" ou consideração da ordem de chegada; (ii) favorecimento dos que estão em pior situação (prioritarismo), que pode envolver uma prioridade para os que estão mais doentes ou para os mais jovens; (iii) maximização do benefício total (utilitarismo), buscando-se salvar o maior número de vidas e de anos de vida; (iv) utilidade social, com o reconhecimento de valor instrumental a certos sujeitos ou de um sistema de alocação que contemple a reciprocidade10.

Um dos critérios muito aplicados, nos protocolos divulgados durante a Covid-19, é o etário, pelo qual pacientes acima de uma certa idade são preteridos em favor de pacientes mais jovens, na alocação de recursos11. Tais critérios são estabelecidos, com frequência, sob a epígrafe "direito de se viver o ciclo completo da vida". Apesar de todos os critérios predominantes estabelecerem uma análise utilitarista da questão, a aplicação de critérios etários, dissociados da avaliação das condições clínicas subjacentes, tem recebido especial repulsa, por implicarem um ageísmo e desvalorização da vida dos idosos, a quem se deveria proteger com primazia, conforme os mais variados ordenamentos jurídicos.

Por outro lado, no que se refere à adoção de critérios de utilidade social, demonstra-se que a prioridade frequentemente estabelecida pelo atendimento de profissionais de saúde, envolvidos no enfrentamento da Covid-19, tem por fundamento não a supremacia social de um grupo em si, senão que o valor instrumental conferido aos indivíduos deste grupo, que, uma vez recuperados do quadro de enfermidade, poderão contribuir para que se salvem mais vidas, evitando-se a escassez de trabalhadores capacitados em saúde.

Ainda, autores, nacionais e estrangeiros, são praticamente unânimes sobre a necessidade de se criar comitês específicos para a realização do processo de triagem, a fim de garantir maior isenção e ausência de vieses no processo, além de poupar os profissionais envolvidos na linha de frente dos cuidados da alta carga emocional envolvida na tomada de decisões.

A partir daí, Estados, instituições e pesquisadores propõem seus protocolos, a partir dos valores que consideram fundamentais.

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu, por meio da Resolução 2.156/2016, critérios gerais para a admissão rotineira em unidade de tratamento intensivo (UTI), determinando, no art. 1o, que as admissões devem ser baseadas em: "I) diagnóstico e necessidade do paciente; II) serviços médicos disponíveis na instituição; III) priorização de acordo com a condição do paciente; IV) disponibilidade de leitos; V) potencial beneficio para o paciente com as intervenções terapêuticas e prognóstico."

As prioridades estabelecidas na resolução - que é anterior e não específica ao contexto da Covid-19 - não são suficientes, contudo, para regular a diversidade das situações concretas, em face de seu caráter genérico. Por isso, a própria resolução determina que o serviço de unidade de tratamento intensivo (UTI) de cada instituição hospitalar desenvolva seus protocolos de alocação dos leitos disponíveis, "de acordo com as necessidades específicas dos pacientes, levando em conta as limitações do hospital, tais como tamanho da UTI e capacidade de intervenções terapêuticas" (art. 11).

No contexto específico da pandemia de Covid-19, torna-se imperativo o estabelecimento de critérios para nortear os procedimentos de triagem e alocação de recursos nas diversas instituições, tendo em vista não só a distribuição equitativa de leitos de terapia intensiva, com suporte de ventilação mecânica, mas também os diversos outros insumos em escassez. Em uma situação ideal, deveriam os entes públicos (União, Estados e Municípios) assumir a função de estabelecer os protocolos, por meio de seus órgãos competentes (ministério e secretarias de saúde), a fim de garantir transparência, uniformidade de aplicação e ausência de contradição entre diversos modelos.

Todavia, a elaboração de tais diretrizes pressupõe que se assuma a possibilidade de insuficiência do Estado no enfrentamento da pandemia, bem como que se enfrente a própria dimensão do problema. Diante disso, os entes públicos nacionais se omitiram em seu papel, restando às associações médicas e hospitais a tarefa de garantir a justiça na alocação de recursos.

A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) estabeleceu, junto à Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), aquele que foi considerado um dos protocolos mais completos do país, resultado de ampla discussão com profissionais e representantes da sociedade. Em suas recomendações, as associações preconizam que se busque salvar (i) mais vidas - uso do escore SOFA para aferição da chance de sobrevida -, e (ii) mais anos de vida - avaliação da presença de comorbidades graves que comprometam a sobrevida no curto prazo -, com (iii) observância de uma medida de funcionalidade do paciente, que impacte sobre os desfechos clínicos 12.

Diversos hospitais e grupos hospitalares estabeleceram também os protocolos a ser utilizados no âmbito das respectivas instituições, tendo divulgado ou não seu conteúdo. Outros muitos, por sua vez, optaram por gerenciar a crise de esgotamento de recursos sem a criação de protocolos e critérios próprios, recaindo a decisão, diante de cada caso concreto, sobre os profissionais integrantes da equipe de saúde, o que acaba por agregar mais peso à já sobrecarregada tarefa de enfrentamento de uma pandemia.

Ainda há espaço para discussão do tema no país, seja para a promoção de justiça distributiva no âmbito da pandemia da Covid-19, seja para que se reflita em relação a outras emergências de saúde pública que o país possa enfrentar no futuro. Retomando as perguntas feitas no início deste texto, os critérios de triagem devem ser estabelecidos em consideração da dignidade presente em cada pessoa, evitando-se que as condições pessoais de determinados grupos sejam usadas para conferir-lhes menor merecimento, ou posição de primazia em relação aos demais.

Ao se pensar no que esperar de um Brasil pós-pandemia, deve-se priorizar um país em que a questão da escassez dos recursos seja reconhecida pelos gestores e profissionais de saúde e compartilhada de forma transparente com toda a sociedade, de modo a se construir um debate amplo sobre as estratégias equitativas de ampliação e regulação justa do acesso, no contexto de uma bioética da intervenção.

Carla Carvalho é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Direito pela UFMG, pesquisadora visitante da Universidade livre de Bruxelas (2013-2014), associada da Sociedade Brasileira de Bioética, e advogada.

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1 PREFEITURA DE TERESINA. O que é pior: Isolamento social ou o coronavírus? - Teresina. Disponível em: clique aqui. Acesso em 26 jun. 2020.

2 PERSAD, Govind, WERTHEIMER, Alan, EMANUEL, Ezekiel J. Principles for allocation of scarce medical interventions. Lancet, 373, jan 2009, (9661):423-431.

3 POWELL, Tia; CHRIST, Kelly C.; BIRKHEAD, Guthrie S. Allocation of Ventilators in a Public Health Disaster. Disaster Medicine and Public Health Preparedness 2, mar. 2008, (1):20-26.

4 STYRON, William. A Escolha de Sofia. São Paulo: Geração, 2010.

5 BEAUCHAMP, Tom. L., CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. 3.ed. São Paulo: Loyola, 2013.

6 PORTO, Dora. Bioética de Intervenção nos Tempos da Covid-19. DADALTO, Luciana (org.). Bioética e COVID-19. Indaiatuba, SP : Editora Foco, 2020. Edição do Kindle.

7 ALEXANDER, Shana. They Decide Who Lives, Who Dies. LIFE magazine, November 1962. Disponível em: <clique aqui
>. Acesso em 20 jun. 2020.

8 JONSEN, Albert R,; SIEGLER, Mark; WINSLADE, William J. Ética Clínica: abordagem prática para decisões éticas na medicina clínica. 7.ed. Porto Alegre: AMGH, 2012, p. 196.

9 SATOMI E, SOUZA PM, THOMÉ BC, REINGENHEIM C, WEREBE E, TROSTER EJ, et al. Alocação justa de recursos de saúde escassos diante da pandemia de COVID-19: considerações éticas. Einstein (São Paulo). 2020;18:eAE5775. clique aqui.
2020AE5775.

10 PERSAD, Govind, WERTHEIMER, Alan, EMANUEL, Ezekiel J. Principles for allocation of scarce medical interventions. Lancet, 373, jan 2009, (9661):423-431.

11 PERSAD, Govind. Evaluating the Legality of Age-Based Criteria in Health Care: From Nondiscrimination and Discretion to Distributive Justice, Boston College Law Review, 60, 2019, (3), Rev. 889.

12 AMIB; ABRAMEDE; ANCP. Recomendações da AMIB, ABRAMEDE, SBGG e ANCP de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19. Disponível em: <clique aqui

>. Acesso em 10 mai. 2020.