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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
terça-feira, 26 de março de 2024

Adoniram Barbosa: Espelho de São Paulo

Houve época em que o coração do paulistano pulsava de orgulho, com maior intensidade, quando chegava ao marco zero de São Paulo, a Praça da Sé. De lá se irradiavam todas as ramificações de uma cidade pungente, possuidora de um esplendor crescente em todas as áreas das atividades humanas. Ela abrigava a Catedral e, no seu entorno, estavam os tribunais e fóruns do Poder Judiciário: a faculdade do Largo de São Francisco; a Câmara Municipal; a Prefeitura; anteriormente a Assembleia Legislativa, e um intenso comércio que atendia a todas as necessidades de consumo da população. Não havia shopping centers. A Praça da Sé ainda continha o quarteirão que abrigava o Edifício Santa Helena, destruído na década de setenta, por razões até hoje não bem claras. Todo o quarteirão veio abaixo para que a Praça ficasse unida a uma outra, a Clóvis Bevilaqua. Não só os prédios foram derrubados, mas a história ruiu, uma história voltada para as grandes atividades culturais de São Paulo, que ainda poderia estar sendo escrita. Vem-me à lembrança a enorme contribuição dada pelo chamado Grupo Santa Helena às artes plásticas. Volpi, Rebolo, Pennacchi, dentre outros, mantinham os seus estúdios no citado Santa Helena. Lá havia um teatro e um cinema. Um pouco acima, em uma rua transversal, a Felipe de Oliveira, Monteiro Lobato possuía escritório, sede de sua editora. Palco de manifestações cívicas desde sempre, a nossa Praça também era o observatório de um dos maiores compositores brasileiros, Adoniram Barbosa. Foi ele na verdade um extraordinário expositor dos nossos hábitos e costumes, pois soube captar com perfeição aspectos e nuances marcantes do povo paulistano. A sua atenção voltava-se em especial para os habitantes de origem italiana e para aqueles desprovidos de melhores condições de vida. Certa manhã, eu vi Adoniram em cima das escadarias da Sé, observando as centenas de transeuntes que se entrechocavam. Já narrei esse fato. No entanto, hoje o menciono porque me ocorre uma observação não referida anteriormente. A permanência do compositor nas escadas da Catedral, além de poder inspirá-lo como músico, dava-lhe ensejo de olhar o povo. A partir do mero olhar, imaginar e analisar todo um conjunto de sentimentos e emoções que habitam e movem milhares de seres. Há pessoas que sem estudo específico possuem uma inata vocação para desvendar a alma e a mente humanas. Observadores astutos conseguem decifrar o que se passa no íntimo do outro. Dotados de inteligência intuitiva, perspicácia e o chamado sexto sentido por vezes erram nas análises que fazem, mas, em regra, conseguem retratar com fidelidade a vida de pessoas, especialmente as marcadas por dificuldades imensas, em estado quase de penúria, mau relacionamento interpessoal, tragédias de um cotidiano árido e sofrido. Essa realidade foi exposta em suas músicas com graça, leveza e irreverência, fruto de uma vida intensamente vivida que ele transpôs para a sua arte, não só na música, como no cinema, no teatro e na rádio. Eu pretendo, nos próximos escritos, focar algumas dessas composições que encerram preciosas lições de sociologia e de psicologia e, acima de tudo, expõem um acendrado amor pela cidade de São Paulo, por seus bairros e por seu povo.
quarta-feira, 20 de março de 2024

A música retrata diversidades

Quando se escreve ou se fala sobre música, o enfoque é em regra a própria composição, o compositor, o cantor, a orquestra, o arranjo, enfim, as abordagens relacionadas à própria criação e à sua execução. No entanto, tão importante quanto ou, talvez, mais relevante é a temática que reflete a realidade histórica e sociológica de um momento determinado. No caso específico do samba, especialmente nos seus primórdios até os anos cinquenta e sessenta, foram retratadas as grandes mudanças operadas nos costumes, na cultura, no relacionamento interpessoal, no seio da família. As mutações operadas na sociedade brasileira, que de rural passou a se transformar em urbana, assim como as alterações nos perfis das cidades, as migrações para os morros e favelas, e tantas outras novas características passaram a compor a temática musical brasileira. A rica variação dos temas não se refere aos inúmeros  gêneros musicais. Quando falo na existência da interligação entre temas diversos, estou me referindo ao mesmo gênero, especificamente ao samba.   Como exemplo, posso citar a pobreza e a riqueza. A carência e a opulência. O malandro e o trabalhador. O morro e a cidade. A favela e o palácio e inúmeros outros motes que aparentemente se contrapõem, mas mostram realidades imperantes que vieram à tona por meio da música. São composições de cunho sociológico, extraídas, muitas vezes, das experiências pessoais de seus autores.   Importantes são os sambas que retratam hábitos,  costumes, a cultura de épocas determinadas, especialmente os cultivados nos setores sociais mais afastados dos núcleos de poder das elites. "Cabritada Mal Sucedida"; "Pistão  de Gafieira"; " Conversa de Botequim"; "Boas Festas"; "Lata D'Agua" "Favela"; "Feitio de Oração"; "Acender as Velas" e centenas de outros são magníficos sambas que trazem ao nosso conhecimento aspectos de um cotidiano por nós não vivenciado.       Noel Rosa, Assis Valente, Ismael Silva, Cartola, Zé Keti, Adoniram Barbosa, Chico Buarque, Caetano e outros souberam criar, por meio do samba, pontes entre dois mundos separados por quase intransponíveis barreiras sociais. Dois extraordinários compositores, um paulista e um carioca, transformaram os seus sambas em crônicas fidedignas das nuances e características de segmentos marcados por carências de todas as espécies. As ligadas à cultura foram de forma inteligente e hilária postas por Adoniram Barbosa que reproduziu em suas letras o falar do povo paulistano, notadamente das pessoas de origem italiana.  Algumas verdadeiras tragédias impostas pelas injustiças sociais igualmente receberam um tratamento fidedigno por parte do compositor do bairro do Bixiga. Como exemplo pode-se citar "Saudosa Maloca" . Outras mostram com graça as agruras de um povo sofrido, mas não desprovido da capacidade de superar os percalços para tentar viver com alegria, principalmente não abdicando do seu gosto pela música.    O Poeta da Vila, Noel Rosa, também retratista de   realidades específicas, soube abordar cenas da vida carioca, comuns nos bairros de Vila Izabel e da Lapa. A malandragem; os cabarés;  a preservação da língua pátria; os seus próprios defeitos físicos; alguns costumes sociais; a empáfia e a hipocrisia das elites; as dificuldades de relacionamento com pessoas chatas, são alguns dos seus temas. Foram tratados de forma veraz, irônica, maliciosa, denotadora de uma inteligência invulgar e uma grande capacidade de captar a verdade social e a própria alma humana. Essas são caraterísticas comuns aos dois magistrais compositores, Adoniram Barbosa e Noel Rosa. 
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Samba: espelho da realidade

O samba surgiu e se desenvolveu como importante   instrumento de registro da nossa realidade social e não como exclusividade musical. As suas raízes estão vinculadas às questões sociais que marcaram os últimos cem anos da história do Brasil. Os seus personagens, no seu nascedouro, já denotavam a sua origem. Eram  tidos como   desocupados, malandros, batuqueiros, habitantes dos morros e das favelas. Os locais onde o samba é tocado, por vezes composto, cantado e dançado, historicamente se tornaram  ambientes de sociabilidade. Sempre constituíram redutos de confraternização para uma parcela colocada à margem da sociedade. Nos seus primórdios, na cidade do Rio de Janeiro, em torno da Praça Onze, surgiram as casas das Tias, destacando-se a da Tia Ciata. O samba do partido alto, o samba de roda, batucadas e os desafios foram criando e sedimentando uma cultura musical que, não com pouca dificuldade, foi se espalhando pela cidade. Os primeiros sambas dali passaram a ser cantados pela cidade. Mas ouve demora e resistência das elites. Já nas primeiras décadas os seus compositores, notadamente Noel Rosa, retratavam a realidade a partir do meio em que o samba se desenvolveu. Muito dessa realidade ecoava suas próprias vidas, marcadas pelas carências advindas da desigualdade reinante, que obrigava a muitos recorrerem a expedientes de duvidosa legalidade para poder sobreviver. Não é sem razão que os conceitos de malandragem, vadiagem, ociosidade, boêmia os marcaram.  O seu inato dom musical possibilitava que  os compositores transformassem em música e em poesia o cenário que os rodeava, com as suas mazelas, alegrias, vicissitudes, hábitos e costumes de uma sociedade em rápida transformação. Com a restruturação urbana do Rio de Janeiro, a Praça Onze desapareceu. O samba migrou para alguns bairros, Estácio, Vila Izabel, Lapa e subiu os morros. Nenhum desses locais representava algum bairro aristocrático da Zona Sul. Nessa o samba chegou anos depois na forma de espetáculos exibidos nas boates e nos cassinos. A sua penetração definitiva junto à burguesia ocorreu com a bossa nova, uma importante variante, que se apresentava com contornos melódicos e poéticos acentuadamente diverso do samba de origem.      As composições de Chico Buarque de Holanda "Gente Humilde" e "Malandro quando Morre", embora da década de sessenta, reiteram um quadro que se alonga no tempo de forma imutável. A primeira mostra a dignidade na pobreza, pois sendo uma gente simples e humilde não abdica de manter no frontispício de suas casas "Aqui é um Lar". Dignidade e humildade que nos dá "vontade de chorar". Em "Malandro quando Morre" Chico revela o dramático panorama do morro com a ausência de um mínimo de amparo a não ser o consolo de se saber que "menino quando morre vira anjo", assim como "mulher vira uma flor lá no céu" e malandro quando morre 'vira samba". O samba de Zé Keti  "Acender as Velas"  parece ter surgido  para confirmar e complementar o "Malandro quando Morre", pois explica que a morte no morro se dá porque o "doutor chegou tarde demais", pois no morro carro não  sobe e não tem "telefone para chamar". A consequência é que "a gente morre sem querer morrer".   São dezenas as composições com cunho social que bem demonstram ser o samba um espelho fiel da nossa realidade.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Noel Rosa: Retratista do Brasil

O seu curto tempo de vida possivelmente não possibilitaria para qualquer outro compositor legar mais de duzentas e cinquenta músicas tal como Noel Rosa nos legou. Viveu 26 anos, de 1910 a 1936, tempo suficiente para, com a sua genialidade, criar um acervo musical que se transformou em um fiel painel da realidade social dos anos trinta.  Sua vida desprovida de regras e de limites, desfrutada com extraordinária intensidade, possibilitou a Noel adquirir uma experiência multifacetada sob o aspecto humano e social. Conheceu o homem, as suas misérias e grandezas, e espelhou em suas composições os vários segmentos sociais, do morro e do asfalto, das classes menos privilegias à alta sociedade, abrangendo todas as raças e todos os credos. Colocou a nu as mazelas e as fraquezas de uma sociedade em plena mudança de valores e de costumes, que já apresentava os claros sinais de empobrecimento acelerado de uma parcela inculta e carente ao lado do enriquecimento de outra, esnobe e pseudoaristocrática. Esse segmento, sem apreço pela nossa cultura, adquiria hábitos importados da França e logo após dos Estados Unidos. Noel verberou com uma hilária composição o mau costume, até hoje imperante, da utilização de palavras estrangeiras em substituição aos nossos vocábulos. Em "Não Tem Tradução" declara que "tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia, "é brasileiro já passou do português". No excepcional samba "Filosofia" retratou de um lado o seu sentimento em face às dificuldades e penúrias do homem comum, desprezado por sociedade que dita as regras. Nessa mesma música louvou a liberdade de poder cantar o seu samba, embora "nessa prontidão sem fim". As últimas estrofes trazem uma crítica às consideradas elites, que, apesar de endinheiradas, não podem comprar alegria e viverão escravos "dessa gente que cultiva a hipocrisia." As suas dificuldades financeiras foram cantadas em magníficos sambas que são divulgados até hoje, passados noventas anos. "O Orvalho Vem Caindo" e "Com que Roupa" com fino humor mostram o drama de quem não possui um teto e nem sequer tem um terno para ir a um samba. O boêmio na primeira canção tem como cortinado "o vasto céu azul" e como cama "uma folha de jornal". Já na segunda, o sambista não pode ir ao samba para o qual foi convidado, pois não possui uma roupa decente. Em "João Ninguém" faz uma apologia da felicidade que independe da fortuna, tal como já fizera em "Filosofia". Ele declara no final da composição que muita gente que ostenta luxo e vaidade "não goza a felicidade que goza João Ninguém". O "Conversa de Botequim", por sua vez, retrata um homem de bom gosto, que exige em um bar uma média com pão e bastante manteiga, água gelada, mas impede que o garçom fique limpando a mesa, pede palito, caneta e cartão e termina querendo "uma revista, um tinteiro e um isqueiro", não sem antes mostrar que é um pobretão, pois pede dinheiro emprestado ao garçom e ao gerente que "pendure essa despesa no cabide ali em frente."  Ele retratou o malandro inteligente, que com picardia, sagacidade e esperteza conduz a sua vida vencendo obstáculos e percalços. A versatilidade de Noel Rosa nos deixou músicas ligadas a áreas do conhecimento às quais não esteve ligado. Ingressou no campo do direito compondo "Habeas, Corpus" onde utiliza com correção termos jurídicos e adequa com perfeição o instituto ao enredo da letra. Também invadiu o setor da medicina ao criar "Coração", deliciosa música que exalta o nobre órgão como propulsor e transformador do "sangue venoso em arterial" e, também, como o "cofre da paixão". Segundo Noel, coração de sambista brasileiro "faz a batida do pandeiro". O samba termina satirizando quem tem "mania de grandeza" e que vive procurando alguém que "conseguisse encher-lhe as veias com azul de metileno" para ficar com "sangue azul". Em "Seja Breve", "Prazer em conhecê-lo" e "Rapaz Folgado" expressa quanto é desagradável conviver com pessoas inconvenientes, que criam situações constrangedoras.  Na primeira composição narra uma "conversa fiada", interminável. Na segunda, cumprimenta à força quem não gosta. E, na última, o personagem é um aproveitador sempre em busca de vantagens. Antes de terminar esse singelo escrito cumpre realçar a capacidade de Noel Rosa de rir de si mesmo. Em "Gago Apaixonado", "Filho do Tarzan ou Filho do Alfaiate" com saborosa ironia, fineza de espírito e fulgurante inteligência mostra não ter nenhum sentimento de inferioridade com suas características físicas que não seguiam os padrões estéticos comuns.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Reação musical

Há mais de dez anos abordei o assunto em um despretensioso escrito. O tema era a interferência da língua estrangeira, sobretudo o inglês, em nossa comunicação cotidiana. Volto a mencionar esse nosso vício, pois ele ainda persiste. Continuamos a praticar essa incompreensível "macaquice", que nada mais significa do que um profundo desapreço pelas nossas coisas, especialmente língua pátria.  Um dos setores que mais usam palavreado estrangeiro, em substituição ao correspondente vocábulo pátrio, é aquele responsável pelo anúncio e publicidade de produtos de qualquer natureza. Os folhetos, cartazes, faixas, veiculam, inclusive na imprensa escrita, falada ou televisionada palavras e frases em línguas de fora em detrimento da nossa. Em verdade, esse cacoete nacional representa uma sensação de inferioridade que secularmente nos acompanha. À guisa de ilustração, nas ruas de uma cidade do interior, encontra-se  escrita a expressão STOP ao invés do nosso PARE. Até na pia batismal essa tendência se diz presente. Basta que se observe o nome dado a alguns jogadores de futebol, Richardson, Welington, Cleverson, Washington e tantos outros em substituição aos nomes genuinamente nacionais e aos saborosos apelidos que tornaram conhecidos grandes craques, notadamente do passado quando o mau hábito não era adotado: Pé de Valsa; Cabeção; Diamante Negro; Pequeno Polegar e outros.   Eu indago qual teria sido a motivação dos pais ao escolher esses nomes ? Será que imaginam que ao fazer essas escolhas estariam garantindo o sucesso  aos filhos em suas futuras atividades. No caso do futebol deveriam saber que o êxito estaria nos pés e não nos nomes.   A música popular brasileira como fiel retratista de nossa realidade não poderia mesmo deixar de registrar essa deplorável  deturpação, essa inexplicável agressão ao nosso idioma. E o fez por meio de grandes compositores e cantores como forma de reação ora hilária, ora mais contundente, mas sempre com muita força e poder de penetração social. O compositor Assis Valente deixou claro em sua "Tem Francesa no Morro" que a francesa é bem recebida mas deve "Entrê na virada e fini pur samba". A sua mensagem mostra que aceitamos o estangeiro desde que ele se adapte à nossa cultura. A música inclusive conclama a francesa a frequentar a macumba "Si vu frequente a macumba". Trata-se propositadamente de uma letra sem muito nexo, exatamente para mostrar que a mistura dos idiomas não espelha pensamentos lógicos. Nessa mesma linha encontramos uma composição de Lamartine Babo, "Canção para Inglês Ver", na qual com o seu refinado senso de humor o compositor mostra o "non sense" que resulta do uso desnecessário de expressões inglesas. Em uma outra melodia, "Good Bye" , o mesmo  Assis Valente coloca o  homem simples a falar inglês , sem ter a mínima noção do que fala. Por tal razão o aconselha a abandonar a "mania do inglês" pois "fica feio para você mulato frajola que nunca frequentou as aulas da  escola" . Ainda segundo a canção, hoje não é mais bom dia nem boa noite "e sim good morning e good night". No entanto, na voz de Carmen Miranda a música assume um compromisso com a nossa língua : "ensinaremos cantando a todo o mundo be e bê, bi i bi e b-a-ba" antes que a vida se vá" . Noel Roa não ficou insensível ao avanço dos estrangeirismos. Compôs o "Não Tem Tradução" onde verbera o uso do inglês, dizendo que as rimas do samba não são "l Love You" e que o "alô boy, alô Jony só pode ser conversa de telefone". A reação musical somada à valorização da cultura nacional nos campos das artes plásticas e da literatura representaram uma quebra dessa tendência adventícia. No entanto, há dois setores que foram impregnados pelo estrangeirismo e dele não se desprenderam : o da publicidade e o das músicas tocadas em festas, casamentos e recepções, onde se ouve em regra somente melodia americana.     
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Assis Valente: Vitória da tragédia

Talvez tenha sido o compositor brasileiro que revelou a sua vida interior com mais transparência e clareza, com  as suas angústias, esperanças, desencantos sempre com um pano de fundo relacionado à busca incessante pela felicidade e pela alegria nunca encontradas. Não pense que suas letras eram lamuriosas, chorosas, repletas de queixas e de sofrimentos. A sutileza que empregava em letras por vezes até hilárias encobria a sua melancolia e as frustações que a vida  lhe proporcionou.   A melodia era primorosa, quer dos sambas, quer das marchas e de algumas que lembram valsas. Havia uma sintonia perfeita entre os acordes e os versos. Era fácil gravá-los e fixá-los na memória. Assis Valente não possuía nenhum conhecimento teórico de música, era o puro dom que a natureza lhe dotou. Aliás ele possuía uma outra aptidão que lhe deu alguma notoriedade no respectivo meio : era um protético de excelente qualidade. Fazia dentaduras e próteses com o mesmo esmero que se dedicava às suas composições. Alguém disse que ele era um artista no desempenho dessas funções. Ademais, tinha grande habilidade para o desenho tendo, inclusive, sido premiado em concurso público. Foi um fiel retratista do Rio de Janeiro de seu tempo, pelos anos de 1934. No entanto, não se limitou a musicar hábitos e costumes cariocas. Trouxe para as suas composições fatos da sua época que estavam no centro dos interesses sociais. Havia, por exemplo, uma grande apreensão com as notícias sobre uma grande catástrofe que poderia atingir a humanidade. Sensível a esse temor coletivo compôs a magnífica "E o Mundo Não se Acabou". A crença no fim do mundo teria levado alguém a fazer coisas incomuns, como beijar a boca de quem não beijaria, gastar com antigos desafetos, para no fim concluir que o "mundo não se acabou". Várias de suas músicas denotam a sua verve humorística e irônica. "Recenseamento"; "Uva de Caminhão", "Tem Francesa no Morro", "Camisa Listrada", "Maria Boa", "Isso Não se Atura", e outras. Enalteceu o samba e as coisas do povo simples como poucos compositores o fizeram. Trouxe para suas composições as festas brasileiras, especialmente a junina. "Olhando o Céu Todo Enfeitado" e "Cai Cai Balão ", nas quais já mostra uma tendência à melancolia.   A composição "Isso não Se Atura", uma inteligente apologia do samba de morro, satiriza os críticos desse ritmo. Das suas músicas românticas a mais expressiva e poética é a maravilhosa "O Vento e a Rosa".    Ao lado do Assis Valente hilário, romântico, cantador das nossas coisas, há um homem melancólico, angustiado, decepcionado com a vida que via com olhos ingênuos e esperançosos, mas que lhe provocou frustações e mágoas. Várias de suas músicas descortinam claramente essas características, ao lado de sua constante busca de alegria e da felicidade. Duas canções exprimem essa sua ânsia, nunca satisfeita. Na "Alegria" conclama ao samba, pois quem samba " tem alegria". A sua gente que era "triste e amargurada" passou a batucar para "deixar de padecer". Ele também padecia com a tristeza, por isso iria "deixar a cruel nostalgia" para, "esperando a felicidade" pensar que fosse melhorar "fingindo alegria" para "a humanidade não me ver chorar." O mesmo sentimento de frustação pelo não alcance da felicidade e da alegria ele retratou em "Minha Embaixada Chegou". Nela ele pede ao povo "na batucada desacatar" e vir "vadiar no meu coração" e diz à amada "cair na folia" para esquecer a tristeza "mentindo à natureza" e "sorrindo à tua dor". Em ambas as canções ele coloca o samba e a batucada como instrumentos para atingir o seu tão almejado estado de felicidade.     A sua composição emblemática, síntese do seu sofrimento, angustiante busca da felicidade e sua decepção por não a encontrar foi "Boas Festas". Enquanto "a gente ficou feliz a rezar" ele pediu a Papai Noel "a felicidade para você me dar". Fez esse pedido, pois pensou "que todo mundo fosse filho de Papai Noel" e que a felicidade fosse "brincadeira de papel". Decepcionado e solitário  concluiu que " o meu Papai Noel não vem" , pois com certeza ele já morreu ou então a "felicidade" é um brinquedo" que ele " não tem".   Esse magistral músico/poeta depois de duas tentativas de suicídio, uma delas atirando-se do Corcovado, obteve êxito ao tomar veneno, sentado em um banco de jardim. A tragédia venceu a ingenuidade, a alegria e a felicidade.   
terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A ternura de João Valentão

A música, seja ela de que gênero for, clássica, popular, nacional, estrangeira, nos provoca assim que é ouvida, uma sensação de agrado ou de desagrado. Salvo os musicistas e os críticos que analisam a melodia, o seu andamento, os acordes, o ritmo e demais aspectos, nós, os mortais, nos limitamos a gostar ou não, independente das razões das nossas preferências. Apreciamos ou não e ponto final. No entanto, há algo nas canções populares que nos chama a atenção, por vezes mais do que a melodia. Trata-se das letras. Essas merecem uma análise que ultrapassa os limites do gostar ou não, e, obviamente, não implica em se ter melhor ou pior ouvido musical. Nesse ponto me permito uma observação. Eu sempre fui desprovido de bom ouvido. Minha mãe era, ao contrário, dotada de excelente aptidão musical. Tocava violão, piano, durante algum tempo harmônica. Aliás, qual é a diferença entre harmônica e sanfona? Eu nunca soube. Meu irmão, José Eduardo, seguiu os passos de minha mãe. Dotado de dom musical, que não se adquire, por ser inato, com seis anos dedilhava um piano. Tocava de ouvido, pois talvez não soubesse ler partituras. Do meu pai herdei a desafinação. Ele não conseguia distinguir uma nota de outra, assim como eu, e sequer sabia assobiar, eu idem. Gostava muito de música e tinha as suas preferidas. As cantava alto e em bom som, agredindo os ouvidos de quem estivesse por perto. Dentre elas lembro-me de "Maria Bonita"; "Maringá"; "A Marcha do Expedicionário"; "Chão de Estrelas" e vários tangos, dentre esses "Adios Muchachos". Devo esclarecer que as minhas dificuldades musicais não se davam por falta de esforço e de empenho da minha mãe. Ela sempre foi uma entusiasta esperançosa de que o filho um dia despertasse para a música. Suas esperanças duraram até o dia em que me deu um pandeiro e eu mostrei-me inepto até para esse instrumento. Voltando às letras das músicas. As brasileiras nos apresentam facetas vinculadas às nossas realidades do passado, do presente, das várias regiões do país, dos nossos hábitos, feitos históricos, personagens, cidades, locais específicos, carências, mazelas, política. Enfim, todas as nuances e características do homem brasileiro e da sua sociedade foram e são retratadas por letras que abordam uma grande diversidade de temas. Românticas,  de exaltação nacional, hilariantes, de apologia ao  trabalho ou à malandragem,  cantando as belezas de uma cidade, de um bairro, do sertão, das favelas, uma diversidade  que abrange a vida em sua integralidade.  Eu pretendo, em outros escritos, tecer comentários sobre músicas específicas. Começo hoje. Trata-se de uma canção de Dorival Caymmi, "João Valentão". Traça o retrato de um briguento com perfil desafiador e experiência nos confrontos físicos, não possui preocupação com a vida e com o futuro. "Não presta atenção em nada" e "a todos intimida", as proezas de João e o seu jeito de ser compõem a identidade da música. No entanto, existe uma parte de puro lirismo, sobre os seus sonhos embalados pela beleza de sua terra. Há um momento, fim do dia "quando o sol vai quebrando lá pro fim do mundo" e obriga "João a sentar" em companhia da morena quando a "noite é de lua" e ele tem vontade de "contar mentira e de se espreguiçar". A canção termina com a belíssima mensagem de  que João "nunca precisa dormir para sonhar" porque "não há  sonho mais lindo do que a sua terra não há".
quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Envelhecer é um castigo?

O velho de cinquenta anos atrás era mais velho do que o velho de hoje. É verdade. Outro dia examinei uma foto de meus avós paternos. Ele com 60, ela com 62. Sentados em um banco, ambos vestidos com roupas pretas, circunspectos, aparentavam uma idade visivelmente superior a real. Não eram os únicos a involuntariamente esconderem a idade, não no sentido de diminui-la, ao contrário, mostravam um envelhecimento físico superior ao etário, isso ocorria com todos de sua geração e das anteriores. Em verdade, hoje a aparência reflete um estado de espírito não vigente à época. Explico: o envelhecimento antes de ser físico era psíquico. Envelhecia-se primeiro mentalmente e como consequência surgiam marcas no corpo, no modo de vestir, no comportamento em geral, impondo restrições conforme os padrões da época. Era comum ouvir-se "não fica bem na minha idade" fazer isso ou aquilo. Atualmente, deixa-se que a vontade se sobreponha às convenções. A autenticidade impera. Desta forma, as regras não são mais ditadas pela sociedade, o indivíduo sim é quem as impõe ao corpo social, por meio da reiteração de condutas até então consideradas impróprias. Talvez essa mudança seja fruto de um impulso vital que dominou a consciência coletiva: o querer ter uma vida integral, sem restrições, independente da idade. Não se aceita mais o "colocar os chinelos" como uma passagem da   vida que se levava para aquela que se apresentava   necessária e inevitável. Esta era uma vida de restrições de atividades, de opções consideradas inadequadas, de escolhas tidas como impróprias. Estou dizendo que a idade já não é um marco de mudanças obrigatórias, como um imperativo social. As alterações de comportamento com o correr dos anos são de natureza física, permanecendo incólume a ânsia de viver, o entusiasmo e as aspirações futuras. Não se deixar abater pelas naturais limitações no campo da saúde e manter disposição voltada para a satisfação de novos anseios e alcance de novas metas é um estado de espírito hoje comum e inexistente em gerações passadas, quando o desinteresse e o imobilismo imperavam.    Desde sempre o homem preocupou-se com o envelhecimento. Na verdade, o envelhecer nos coloca em contato com a morte. Talvez o maior argumento para se levar uma vida saudável, útil e produtiva seja exatamente a perspectiva do fim. Não devemos antecipar o inevitável. Ao contrário, devemos sim demonstrar o nosso apreço à vida, vivendo intensamente o tempo que nos será concedido. Envelhecer não é castigo, é crescimento e possibilidade de revisões, reiterações e aprimoramentos de pensamentos e de comportamentos.  
quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Natal: benquerença e solidariedade entre os homens

Fato que sempre me surpreendeu em relação ao Natal foi a ausência de uma reflexão sobre o seu significado. Com exceção de algumas religiões que por meio de suas entidades e respectivas igrejas e templos cultuam a data, a sociedade, de um modo geral, influenciada e instigada pela propaganda, vai às compras, enfeita as casas e a cidade, realiza as ceias e troca abraços. Pouco ou nada reflete sobre a essência natalina. Predomina o viés argentário e festivo do Natal.     Eu não me refiro à uma reflexão exclusiva sobre o nascimento de Cristo, embora o sentimento natalino parta desse fato, mas não se esgota nele. Há mais, muito mais para ser meditado e assimilado sobre esse fato de grande relevância para a humanidade. Na verdade, a essência do Natal reside num comportamento que deveria ser fielmente adotado, pelos que creem, pelos agnósticos e ateus, por aqueles que abraçam essa ou aquela ideologia, enfim, trata-se de um comando para o comportamento de todos, voltado para a concórdia e para o amor entre os homens. A data celebra há dois mil anos o nascimento Dele. Celebra o seu aniversário. Interessante que somos presenteados por Ele, por meio de um seu representante, Papai Noel. E tem início uma fase do comando natalino: a troca de presentes entre amigos e parentes tem um eloquente sentido: o da confraternização e da comunhão. Claro que esses sentimentos são devidamente explorados pelos apelos comerciais. No entanto, a sua essência permanece íntegra: o gesto de presentear é gesto de amor. Uma vez ao ano o desprendimento, a entrega, a generosidade parecem substituir o egoísmo e a ganância. Abraça-se com afeto o semelhante, que nesse momento é mesmo um semelhante. Esse significado deveria estar entranhado na mente de todos. Não é o presentear que importa, é o ato de amor nele contido. O Natal desperta a criança que eu ainda carrego. Adoro abrir presentes, dá-los também muito me agrada. As luzes da árvore, as bolas, o presépio me fascinam. A ceia me aguça o pecado da gula. E peco sem arrependimento. Quero confessar: o que mais me emociona no Natal é a passagem do dia 24 para o dia 25. O ponto alto são os abraços. Já disse, adoro abraçar e ser abraçado. Abraços e beijos, beijos de mulheres e de homens. Terminou o bobo preconceito de que homem não beija homem. Quando soa a meia noite em casa nós rezamos. O fazemos de mãos dadas e com os nossos pensamentos voltados para Ele, o Aniversariante. Eu exaltei os presentes, a ceia, os abraços, as orações, restou mencionar um outro elevado aspecto do Natal: as crianças. A alegria, o riso, a emoção das crianças. O êxtase que delas se apodera quando ouvem seus nomes para receberem os presentes. O fascínio ao abri-los e ao descobrir o conteúdo. Eu não só me emociono, como me identifico com cada uma delas. Viro criança. Ao eventual e paciente leitor eu faço um apelo: recebam esse escrito como uma manifestação de um homem de setenta e oito anos que crê nos valores inerentes ao Natal, especialmente na singeleza e na pureza de seus atos exteriores, como formas de benquerença e solidariedade entre os homens.
terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Laços que não se rompem

Eu creio ser coisa rara a manutenção de amizades que romperam o tempo e o espaço, e se perpetuaram. O tempo não consegue reduzir-lhes a intensidade e o espaço não cria barreiras que impeçam o convívio, ainda que esparso. Não me refiro às amizades que beiram o simples conhecimento ou as que ficam restritas às normas da sociabilidade. Falo daquelas que possuem raízes profundas e sólidas e remontam épocas e situações arraigadas nas nossas memórias. Um fator responsável pelo nascedouro desses afetos é a escola. Pelo menos parte das minhas foi gestada nos bancos escolares da infância e da juventude. Uma outra fonte é a rua. A rua na qual se morou ou aquelas por nós frequentadas. Ambos os locais, escola e rua, constituem um fértil campo para que germinem as amizades que se solidificaram no decorrer dos anos. Lá nós aprendemos a conviver, vale dizer saímos de nós para enxergar o outro e com ele interagir. Nós somos retirados do casulo do nosso interior. Passamos do interior para o exterior, da imagem para a realidade.           Na escola há o aprendizado, que vai sendo adensado à medida que ele evolui. Em todos os estágios amigos surgem, amigos ficam e amigos se vão. Do primário até à Faculdade a fonte é reabastecida continuamente. Uma vez terminado um ciclo entra-se em outro, de natureza profissional onde as amizades anteriores são sedimentas e outras nascem.   O outro espaço para se constituir laços de amizade é a rua. Ela era mais adequada para se construir e manter amigos quando por ela se transitava e se permanecia com mais frequência. Hoje se tem os carros a nos isolar e impedir o contato com o outro. Dos prédios para os carros sem  se ter  que dar  necessárias caminhadas. Com efeito, tempos atrás tinha-se que andar para pegar condução, para se fazer compras, as visitas eram mais frequentes e ia-se a pé a lugares menos distantes. As pessoas se viam mais e um simples "dedo de prosa" constituía um fermento para alimentar e fazer crescer as amizades. Eu tive e tenho amizades dos locais de ensino que frequentei e das ruas pelas quais perambulei e flanei durante toda minha juventude, diria até que na infância eu já ia para as ruas. A Stella, localizada na confluência dos bairros do Paraiso e da Vila Mariana era o meu reduto, meu e de tantos outros jovens habitantes  das redondezas. Recentemente amigos editaram um livro em minha homenagem. Pois bem, ao seu lançamento foram conhecidos das mais variadas épocas e circunstâncias. Os das escolas, os da advocacia e, claro, os velhos amigos da rua Stella lá estavam. A amizade com os mais antigos, data de setenta e três ou setenta e quatro anos. Foram três colegas do Externato Paraiso,  tínhamos quatro ou cinco anos quando cursamos juntos o jardim da infância. A vida não nos separou, nos uniu. Esse texto singelo foi escrito em louvar à amizade, e para dar graças por não me incluir no poema de Cassiano Ricardo : "Só tenho três amigos / meu eco, minha imagem e minha sombra."  
quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Faculdade franca, mas não tão risonha

Em texto anterior mostrei que a vida acadêmica do meu tempo se desenvolvia em vários setores com muita intensidade e participação abrangente. Difícil apontar um colega que não tenha tido atuação em algum desses setores: cultura; esporte; artes; política acadêmica ou externa; boemia. A Faculdade nos proporcionava enormes oportunidades para termos múltiplas experiencias na vida em sociedade. Ao lado da formação profissional adquiríamos valioso conhecimento do mundo e dos homens. Os eventos políticos da minha época na Faculdade  impulsionaram os estudantes para uma rica atividade voltada para a redemocratização do país. Em verdade a nossa luta ainda era para que a democracia não sucumbisse. A luta foi em vão. Após 1964 o regime militar, implantado mercê de um golpe, foi se consolidando e as franquias do regime constitucional foram sendo aniquiladas, até que em 1968 veio a derrocada com o ato institucional nº 5. Havia na Católica duas correntes que divergiam sobre os métodos de combate à ditadura. Uma delas pregava um ativismo que poderia chegar até a luta armada. Os seus integrantes constantemente saiam às ruas em passeatas e para  comícios que em várias ocasiões terminavam com a intervenção da polícia. A outra corrente, à qual eu pertencia, entendia que a oposição ao regime recém implantado deveria ter como foco os meios de comunicação, os que escapavam da censura, a assembleias e, especialmente, o contacto com entidades profissionais, sindicatos, clubes, associações culturais e outros agrupamentos. Nós criticávamos as demonstrações de violência pois entendíamos que elas estariam dando ensejo ao endurecimento do regime. O nosso vaticínio foi cumprido, com o ato institucional de 1968. Nas assembleias e reuniões internas, esses dois grupos se opunham,  mas o adversário comum que era o regime ditatorial os unia, pois ambos o combatiam com ardor embora de forma diferente. Houve uma ocasião em que nós "tomamos" a Faculdade impedindo que houvesse aulas. Nosso gesto quis mostrar que era impossível a normalidade da vida universitária sem a liberdade que nos fora subtraída. Os colegas do Largo de São Francisco também ocuparam a Faculdade na mesma ocasião. Apesar dos tempos sombrios de repressão, prisões, censura, tortura, cerceamentos e limitações  de toda ordem os acadêmicos não perderam as suas tendências para brincadeiras, galhofas, divertimentos. A alegria, no entanto, não substituiu as preocupações com a redemocratização do país.  Como disse, o empenho pela volta à normalidade democrática possuía duas vertentes, representadas pelas duas facções que se utilizavam de métodos diversos. A mais agressiva quando da "tomada" da escola, colocou no sótão alguém armado, para talvez defender o prédio de eventuais invasores dos aparelhos das forças da repressão. Imaginem se isso seria possível? . . .   Eu mesmo testemunhei o empenho bélico de alguns estudantes. Certa manhã, no centro acadêmico 22 de agosto localizado em frente à Faculdade, abri um carrinho de Fanta para tomar uma, quando me deparei não com os refrigerantes, mas sim com coquetéis "molotov". O carrinho transportava garrafas com pano na borda embebido de álcool ou gasolina.  Esse foi um tempo no qual os estudantes de direito assumiram a vanguarda do movimento pela redemocratização do país. Não obstante a desigualdade de armas o combate foi permanente e aguerrido, pouco importando os métodos utilizados, todos nós lutamos e eu muito me orgulho por ter participado dos embates em prol da liberdade.
terça-feira, 31 de outubro de 2023

Faculdade risonha e franca

Em outros escritos expliquei as minhas ligações afetivas com a Faculdade do Largo de São Francisco, embora tenha me formado na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Em verdade, todos aqueles que são vocacionados para atuar na área do Direito sofrem uma influência natural do espírito acadêmico das arcadas, independente da Faculdade em que se formaram. No meu caso específico há um componente diria que hereditário. O meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior formou-se no Largo, foi um ardoroso propagador das tradições da Velha Academia, das histórias de seu tempo como acadêmico e especialmente dos feitos da Turma de 1946, por ele considerada a melhor de todas. A Paulista de Direito, por sua vez, fincou raízes irremovíveis no meu espírito, nas minhas memórias e no meu afeto. Lá cultivei e aprimorei duas tendências talvez inatas. Uma para a advocacia e a outra para a política, não a política partidária ou eleitoral, mas aquela que objetiva o conhecimento dos problemas sociais e institucionais de maior alcance, com o objetivo de contribuir para a sua solução. Política participativa, como cidadão e profissional do direito. Pude, na Faculdade, tendo em vista, especialmente, o momento histórico, participar intensamente da política acadêmica, unindo-me quanto aos fins, nem sempre quanto aos métodos, a todos os colegas e correntes que se colocavam contra o golpe militar de 1964. Foi no antigo convento da Monte Alegre que conheci Ângela, colega de turma com quem me casei; fui aluno de magníficos professores; tornei-me amigo de companheiros de toda a vida; aprendi a conviver com os contrários e tive uma vida acadêmica intensa, diria rica de emoções, momentos de boêmia, esfuziantes alegrias vividas em bares, restaurantes, na sede do Centro Acadêmico e nas memoráveis choupadas no campo de futebol, não mais existente.  Ao lado de uma esmerada formação profissional, de uma intensa atividade de política universitária, a Católica nos proporcionou memoráveis situações hilariantes, decorrentes  do convívio com professores, colegas e até com estranhos aos bancos escolares. Desses últimos lembro-me de um simpático andarilho apelidado por nós de "Vermelho". Perambulava pelas imediações da Faculdade e, por vez, estacionava na sua porta e lá permanecia. Conversando conosco ou discursando, insuflado pelos alunos por ele considerados colegas, Vermelho fazia parte do nosso cotidiano.  Nem sempre o nosso "colega" estava sozinho. Por vezes se apresentava com uma companheira. Jovem, mas judiada por uma  vida cruel marcada por infortúnios.  No entanto, sentíamos que a atenção que dávamos a ambos os alegrava a ponto de se sentirem integrados na nossa comunidade. Em nome dessa integração certa ocasião resolvemos levar Vermelho e sua companheira para assistir à uma aula de Direito Internacional, ministrada pelo Professor Dalmo Belfort de Matos. Homem de rara cultura, profundo conhecedor dos meandros do direito e das relações internacionais, mas um mestre talvez excessivamente complacente conosco, os seus alunos. Havia um dia da semana que o Prof. Dalmo ia à feira existente nas imediações da Faculdade e da casa em que morava também ali perto. Passava pela calçada do lado oposto à Escola, empurrando o carrinho com as suas compras. Educado que era, respondia aos inúmeros cumprimentos dos alunos postados do outro lado. Ficava aflito com tantos "bom dia professor" que tirava o seu indefectível chapéu para responder às saudações e se esquecia do carrinho. Este velozmente descia a Monte Alegre, derrubando verduras e frutas que se espalhavam pelo chão. Creio que mudou o seu itinerário, ou desistiu de fazer feira,  pois após algumas repetições da cena nunca mais o vimos empurrando o carrinho.      Mas voltamos ao casal de "colegas". Antes do início da aula do professor  Belford de Matos pusemos ambos sentados em carteiras da sala de aulas. Na primeira, a moça e o Vermelho mais atrás. Esse comportou-se bem. Ela, no entanto, assim que teve início a preleção, começou a mexer-se e, mais e pior, não parava de arrumar a sua blusa que por defeito de fabricação não cobria por inteiro os seus seios. Incomodado com aquela cena, repetida várias vezes, o Ilustre e querido Professor não se conteve e sempre mantendo a sua fidalguia disse: "Senhorinha, por favor, comporte-se". Sem nada entender a "senhorinha" ainda tentava aprumar-se. Dois lúcidos colegas, para evitar maior constrangimento ao professor, a retiraram da aula. Vermelho, no entanto, permaneceu atento até o seu final. 
terça-feira, 17 de outubro de 2023

O centro que para mim não morreu

Eu sou avesso ao conceito corrente entre os mais velhos de que em seu tempo as coisas eram melhores, fluíam com mais facilidade, o convívio entre as pessoas  tranquilo, enfim que a vida era melhor para ser vivida. Não concordo. Há aspectos melhores sim, mas há também outros que surgiram para nos beneficiar, com o correr dos anos. Deve-se, em regra, viver o presente com os olhos voltados para o porvir. Viver do passado ou viver no passado em verdade impede a evolução, o aperfeiçoamento, a fruição do que o presente nos oferece. Pode-se sim viver com as lembranças do passado que nos são gratas. Nesse sentido, valho-me da memória para recordar aspectos marcantes de minha vida ligados à cidade de São Paulo, especificamente ao centro da cidade. As minhas lembranças remontam aos anos cinquenta até início ou meados dos anos dois mil. Dizem respeito não só às experiências lá vividas, mas sobretudo ao que ele representou para a própria da cidade e para a sociedade. O centro de uma cidade em nosso país sempre representou o local de confluência de pessoas, de concentração do comércio e do acúmulo dos interesses sociais, financeiros e culturais. Compras, negócios e lazer se desenvolviam em lojas, restaurantes, teatros, livrarias, bancos, escritórios, enfim todos os aspectos que materializam as múltiplas atividades de uma população citadina,  eram exercidas em suas ruas e praças. Nas cidades do interior ainda as praças do centro possuíam os coretos e eram palco dos tradicionais footings. As minhas primeiras idas à cidade se deram quando criança. Eu acompanhava minha mãe que ia fazer compras. Lembro-me de uma confeitaria chamada Campo Belo, na rua São Bento, onde tomava ice cream soda. Interessava-me o Mappin, onde também tomávamos lanche. Ficaram em minha memória lojas como a Genin onde minha mãe ia comprar novelos de   lã, pois era uma exímia tricoteira. Loja da China e a do Ceilão vendiam de tudo para festas de aniversário, salvo engano ficavam na rua José Bonifácio. Eu a  frequentaria muito no futuro, especificamente para ir ao restaurante Itamarati e à livraria Saraiva. As sapatarias estavam na rua Quintino Bocaiuva. As lojas de tecidos e de livros religiosos na Benjamin Constant. Essa região, denominada centro velho, era bem sortida de restaurantes. Estudantes do Largo de São Francisco, advogados, juízes, promotores, funcionários do fórum e do Tribunal de Justiça, além dos comerciantes compunham a lista de assíduos frequentadores do Corso; do Campestre; do Gouveia; do Mon Ami; do Bar do Zé; do Amarelinho; dos Japoneses da rua da Glória e vizinhança; do Ouro Velho; do primeiro Jardin de Nápoli; do Barsorti; do Guanabara; da Brasileira; do Terraço; e inúmeros outros.           Havia um expressivo número de livrarias. As jurídicas eram a Saraiva; a Forense; a Revista dos Tribunais; a Buchascki e vários sebos que também possuíam livros de Direito. Dentre os sebos havia o Floresta; o Messias; o Orfali e outros localizados na Praça João Mendes e nas ruas Rodrigo Silva e Álvaro Machado. Na mesma Praça João Mendes uma livraria que era muito frequentada por mim chamava-se Livraria do Povo, dirigida por um livreiro que  tinha pleno conhecimento dos livros expostos, seus autores, conteúdo e outros detalhes. Um autêntico livreiro. Freitas Bastos, na 15 de novembro, Brasiliense, Teixeira, Livraria Francesa, essas no "Centro Novo" e outras que me escapam atraiam ao centro intelectuais, escritores, poetas e leitores em geral. Aliás, iam ao centro artistas de todas as categorias. Os musicistas compravam instrumentos e partituras na Casa Manon, na 24 de maio. Os pintores se abasteciam de tintas, telas, pinceis na Casa Miquelangelo, na Líbero Badaró. A diversidade do centro como o principal centro comercial da cidade atraia os mais variados consumidores. Os chamados "passarinheiros" frequentavam a Casa Orestes, salvo engano esquina de Benjamin Constant com Largo de São Francisco. Os profissionais da medicina se socorriam da Casa Fretin, no Largo do Patriarca com São Bento. Aliás, e me perdoem as lembranças esparsas e desorganizadas, agora me veio à mente na  mesma rua São Bento a Casa California, especializada em magníficos sanduiches de linguiça  e sucos. Lá pela hora do almoço quando saia do cursinho do Professor Tolosa eu tomava uma batinha de maracujá, com alguns colegas. Os restaurantes do Centro Velho eram menos sofisticados do que aqueles situados do outro lado da cidade, atravessando o Viaduto do Chá. Paddock; Bistrô ; Baiuca; Bar Redondo; Marcel; Gigeto; Vienense; Churrascaria República; La Casserole; Gato que Ri; Ponto Chic; Bar Brahma; Papai; Salada Paulista. Círculo Italiano. Em nome da fidelidade ao que havia de mais significativo no centro da cidade, não posso me esquecer dos boêmios e dos locais que frequentavam, além dos bares e das choperias. Refiro-me às boates, aos chamados inferninhos e aos "taxi danças", instituições hoje inexistentes. Dacar; Clube de Paris; Avenida Danças; Chuá; Paulistano da Rua da Glória; Som de Cristal, eram alguns dos lugares noturnos obrigatórios para jovens e homens maduros. Mas também a eles acorriam os ainda adolescentes que alteravam as suas idades em documentos, para ter a entrada permitida. A Praça da Sé e vizinhanças representam os locais das minhas mais marcantes recordações do centro da cidade. Depois de haver trabalhado na rua Boa Vista, no 3º Tabelionato de Notas fui para o escritório de meu pai, na Praça nº 399, 5º e depois 6º andar. O quadrilátero formado pelas Praças da Sé, Clóvis Bevilaqua, João Mendes e Av. da Liberdade reunia o maior número de advogados por metro quadrado talvez de todas as grandes Capitais do mundo. Todos os prédios nelas localizados e mais os das ruas ao redor eram ocupados por escritórios de advocacia. Ademais, os Tribunais de Justiça e os de Alçada, os Foros  Cíveis e Comerciais, o Ministério Público e as várias Procuradorias do Estado e do Munícipio funcionavam nas imediações. As sedes da Ordem, da Associação e do Instituto dos Advogados estiveram ali situadas.  As ruas eram locais de encontro de bacharéis e de estudantes do Largo de São Francisco. Esse contacto permanente e inevitável dava a todos uma agradável sensação de pertencimento. Sabia-se integrante de uma comunidade. O título desse texto reflete uma realidade que me é presente, qual seja a da perpetuidade do centro de São Paulo. Talvez esse apego exista porque o único sentimento que nunca se apossou dos que lá frequentavam era o de solidão. Até hoje, mesmo com ele abandonado e degradado, os que lá estiveram não se sentem sós.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Leite de cabra e outros leites

Em verdade, minha intenção não é escrever sobre o leite, nem sobre os seus predicados nutricionais e obviamente sobre a pecuária  do leite. Quero me referir a um tipo de leite, o de cabra e o sobre aqueles que vinham em garrafa e eram ou comprados nos armazéns ou postos no portão das casas. Mas, devo esclarecer que a menção que faço ao leite é para tê-lo como gancho de um outro tema que parece não guardar nenhuma relação com o leite. Como se verá guarda sim. O tema de fundo é a sociabilidade provocada pelas entregas e serviços feitos nos domicílios de antigamente. Além do leite, os jornais eram entregues. As casas eram visitadas pelo tintureiro, pela lavadeira, encanador, marceneiro,  chaveiro, limpador de vidros, eletricista, engraxate que ia buscar e entregar os sapatos o afiador de facas, o consertador de panelas e  outros prestadores de serviços fundamentais. As minhas lembranças  ficaram  marcadas por cada um deles que nos atendiam na rua Cubatão, na Vila Mariana, onde morávamos. Alguns se tornaram amigos de casa, figuras incorporadas não só nas nossas lembranças como nas nossas memórias  afetivas. O leite de cabra  não me marcou nem pela senhora que conduzia o animal e nem pela cabra.  Mas sim pelo leite, por isso o título. Ah! O leite. Espumoso, quente, sim saia quente. Não pensem que era fervido, não. Saia quente da generosa cabra, diretamente para o copo. Tinha   um sabor característico, inigualável. Era gorduroso, isso é verdade. Mas, e daí? Falo do leite não só pelo seu sabor, que só por si já bastaria. Mas, quero me referir ao seu entorno. Em primeiro lugar à  minha avó paterna, pois era em sua casa que a cabra passava. Morava ela na esquina de Stella com Cubatão. Nos dias de visita da representante da raça caprina eu ia à casa da avó. Quando a senhora chegava eu descia com dois copos que eram enchidos. Pagava e subia com minha avó para deliciar-me. Ia esquecendo de um aspecto : a cabra anunciava a sua chegada tocando um simpático sininho colocado em seu pescoço. Sentávamos minha avó e eu, em duas cadeiras de balanço. Velhas cadeiras, que a acompanhavam há mais de cinquenta anos. Eram de palhinha. Passávamos longo tempo sorvendo o leite. Vovó, então,  contava-me histórias de seu tempo de jovem. As histórias sempre eram as mesmas. Cada narrativa, no entanto, apresentava aspectos novos ou que modificavam os descritos antes. Eu me deliciava. Saibam, no entanto, que as nossas conversas e as suas narrativas não eram só regadas a leite. Não. Quando não havia leite, nós tomávamos um detestável martini branco, acompanhado de uma latinha de castanha de caju. O leite de cabra e todos os produtos e serviços originários dos magníficos artesãos que batiam às nossas portas simbolizam uma época na qual o homem comandava atividades essenciais ao nosso dia a dia e criavam sólidos laços de afeição e de amizade. Por mais que possa a tecnologia não poderá substituí-los.
terça-feira, 12 de setembro de 2023

Ele se foi. A sua alma ficou. Ele é imortal

Todos nós, em algum momento da vida, ou em vários, ou durante ela toda, tivemos algum amigo que nos auxiliava e amparava, em situações específicas ou permanecia atento e alerta para intervir quando necessário fosse. Laços de amizade formavam um elo entre essas pessoas a nós de forma absolutamente desinteressada. Essa afeição nem sempre correspondida a um estreito relacionamento no nosso cotidiano. E, nem era preciso, pois bastava haver uma necessidade para que o protetor dissesse presente.   Durante a minha já longa existência - quero que ela mais se alongue - eu encontrei um expressivo número de amigos prontos a dar estímulo e colaboração à uma empreitada ou para estender-me a mão em alguma situação de dificuldade.   Um desses amigos foi-se recentemente. Seu nome, Antônio Ivo Aidar. A característica mais marcante do nosso relacionamento foi o seu desprendimento. De mim nada quis, mas muito me deu.   Era notável o seu entusiasmo pela Ordem dos Advogados e por sua política. Logo nos primórdios de sua carreira profissional talvez antes até de formar-se, empenhou-se na instalação da subseção da OAB na sua amada cidade natal, Olímpia. Os colegas de lá devem ser gratos à sua insistência e pertinácia, responsáveis pela subseção local. Não pararam aí  as postulações de Ivo em prol de sua cidade. Anos depois, foi inaugurada a Casa do Advogado, que leva o nome de Henri Couri Aidar, saudoso advogado, homem público e dirigente esportivo de escol,  também de Olímpia. Creio também que se não fosse a sua   obstinação os advogados locais não teriam a sua Casa. Quanto a mim, creio dever a Ivo boa e significativa parcela da minha trajetória junto à OAB. A subseção de Olímpia foi instalada quando a Ordem de São Paulo era presidida por Mário Sérgio Duarte Garcia. A pedido de Ivo fui designado para fazer o discurso na solenidade de inauguração. A partir desse evento, creio eu em 1980, trilhamos juntos uma longa e exitosa trajetória na política de classe. Quando em 1986, fui candidato à presidência da entidade lá estava ele me apoiando, estimulando e trabalhando intensamente em toda a sua região. Foi grande a sua indignação e inconformismo em relação à votação de Olímpia: dois advogados não votaram em nossa chapa. Ivo passou vários anos para descobrir quem foram os insubordinados, que não obedeceram à sua voz de comando. Nos anos seguintes, seguramente durante trinta e poucos anos ele participou intensamente das campanhas de Ordem, apoiando os candidatos lançados por nosso grupo que originariamente denominava-se Tempos Novos. Nos anos em que o grupo não apresentou candidato o seu inconformismo era grande. Ligava-me constantemente para reclamar, pois entendia que eu era o "chefe", o responsável único pelas decisões do grupo. Essa sua impressão a meu respeito  muito me lisonjeava. É preciso acentuar que Ivo não era apenas um entusiasta da política,  exercida por ele com grande maestria. Tinha muita percepção não só dos fatos da política como decifrava os homens que dela participavam. Irônico e sagaz não perdoava aqueles pouco dotados de inteligência, e com finura de espírito produzia tiradas  hilariantes a respeito de suas vítimas.   Ivo possuía características peculiares que lhe emprestavam um natural charme expresso por suas  pitorescas observações e condutas, sempre marcadas pelo seu agudo senso de humanismo, solidariedade e bondade.   Não posso deixar de invocar o testemunho daqueles que acompanharam a sua carreira como advogado e o assistiram nas audiências. O grande advogado de família era  respeitado e  temido pelos adversários,  por alguns  juízes, pois não perdoava os desvios éticos dos colegas e os abusos dos magistrados. Reagia com enérgicas e sarcásticas intervenções. A defesa intransigente de seus clientes assegurava a esses uma assistência eficiente e corajosa numa área delicada e sensível da profissão.    Ivo atuou em vários setores e departamentos da Ordem, tendo se destacado na presidência da Comissão do Advogado Deficiente. Nessa oportunidade, demonstrou toda a sua sensibilidade humana e o seu poder de cativar as pessoas. Ivo foi amado por quem o conheceu. Meu amigo de sempre e sempre amigo, da minha parte  ficam a minha gratidão, a minha saudade e a minha permanente lembrança dos momentos  de vida compartilhados com ele. Como disse o poeta Fernando Pessoa,  a morte é como a curva do rio, apenas não se é mais visto. Você viverá, Antônio Ivo Aidar, na memória de todos nós, por isso você se tornou imortal.
quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Descobrindo o Brasil

Escrevi em certa ocasião que "Quem gosta do Brasil é estrangeiro". O título talvez conduza à generalização no sentido contrário: o brasileiro não gosta do Brasil. Há compatriotas que obviamente amam o país em que nasceram. Diria que, em regra, esses pertencem às camadas menos privilegiadas da sociedade. São homens e mulheres simples que herdaram dos seus pais e dos ensinamentos escolares o respeito pelos símbolos da pátria; o culto pelos que se destacaram nos campos da literatura, da música, das artes plásticas e em outros setores; a admiração por alguns eventos históricos como a independência, a inconfidência mineira, a libertação dos escravos e muitos outros motivos de estima que o país nos fornece.   Lamentavelmente, o mesmo sentimento de apreço pelo que é nosso nós não encontramos em alguns setores mais sofisticados pertencentes às elites, especialmente aquelas melhor posicionadas financeiramente. Há uma indisfarçável tendência dos seus integrantes em supervalorizar tudo que é oriundo de fora em detrimento do que é nosso. São pessoas que ao obterem êxito econômico e posição social destacada passam a negar as suas raízes e principalmente olvidar as razões desses êxitos, todas elas vinculadas ao país em que nasceram. Trocando em miúdos, quero dizer que ganham dinheiro no Brasil e o desprezam. Mais do que isso, sonham em deixar o país, ou ao menos desejam mandar seus filhos para outras plagas.      Esse desapego talvez se deva ao fato de termos sido uma colônia durante três séculos. Mesmo após nossa independência não adquirimos com clareza e com firmeza uma identidade nacional. Nos deixamos influenciar por culturas alienígenas a ponto de usarmos outros idiomas como linha auxiliar de nossa língua.   E isso, em uma escala alarmante. Tivemos primeiro o francês e, posteriormente, o inglês impregnando a nossa fala cotidiana e substituindo o português na publicidade, na marca de produtos e na denominação de estabelecimentos comerciais. Esses e outros aspectos representam um nítido complexo de inferioridade.  Nelson Rodrigues afirmou que nós padecemos do complexo do cão vira lata e somos verdadeiros Narcisos ao inverso. Olhamos para o espelho e não gostamos do que vemos. Eu ousaria contestar o grande teatrólogo para dizer que o cão vira lata, como aliás afirmou Eduardo Giannetti possui uma grande capacidade para improvisar, criar soluções e superar obstáculos tal como nós brasileiros. Esses atributos do vira lata permitem que ele sobreviva a todas as agruras da vida.  Esta comparação feita por um ângulo positivo mostra que se somos como o cão que vira as latas tanto como ele temos condições de resolvermos problemas e de construirmos o nosso próprio futuro, com as aptidões que nos são inatas. Portanto, "herdeiros" ou não dessas características caninas, não há razões para essa depreciativa noção que alguns possuem. O atávico desamor nacional que marca certos segmentos sociais constitui sem dúvida um fator importante de atraso civilizatório em vários setores da vida nacional. Eu fiz toda essa digressão como sinalização para essa questão da baixa estima que nos acompanha, parece que desde sempre. Na verdade, quero exatamente contar algo que nos dá orgulho e envaidece. Escrevo sobre isso, pois chegou a hora de enaltecermos o positivo e não ficarmos presos ao depreciativo, ao reprovável. É pouco aquilo que vou discorrer brevemente. Mas, de pouco em pouco vamos descobrir que temos uma infinidade de aspectos dos quais nos orgulhamos. Vou me referir a um museu que visitei na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do Museu Histórico Nacional. Está instalado num adorável conjunto arquitetônico que imagino ter sido uma fortaleça. Posteriormente, um palácio que deve ter tido inúmeras serventias. Localizado na região central do Rio, perto do Aeroporto Santos Dumond e quase encostado à antiga Casa de Misericórdia, ele não fica devendo a qualquer museu do mundo se for feito um cotejo. As obras: pinturas esculturas, peças decorativas, louças, moedas, armas, móveis, quadros de personagens, estão expostos e organizados cronologicamente e seguidas por explicações colocadas ao lado de cada uma de molde a nos dar informações completas sobre cada uma e, sendo o caso, sobre os seus autores. Inclusive sobre a nossa pré-história há obras e valiosas explicações. Toda a nossa história está descrita e exposta de forma pedagógica, ilustrativa e abrangente dando-nos, tanto quanto um museu pode dar, noções valiosas das nossas origens, da nossa cultura e de como construímos o país que temos. Eu citei apenas um dos nossos museus. Inúmeros outros devem ser realçados: Museu do Amanhã; Museu do Ipiranga; Museu de Belas Artes; Museu da República (Catete); Museu de Petrópolis; Museu da Quinta da Boa Vista; Museu do Futebol; Museu da Língua Portuguesa; os vários Museus de Imagem e de Som e outros tantos de Arte Moderno e Arte Contemporânea espalhados pelo Brasil. O destaque agora foi para os museus. No entanto basta que nos despojemos do preconceito inferior e adquiramos autoestima para enxergar nossas qualidades e nossos valores. Precisamos entender definitivamente que não somos piores nem melhores do que outros povos, somos sim diferentes. Salve essa diferença.  
segunda-feira, 3 de julho de 2023

Precisamos defender o habeas corpus

Uma série de fatores sociais, políticos e jurídicos transformaram substancialmente as relações interindividuais, assim como aquelas que envolvem os cidadãos e o Estado. Um desses fatores foi o aumento da criminalidade e, como consequência , a ação repressiva do Estado. O sistema jurídico nos mostra que, se de um lado, o crime deve ser reprimido, de outro, a sociedade precisa estar protegida contra o arbítrio e o abuso de poder. O arcabouço jurídico foi construído tendo em vista esses dois objetivos. Sendo assim, nós temos os Direitos, Penal e Processual Penal, voltados não só para a atividade punitiva como  para a garantia  da dignidade e da liberdade do homem. No direito pátrio o instrumento mais eficiente de proteção individual é o Habeas Corpus. Mercê de sua simplicidade procedimental, pois não prevê uma fase probatória e um contraditório amplo, a sua impetração leva a decisão rápida que visa pôr fim a uma coação ilegal. No entanto, nos dias de hoje,  estamos assistindo a uma diminuição sensível no acolhimento por parte do Poder Judiciário desse fundamental instrumento de proteção aos direitos individuais. Em nome do acúmulo de processos  o âmbito de sua  aplicação está sendo gradualmente reduzido, assim como a atuação dos advogados impetrantes está cada vez mais sendo dificultada e mitigada. Em face da sua importância, tradicionalmente o Habeas Corpus é chamado de "remédio heroico". Pois bem, aproveitando a analogia médica, pode-se afirmar que se está atacando a doença com a morte do doente. Em nome da tentativa de se desafogar os Tribunais,  está se deixando que  pereçam os direitos que deveriam ser amparados pelo remédio tido como heroico. O nosso país sempre teve em seu ordenamento jurídico, desde a Constituição de 1824, normas de proteção aos direitos individuais. Não explicitamente, mas de forma clara e precisa, a Carta da Monarquia impunha obrigações  a toda autoridade que efetuasse a prisão de alguém. Posteriormente, a legislação ordinária passou a utilizar a expressão Habeas Corpus como meio de defesa contra uma coação ilegal. Em 1889, a Constituição Republicana deu ao instituto uma amplitude que alcançou não só o direito de ir e vir, como quaisquer outros que não poderiam ser exercidos em face de uma coação ilegal. As Constituições posteriores, inclusive a de 1988, mantiveram o Habeas Corpus, ao lado do mandado de segurança, ambos como eficazes instrumentos para a salvaguarda de diretos atingidos por uma ilegalidade. Houve um momento da nossa história recente que o Habeas Corpus sofreu uma sensível diminuição em sua amplitude, especialmente com o ato institucional nº 5, de l969, que praticamente o suprimiu. Como já dito, atualmente, obstáculos estão sendo impostos à impetração e ao julgamento de Habeas Corpus. Deve-se apontar, incialmente, a constante quebra do princípio do colegiado, na sua  apreciação por parte dos Tribunais. Uma das características que inclusive justificam a  existência desses órgãos é exatamente possibilitar a revisão das decisões de 1º grau, por meio de julgamentos coletivos, proferidos por Magistrados mais antigos na carreira e, portanto,  mais experientes. A  regra do colegiado, no entanto, vem sendo sistematicamente desobedecida. O Habeas Corpus não está sendo polpado.  No mesmo dia da impetração os autos são distribuídos e nos dias subsequentes, quando não no mesmo, recebem uma solução individual. Os advogados não têm oportunidade sequer de entregar memoriais e o Ministério Público de se manifestar. Tem-se pleno conhecimento da enorme quantidade de processos acumulados nos Tribunais. Ademais, sabe-se eu o número de sustentações orais por sessão de julgamento é excessivo. Esse fato muitas vezes leva os Magistrados à exaustão no final dos dias. A necessidade e a qualidade de algumas sustentações, por outro lado,  deixam muito a desejar. A partir de tais constatações vários advogados estão em contacto com Ministros dos Tribunais Superiores para que, em conjunto, sejam encontradas soluções que conciliem as dificuldades dos Magistrados com os direitos dos jurisdicionados. Uma das medidas aventadas é a organização da advocacia em carreira, tal como ocorre na maioria dos países. Será adotado um critério temporal que venha a possibilitar aos profissionais após cinco anos de militância em 1º grau, oficiar perante os Tribunais localizados nos Estados e após outros cinco postular junto às Cortes Superiores em Brasília. Deseja-se minimizar as agruras provocadas pelo excesso de litigiosidade com, no entanto sendo preservados o direito dos cidadãos terem as suas postulações integralmente examinadas pelos Tribunais, por meio de decisões obrigatoriamente colegiadas, após a livre manifestação dos advogados nas tribunas, em respeito ao pleno exercício do sagrado direito de defesa.
quinta-feira, 22 de junho de 2023

Povoar o centro para ressucitá-lo

Não me impressionam no centro da cidade os moradores de rua, pois esses infelizmente habitam São Paulo em todos os seus bairros e cantos. É o reflexo de uma trágica situação de desequilíbrio social que se agrava há anos e encontra a imutável insensibilidade por parte expressiva da sociedade e a quase inércia absoluta do Estado como respostas. Ações esporádicas de solidariedade e providências governamentais de pouca efetividade ficam muito além das necessidades reais da população de rua e permanecem distantes da solução do problema, que só se dará quando todos tiverem um teto que os abrigue em condições dignas de habitação. Abstraindo-se essa trágica questão social, assim como o estado de deterioração de inúmeros imóveis, e também o  precário estado das calçadas e do piso das ruas, o fato que mais me aflige e chama a minha atenção é o abandono físico das ruas do centro. Entenda-se esse abandono como a ausência de pessoas circulando por espaços anteriormente quase intransitáveis, como diriam os antigos apinhados de gente.  Quer o chamado "centro velho," quer aquele ligado pelo Viaduto do Chá, o "centro novo" que já é vetusto, as ruas abrigam poucas lojas abertas e um número cada vez menor de transeuntes. Essa característica empresta a certas regiões um triste ar de desolação, na verdade a aparência de um corpo desprovido de alma. O que ainda permanece são as histórias de um centro pungente no qual fervilhavam todos os sentimentos de um povo que emprestava à cidade características de um burgo em permanente crescimento industrial, financeiro e cultural. As velhas ruas que circundavam a Praça da Sé, tais como  Riachuelo, Senador Feijó, Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro, Direita, São Bento, Largo de São Francisco, um pouco mais abaixo José Bonifácio, Líbero Badaró, Páteo  do Colégio, Alvares Penteado, Boa Vista, do Comércio, Patriarca carregam uma carga repleta de eventos históricos e de lirismo, plantado pelos vates,  estudantes da Velha Academia. Sobre cada um desses espaços foram debruçadas epopeias que marcaram a história de São Paulo, cada uma delas como reflexo de sonhos e de ideais que impulsionavam e davam razões de viver para as respectivas gerações. Na Praça da Sé, os inesquecíveis comícios das Diretas Já. Anteriormente, os apelos cívicos de trinta e dois, as campanhas eleitorais e até um sangrento evento que envolveu integralistas e comunistas, na chamada Guerra da Praça da Sé, dentre inúmeros outros. Os acadêmicos do Largo de São Francisco marcavam a cidade com as suas fanfarronices, críticas, zombarias, troças, por meio dos "trotes" e das "peruadas". Por outro lado nas passeatas que ocupavam as ruas acima citadas procuravam levar à população mensagens em prol da redemocratização do país, durante a ditadura Vargas; na Revolução de 1932; clamaram pela participação do Brasil na 2º guerra mundial ao lado dos aliados; proclamaram a necessidade da anistia aos presos políticos e ajudaram a levantar a Nação em prol das eleições diretas.    Voltando às ruas e às suas efemérides: a Líbero Badaró assistiu ao assassinato do Jornalista que lhe emprestou o nome; o Largo de São Bento presenciou a aclamação de Amador Bueno como Rei dos Paulistas, título não aceito; a Rua de São Bento possuía uma cruz em sua extremidade, que segundo a lenda teria sido furtada pelos estudantes. A verdade é que ela desapareceu. O mesmo destino teve o badalo do sino da Faculdade, que foi furtado para que não mais fosse acionado para chamar os alunos às aulas.   No final da hoje rua Cristovam Colombo, lateral ao Largo de São Francisco, havia um barranco que produzia um eco muito forte e nítido. Consta que o poeta Olavo Bilac quando estudante se dirigia à sua beira e gritava "boa noite" para ouvir de volta a retribuição da gentileza "boa noite". Essas mesmas ruas e aquelas situadas após o Viaduto do Chá eram ocupadas pelos estudantes que com grande frequência faziam serenatas àquelas que desejavam conquistar. Como regra não despertavam o interesse das donzelas, mas sim ganhavam baldes de água fria acompanhados do próprio balde arremessado pelos futuros ex-sogros. Acadêmicos vestidos de mulher perambulavam pelas vias da cidade alguns portando armaduras medievais e outros armados de palmatória prontos para castigar algum notívago que era mandado para casa. As hoje abandonadas vias do centro abrigavam bares e restaurantes que se fixaram na memória degustativa e sentimental de todos os que, como eu, os frequentavam diariamente, impossibilitados de ir fazer refeições em suas próprias casas, especialmente em razão do horário do expediente forense. Gouveia; Corso; Campestre; Itamarati; Ouro Velho; Amarelinho; os japoneses da Liberdade; Mon Ami; Bar das Sardinhas; Terraço e outros eram locais também de confraternização e comemorações. Abrigavam especialmente advogados, promotores, juízes, estudantes, funcionários do Poder Judiciário, enfim acolhiam toda a família forense e possibilitavam um congraçamento que tornava ameno e agradável um convívio muitas vezes, durante os trabalhos judiciais, marcados, não raras vezes por contrariedades e alguns dissabores. Imagino que o Centro de São Paulo possa um dia voltar a ser um expressivo núcleo de sociabilidade para os paulistanos numa conjugação de pessoas com uma cidade marcada por história, arquitetura extraordinária e um acendrado simbolismo sentimental e afetivo. 
sexta-feira, 16 de junho de 2023

A amizade: sentimento que está em falta

A amizade é uma necessidade do ser humano decorrente de sua característica de animal gregário que é.  Desta forma, possui a tendência de se relacionar que, por sua vez, provoca situações que criam uma dependência afetiva com outros seus semelhantes.   Raros são os misantropos, os que se isolam e desejam a solidão como forma de vida. Na verdade, eu imagino que tais pessoas não se isolaram sempre. Um fato qualquer, uma forte decepção, um evento específico deve ter provocado aversão pela vida em sociedade e o seu consequente afastamento. O cronista, aliás excepcional cronista e compositor, Antônio Maria, disse em relação aos seus amigos que eles "nunca se sofreram". No entanto, nem todos podem afirmar que nunca tiveram sofrimentos ou percalços em suas amizades. O fenômeno da amizade reflete a própria natureza humana, que apresenta uma carga de erros, desencontros, desacertos, próprios da falibilidade humana.   Eu posso afirmar que tive e tenho inúmeras amizades que resistiram a incontáveis vicissitudes. Algumas delas, no entanto, foram rompidas. Não levo em conta as causas, muito menos os culpados, importa sim que elas, apesar de interrompidas, entraram no rol das minhas mais gratas recordações. As experiências que tive no campo das amizades desmentem um outro grande jornalista, escritor e dramaturgo que foi Nelson Rodrigues. Para ele o amigo é "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida". Eu posso afirmar que transformei a utopia em sonho e este em realidade. Tive e tenho amigos. Uns já se foram para o outro patamar. Como eu creio na perenidade daqueles que continuam a viver em nossa lembrança, eles para mim são imortais. Como disse o poeta, a morte é como a curva de um rio, só não se é mais visto.    A amizade em regra não cobra retribuição e nem é egoísta. Ao contrário do amor que exige reciprocidade e exclusividade. É interessante a indagação que se faz vez ou outra, a respeito dos motivos que levam a se ter amizade por alguém.  Por que sentimos afeto por determinada pessoa? Estou me referindo às amizades sem causa, aquelas que surgem sem que tenha havido algum motivo. A respeito dessa afeição instantânea fala-se, simbolicamente, em amor à primeira vista, diz-se que houve uma "química", uma recíproca atração, e coisas que tais. Aliás, todas essas expressões retratam uma tendência, uma inclinação recíproca entre duas pessoas. Essa simpatia não possui nenhuma base na realidade das coisas, ela decorre do instinto. Ser amigo é aceitar o outro, como as suas características, defeitos, qualidades, sem nenhuma avaliação ética ou moral. Você pode sentir afeto por quem você não comunga das ideias, não concorda com o comportamento, por vezes recrimina, mas apesar disso você gosta e ponto final. Ser amigo não é fazer uma escolha padronizada, consoante um modelo preordenado, como se retirasse o amigo de um manequim, como um vestido ou um paletó. A amizade é sobretudo um acolhimento.   Em resumo, ela simboliza a fraternidade, o amor que deve reger o relacionamento em sociedade. Todas as barreiras que nos separam uns dos outros podem ser superadas se os pressupostos da amizade estiverem presentes. Mesmo que não se queira a aproximação com alguém ou com um grupo é necessário que eles sejam respeitados, aceitos, tolerados. Esses sentimentos representam a antítese da discriminação e da intolerância raivosas, odientas que infelizmente foram propagadas nos últimos anos e deixaram raízes que precisam ser removidas. Na verdade, nunca a amizade e a recuperação da essência do seu significado foram tão necessárias como atualmente.    Não seremos amigos de todos ao mesmo tempo e nem em tempos diversos. Mas poderemos ter um olhar de compreensão, tolerância, complacência, aceitação, amizade, enfim amor, com todos e com tudo mesmo com os que mais se distanciam e diferem de nós. O afastamento  e a divergência não podem trazer a repulsa e a malquerença.
terça-feira, 30 de maio de 2023

Viver é preciso. Morar também

Um dos mais angustiantes problemas da atualidade são os moradores de rua. Não se pense serem eles os responsáveis por esses problemas. Em verdade representam a sua consequência, vitimados por uma histórica situação de injustiça social. Constituem as suas vítimas e em nada contribuíram para a sua ocorrência. Um acúmulo de fatores levou às ruas milhares de paulistanos, para nos fixarmos apenas na cidade de São Paulo. Todos eles convergem para um denominador comum: a histórica e crônica desigualdade social, que nos acompanha desde sempre. Ela é fruto da má distribuição de rendas; da ausência de empregos; da baixa escolaridade; da inexistência de políticas públicas, dentre tantas outras causas, que foram agravadas pela pandemia do COVID. Ademais, a iniquidade é refletida na carência em áreas como as da saúde e do saneamento básico; da habitação; da alimentação; do vestuário; da violência; da criança abandonada. Essa desigualdade, cujas razões e efeitos foram exemplificados acima, é marcada por um aspecto que lhe empresta uma situação de permanência e imutabilidade, qual seja a insensibilidade das chamadas elites. O mais arguto e atento observador dessa tragédia, a ausência de moradia para milhares de pessoas, não consegue assimilar e, portanto, transmitir o sofrimento que acomete essas pessoas. Trata-se de uma situação inenarrável. Para se chegar perto da realidade é necessário que se tenha extremada sensibilidade, ausência e egoísmo, e acima de tudo amor ao próximo. Aqueles sentimentos, no entanto, estão ausentes de parcelas consideráveis da nossa sociedade. Caso tenham um dia se sensibilizado com o angustiante problema, logo se acostumaram a com ele conviver. Vale dizer, se ele não causar nenhum incômodo, as pessoas pouco ou nada se importarão. O ideal é que as "habitações" não fiquem no seu campo de visão, assim a situação será esquecida. Esquecida não, desprezada.   Poder-se-á indagar, em face da situação qual diferença faria o maior interesse da sociedade. Talvez essa indagação se justifique especialmente nos dias de hoje, quando o individualismo se tornou marcante na sociedade brasileira. Embora os meios de comunicação e de informação tenham sido aprimorados e agilizados, estamos diante de desafiador paradoxo:  as pessoas podem se ver e se comunicar com mais facilidade, no entanto, estão mais voltadas para si e mais distantes das questões coletivas. Caso houvesse um despertar geral para os problemas que afligem comunidades e segmentos específicos, com certeza a rede de solidariedade conseguiria minimizar consideravelmente os sofrimentos dos seus integrantes. Ademais, a sociedade como um todo, uma vez mobilizada poderia ser um instrumento de pressão junto aos governos cujas ações de enfrentamento do problema são parcimoniosas, pouco eficientes e normalmente possuem um caráter meramente midiático. Um exemplo da natureza dessas ações, é aquela desenvolvida pela Prefeitura em relação às barracas existentes na Praça da Sé e adjacências. Pela manhã, as "moradias" são retiradas para que haja uma limpeza nos respectivos locais. Denomina-se essa conduta de "zeladoria". Depois de um determinado horário à noite as mesmas barracas são respostas. Suaviza-se o problema de forma meramente estética, plástica, visual, durante o dia até o anoitecer. Pergunta que se impõe: e as pessoas para onde vão, onde ficam, o que fazem durante essas longas horas? Perambulam pelas ruas, com certeza. Estamos falando de seres humanas: homens, mulheres, idosos, crianças, doentes, grávidas, viciados, todas as espécies que compõe esse vergonhoso universo de desvalidos, que nem sequer possuem um teto durante o dia, ao menos de lona. A vergonha deveria ser nossa. Talvez ela nos impulsionasse, em nome da solidariedade humana, a sair da inércia e a imitar o apelo do grande historiador Capistrano de Abreu, no sentido de que a Constituição da República deveria ter uma única norma de comando "Todo brasileiro deverá ter vergonha na cara". Entenda-se a expressão vergonha como o sentimento de honradez, decência, pudor, dignidade, cuja ausência denota, além da carência daquelas qualidades, uma absoluta falta de sensibilidade, solidariedade e como já dito de amor ao próprio. O "outro pouco se me dá como pouco se me deu". Para amenizar a cruel situação dos habitantes das ruas, da sociedade se exige reconhecer o problema e não permanecer inerte. Já há algumas ações concretas de auxílio e amparo, mas são insuficientes, precisam ser ampliadas. Como a questão necessita de medidas que atinjam a sua raiz, do Estado se espera, na verdade se exige, planejamento, recursos e vontade política para ele fazer o que tem que ser feito: disponibilizar moradias, construindo-as ou adaptando imóveis já existentes. Morar, não nas ruas, é preciso, para se viver com dignidade. 
quarta-feira, 17 de maio de 2023

Sustentações orais: A minha primeira no STF

Um dos problemas que afligem a advocacia criminal nos nossos dias diz respeito às sustentações orais. Alguns fatores têm causado algum incômodo nos magistrados. Eles não escondem o mal-estar que sentem em face do número excessivo de advogados na tribuna em cada sessão. Eu acrescentaria que a má qualidade de algumas sustentações constitui outro fator da indisposição, mas que não é revelado por elegância e respeito a nós, outros advogados. Como regra, são de quinze a vinte sustentações diárias. Esse número é comum nos Tribunais Superiores, nos Tribunais Regionais e em alguns Estaduais, como os de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Eu me espanto com o crescimento acelerado, vertiginoso do número de colegas que comparecem para sustentar nos dias de julgamentos. Até poucos anos apenas em certos casos de maior complexidade os colegas viam necessidade de se comunicarem oralmente com os julgadores durante os julgamentos. Entregava-se memoriais, por vezes pessoalmente e apenas nas hipóteses de esclarecimentos mais pormenorizados ou em face de maior complexidade é que se sustentava. Vários advogados, eu inclusive, no ato da contratação deixávamos claro que a sustentação ficaria exclusivamente a nosso critério. Sabíamos que por vezes ela seria contraproducente e isso pelas mais variadas razões. No entanto, atualmente especialmente os colegas recém-formados não adotam nenhum critério de necessidade ou de oportunidade e sustentam em todo e qualquer caso. Por vezes, usam a tribuna apenas para lerem as razões já escritas ou os memoriais apresentados. Sensibilizados com o grande número de sustentações orais desnecessárias, por vezes produzidas por colegas ainda carentes de experiência e de preparo técnico, nós, advogados mais antigos e afetos aos julgamentos dos órgãos superiores, passamos a cogitar na hipótese de enviarmos ao Congresso Nacional um projeto de lei organizando a advocacia em carreira, tal como ocorre em outros países.        Ao lado do fator acima apontado, número não pequeno de sustentações desnecessárias, é preciso ser realçado outros motivos que são alheios à conduta dos advogados. Os Tribunais Estaduais e os Regionais Federais recebem um número expressivo de recursos e de habeas vorpus em razão do rigor dos juízes de primeira instância que decidem em consonância com a cultura punitiva que se instalou no país. Exacerbação das penas; decretação de preventivas estando ausente a sua necessidade; manutenção de flagrantes em crimes de bagatela; ignorância dos fatores deletérios das cadeias; indeferimento de postulações defensivas e claro desequilíbrio no tratamento das partes nos processos são alguns dos fatores que nos obrigam a que se valha dos tribunais. Por outro lado, como os tribunais dos Estados não seguem reiteradas decisões em um mesmo sentido proferidas pelos tribunais de Brasília, esses são acionados em nome da unicidade e coerência do sistema penal. Desta forma, como é óbvio, os próprios órgãos do Poder Judiciário são responsáveis pelo acúmulo de processos nos tribunais superiores. Um outro fato que vem nos afligindo diz respeito aos habeas corpus. Os seus julgamentos estão sendo feitos monocraticamente pelos respectivos relatores. As decisões são proferidas sem que o advogado tenha tido oportunidade de sustentar e nem sequer de despachar memoriais. Não são raros os casos nos quais uma vez distribuída a medida receba um imediato despacho. Havendo indeferimento resta ao impetrante o agravo regimental, que agora permite uma sustentação oral por cinco minutos. Concessão outorgada por uma recém lei, mas que nada representa em face da exiguidade do tempo e pelo indeferimento já existente. Esse estreitamento do grande instrumento da liberdade que é o habeas corpus representa verdadeiro atentado à liberdade dos jurisdicionados e ao próprio Estado Democrático de Direito. Bem, para amenizar esse texto, eu passo a narrar a minha primeira sustentação oral no Supremo, em uma época na qual o direito de defesa era exercido em sua plenitude. Foi em 1974, ainda quando as franquias democráticas estavam fortemente mitigadas. Estava apreensivo, mas feliz por ir à Brasília apresentar-me ao Supremo pela primeira vez. Tomei o avião, sentei-me, afivelei o cinto, afrouxei a gravata, mas não tirei o paletó. Terrível erro. Uma simpática e solícita aeromoça ao me trazer um suco de laranja o entornou por inteiro em meu paletó e camisa. Atingiu também a gravata.    O seu constrangimento e as desculpas reiteradas impediram-me de reclamar. Acabei por dizer-lhe que não era nada, que não se preocupasse. Menti, pois era muito. No entanto, mesmo impregnado pelo cheiro da laranja e pelas manchas amarelas, ao vestir a beca no Supremo voltei a sentir o orgulho inicial.
quarta-feira, 3 de maio de 2023

Gloriosos comilões

Uma das manifestações mais eloquentes do viver com alegria, com prazer, com entusiasmo ocorre na mesa, durante uma refeição. A confraternização que ela nos proporciona, em regra, solidifica amizades, sela parcerias, possibilita o congraçamento de ideias e de ideais. A mesa é um verdadeiro símbolo de confraternização humana. Não é outra a razão que todas as raças, todos os povos sejam lá de que origem forem, emprestam um valor inestimável ao momento em  que a família se reúne para os almoços  e jantares. Ultimamente no Brasil tem-se ouvido que as pessoas evitam as reuniões de família, especificamente os almoços de domingo, para evitar manifestações de intolerância política que vem ocorrendo. Uma intolerância raivosa fruto de um discurso radical e profundamente antidemocrático daqueles que não admitem a divergência de opiniões. Oxalá o brasileiro volte a utilizar a cordialidade como regra de conduta e que os descorteses voltem para os armários dos quais jamais deveriam ter saído. Mas voltemos à mesa. Seja da casa, de um restaurante, de um bar, de um boteco, até do chão transformado para os piqueniques. Deve ela voltar a ser símbolo de amizade e de amor. Quero render homenagem àqueles que a cultuam, não só como símbolo de confraternização, mas também como instrumento de apreciação da arte culinária. Senta-se à mesa  para cultivar afetos e para saborear iguarias. Aliás, estas são os atrativos daqueles. Essas homenagens serão personificadas nas figuras de José Eduardo Mariz de Oliveira, meu saudoso irmão e do extraordinário jornalista e historiador Élio Gaspari. E o faço narrando fatos ilustrativos do imenso prazer, da indisfarçável alegria, da reverência e do culto de ambos ao ato de comer. Meu irmão, que já nos deixou há anos, enquanto viveu parece ter vivido para comer e não comido para viver, como dizia a nossa mãe. O seu prazer pela mesa era indisfarçável e se tornou público, eu diria até folclórico. Todos que com ele se relacionavam tinham como sua marca registrada o afeto pelo comer bem. Nem sempre era a excelência dos pratos que o atraia, mas a quantidade. Quando apreciava uma nova iguaria não media esforços para saboreá-la, tantas vezes quantas fossem possíveis. Uma ocasião almoçamos no restaurante Genova e um prato desconhecido para ele foi servido. Macarrão com feijões  (fagioli). Pois bem, o almoço deve ter  terminado por volta das três horas e às seis ou sete, do mesmo dia, lá estava ele para repetir a iguaria. O proprietário da excelente cantina, Sr. João, não se cansava  de divulgar a proeza, inédita para ele e para todos que a ouviam. Em certa ocasião descobriu um sorvete de milho segundo ele espetacular. Fosse a hora que fosse lá ia ele deliciar-se com o gelado. Não se pense que a sorveteria era logo ali na esquina de sua casa. Não me recordo o local, mas era muito longe em um bairro distante quilómetros do seu.          Ao lado de meu irmão coloco o querido amigo Élio Gaspari. Em dia recente tive a confirmação do seu apego à arte de comer. Antes eu já intuía que o emérito historiador e festejado jornalista era um devoto da mesa. Intuição, na verdade baseada em um fato. A convite de outra figura de destaque, o Ministro Delfim Neto, fomos saborear ostras especialmente encomendadas de Cananeia para ele, pelo restaurante Roma. Após terem ingerido, Élio e Delfim, eu um pouco menos, mas não muito menos, dezenas de ostras um disse ao outro, em voz mais baixa, como para ninguém ouvir: "vamos comer agora um macarrãozinho". Em seguida, veio à mesa um suculento macarrão alho e óleo. Para ser honesto preciso confessar que por minha sugestão, ao alho e ao óleo foi acrescentado aliche. Assim, ao lado das ostras foi devidamente devorado um "macarrãozinho". O episódio do Élio que quero narrar se deu no restaurante,  que eu recomendo, chamado Cozinha de Preto, na rua Fradique Coutinho. Estávamos Élio, eu e meu velho, querido amigo Vitorino Antunes. Claro que todos comemos bem e nos satisfizemos, pois o prato era generoso. Todos não. Élio nos disse sem nenhum constrangimento que sentia um pequeno vazio no estômago. Com certeza comeria mais. E, pensamos Vitorino e eu que ele preencheria o vazio estomacal à noite ou com um pequeno lanche quando chegasse em sua casa. Grande engano. Não se fez de rogado e pediu outro prato. Aliás, o mesmo prato. Vale dizer, repetiu o que já havia comido. E o fez sem nenhum esforço, com prazer lambeu os beiços. Vejo nesses dois exemplos e muitos outros existem, uma homenagem à própria vida, à alegria de viver, ao saber viver usufruindo o que ela nos oferece de saudável, de digno e de perene, pois esses momentos dão eternidade ao efêmero.
terça-feira, 25 de abril de 2023

De quase padre a herege

Não consegui até hoje saber a razão que me levou a desejar abraçar a vida clerical, quando tinha uns onze ou doze anos. Não sei o motivo, mas lembro do meu estado de espírito à época. Estava todo ele voltado para aquilo que eu imaginava ser uma vocação irrenunciável. Recordo-me de algo bizarro, mas que deve ter influenciado a minha, à época, inclinação sacerdotal. Eu lia uma revista em quadrinhos ( gibi ) sobre a vida de santos e santas da igreja católica. Certa ocasião assistia a uma missa na Igreja do Embaré em Santos quando uma querida tia, irmã de minha mãe, perguntou-me se ainda eu queria ser padre. Respondi literalmente : "agora mais do que nunca." A frase foi amplamente divulgada para a família. Tenho certeza de que poucos acreditaram na minha contundente declaração. Meus pais, não tenho dúvidas, jamais puseram fé nas minhas inclinações sacerdotais. Conheciam-me bem. Ao fazer um  histórico da minha infância e adolescência   lembro-me que frequentava uma igreja, a Santa Generosa, localizada no Paraíso, Largo Guanabara, cujo pároco era extremamente rigoroso especialmente em relação a nós meninos e jovens que éramos chamados de "cruzados". Acima estava a categoria dos congregados marianos. As moças eram "filhas de Maria".  Eu não cheguei àquela categoria. Não fui promovido. Embora o Padre José nos vigiasse, muitas vezes "cabulávamos" suas palestras dadas na casa paroquial. Dizíamos em casa que iríamos ao seu encontro, mas na verdade o nosso destino era o campo do Olímpicos, a rua Stella e as da imediação onde ficávamos "vadiando". Vez ou outra, tentávamos ir jogar sinuca em bar existente no Largo ao lado da Igreja. Nem sempre conseguíamos entrar, pois não tínhamos idade. Mais velhos passamos a frequentar a sinuca do bar Vermelhinho, localizado na rua Machado de Assis.    Após o curto período em que quis  abraçar a vida religiosa, descobri que a minha "vocação" não era sacerdotal. Eu tenho dúvidas em relação a certos dogmas da Igreja Católica. Não consigo, por exemplo, entender o celibato imposto aos padres; jamais compreendi as indulgências e a confissão; a ideia do pecado; a posição contrária ao planejamento familiar, por meio dos anticoncepcionais; a ferrenha oposição ao aborto mesmo nos casos de anencefalia e do estrupo. Essas minhas objeções e dúvidas, no entanto não abalam a minha fé em Deus, a minha crença nos valores do cristianismo e a admiração e atração pela vida de Cristo.   A minha fugaz tendência clerical veio, no futuro, a se contrapor à uma defesa criminal que fiz, pelo menos na visão de alguns católicos. Fui defensor de um pastor evangélico acusado de haver desferido chutes em uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, durante um programa de televisão. Ao assumir esse caso não imaginava as suas consequências no âmbito familiar. Eu fui duramente interpelado por uma tia, a mesma da igreja do Embaré, inconformada com a minha atuação profissional em defesa de um agressor da santa. Tentei explicar-lhe que estava sendo porta-voz de um direito sagrado que era o de defesa. Minha tia pouco se importou com as minhas justificativas. "Qual direito de defesa qual nada" e acrescentou: "caso sua mãe estivesse viva você iria ver só"... Nenhum argumento, nenhuma explicação sobre o próprio caso, nada a demovia do sentimento de revolta em relação ao sobrinho até então muito querido.   Com certeza ela pensava: "imaginem ele até quis ser padre!!!"  
sexta-feira, 14 de abril de 2023

Jornalista frustrado. "Foca" realizado

Jornalista frustado. "Foca"  realizado : Na década de sessenta eu já estava realizando tudo que almejava para aquela época. Entrara na Faculdade de Direito; estava trabalhando no escritório de advocacia de meu pai, como office boy forense, depois como estagiário e solicitador acadêmico. No final da década fiquei noivo, formei-me em 1969 e no início de setenta casei-me. No entanto, uma inquietação que me acompanhou durante minha vida, impelia-me a obter novos conhecimentos, viver novas experiências, entrar em contato com pessoas, ampliar os meus horizontes. Hoje verifico que se tratava e se trata de uma grande ânsia de conhecer a vida, o quanto possível, em várias de suas dimensões, ânsia que ainda está presente. Lembro-me que mesmo trabalhando com meu pai, resolvi frequentar um escritório de um primo distante, Laurentino Camargo, localizado no bairro da Penha. Duas vezes por semana saía da faculdade, passava no escritório e tomava o ônibus na Praça Clóvis para meia hora depois chegar no distante bairro. Essa experiência não durou muito, como já era previsível. Anteriormente, como primeiro emprego, trabalhei no 3º Tabelião de Notas, localizado na rua Boa Vista. A minha função era de conferente de escrituras. Muito distraído, eu deixava passar erros de datilografia nas escrituras. Devo ter sido um dos piores conferentes que passaram pelo Tabelião Teixeira. Esse emprego foi obtido depois de grande insistência da muita parte, com a ajuda de minha mãe. Sempre ela. Eu tinha 15 anos e cursava o primeiro ano clássico. O meu padrinho foi o Oficial Maior do Cartório, o saudoso Sr. Pedro Gouveia, velho amigo da família. Depois fiz um breve estágio no Banco da lavoura de Minas Gerais. Ainda quando era estudante de Direito comecei a procurar um jornal para trabalhar, desde que com horário compatível com a Faculdade e com o escritório. A primeira tentativa me foi proporcionada por meu sogro, Murilo Castello Branco, que me indicou para uma entrevista com o jornalista Sábato Magaldi, responsável pela editoria  de cultura do Jornal da Tarde. Eu havia tentado a sucursal de O Globo e para lá fui chamado. Nosso, meu e de meu pai, querido amigo do São Paulo Futebol Clube, Claudio Aidar, foi o responsável pela minha rica experiência como "foca" de jornal.   Minha carreira durou intenso e bem aproveitado um ano. Não permaneci no diário do Rio pelo acúmulo de atividades, pelas apertadas vinte e quatro horas do dia e, principalmente, pelas preocupações que o filho trabalhador causava à sua mãe. Enquanto eu não chegava ela não se deitava. Nessa ocasião eu cursava o quarto ano da Faculdade Paulista de Direito da PUC pela manhã, entrávamos às sete e meia. Morava na Vila Mariana, a escola era nas Perdizes. Da Faculdade ia para o escritório, na Praça da Sé. Por volta das dezessete e trinta rumava para o jornal, localizado no Edifício Zarvos, esquina de Consolação com São Luiz. O expediente não terminava antes das onze, onze e trinta. Antes de remetermos a última matéria pelo telex, nós não saíamos. Invariavelmente a nossa direção era um bar, um restaurante ou até um famoso local frequentado por jornalistas, o Atlântico, situado na avenida Ipiranga. Quaisquer uma dessas direções menos a de nossas casas.   O desvelo e carinho maternos estavam presentes  diariamente, com sacrifício para a sua saúde.  Como só dormia quando eu chegava em casa e sempre após a meia noite, uma hora da manhã ou mais tarde e se levantava muito cedo para acordar-me, as suas noites eram curtas e mal dormidas. Por essa razão, a minha trajetória como jornalista foi efêmera, mas enriquecedora, pois me possibilitou conhecer o fascinante mundo do jornalismo. Captar informações, interpretá-las, divulgá-las, comentar fatos e situações, expandir a cultura clássica e a popular, enfim tornar-se o elo entre o indivíduo leitor e o mundo que o cerca. A minha primeira experiência como jornalista foi em uma entrevista coletiva concedida pelo então Ministro Delfin Neto. Absolutamente jejuno em economia limitei-me a registrar as respostas às perguntas dos colegas. Uma sua manifestação ao final da entrevista impressionou-me. Ao se despedir perguntou alto e bom som qual o local, nas redondezas, onde se poderia tomar um "bom  chope". Essa sua indagação gerou a minha simpatia, não pelo Ministro do Governo Militar, mas pelo apreciador das boas coisas da vida. A pequena redação da sucursal abrigava excelentes e experientes jornalistas. O chefe era o Candinho, egresso da Folha e um excelente jornalista, emérito farejador de notícias capaz de dar furo nos jornais de São Paulo. A experiência jornalística me fez observar a grande similitude dessa profissão com a advocacia. O exercício de ambas impõe a existência de um regime político no qual impere a liberdade. Há uma absoluta incompatibilidade dessas profissões com o  autoritarismo. Sem democracia e direito à livre expressão não se faz jornalismo e não se advoga.    Em uma sucursal, adquire-se um conhecimento global de todas as múltiplas atividades de um jornal. Salvo a entrega dos exemplares nas bancas e a parte fotográfica todos os jornalistas fazem de tudo. Assim é em relação a experientes profissionais, que dirá para um foca. Eu era um. Redigia, entrevistava, fazia a "cozinha" com base nas noticiais dos jornais locais eu só não dava título às matérias. Minha experiencia em jornal foi curta, mas deixou marcas significativas na minha formação pessoal.
terça-feira, 4 de abril de 2023

Fui técnico de esgrima: verdade e mentira

Tenho escrito por gentileza de Migalhas singelas colunas sobre variados assuntos. Agora estou traçando recordações também diversas e um tanto desordenadas sobre fatos e pessoas marcantes em minha vida.  Procuro situar as minhas lembranças no tempo e no espaço e, com isso, reviver situações não só de importância pessoal como aquelas marcantes para as respectivas épocas.  Eu quero salientar um aspecto referente à memória. Por vezes surgem recordações que não nos permitem ter certeza se nós fomos participantes dos eventos lembrados. Vale dizer que nem sempre nós vivemos o que recordamos. A nossa memória não distingue com exatidão se certas imagens e eventos foram por nós vivenciados ou se nos foram transmitidos por terceiros. Por vezes, a descrição que nos é feita passa a povoar a nossa mente com tal intensidade que ficamos sem saber se retrata uma realidade ou se faz parte do nosso imaginário. Os fatos ficam tão arraigados em nosso íntimo que quando os transmitimos passamos a impressão de que efetivamente foram experiências pessoais. Por vezes foram. Outras não. Há acontecimentos reais que, no entanto, retratam falsas verdades. Dir-se-á que se é falsa não é verdade. A lógica indica estar correta a afirmação. No entanto, há duas verdades: a verdade verdadeira e aquela que retrata uma afirmação verdadeira, mas com conteúdo enganoso. Passo a citar um evento do qual fui protagonista e que expressa o que acima foi dito. Já afirmei em outro escrito a minha inaptidão futebolística. Não só para o esporte da bola como para quaisquer outras modalidades. Aliás, aqui abro um parêntese. Devo afirmar que a minha incapacidade não era apenas esportiva, pois no campo da música igualmente eu jamais tive alguma inclinação. Herdei essa deficiência artística de meu pai. Ao contrário de meu irmão que absorveu o dom musical de minha mãe, que possuía ouvido privilegiado. Era uma exímia violonista. O seu sonho era que seu filho mais velho tocasse algum instrumento. A sua derradeira tentativa foi dar-me um pandeiro. Em vão. Minha incompatibilidade com o brasileiríssimo instrumento foi absoluta. Bem, volto ao binômio verdade, falsidade. Houve um esporte ao qual eu me dediquei. Dedicação apenas documental. Explico. Até hoje guardo com orgulho a carteira de técnico de esgrima da Federação Paulista de Esportes Universitários (FUPE). Ela me foi entregue por Ulisses Nutti Moreira, presidente da entidade e presidente da Associação Atlética 22 de Agosto, da Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Fui padrinho de casamento de Ulisses, mas nessa época eu não o havia apadrinhado. Portanto, a carteira não se deve a essa condição. A escolha de Ulisses foi técnica.  Durante os jogos Universitários Leste Sul, que aconteceram na cidade de Piracicaba, São Paulo necessitava de um representante nas reuniões e assembleias que lá se realizariam. Havia a possibilidade de confrontos políticos entre as várias Federações Universitárias. Eu fui o escolhido para os embates que ocorreriam e ocorreram. No entanto, para ser inscrito nos jogos eu precisaria integrar a equipe de algum dos esportes da competição. Para mim restou a esgrima. Não iria como esgrimista, por razões óbvias. Colocaram-me na honrosa condição de técnico. Portanto esse é um exemplo de fato formalmente verdadeiro, mas mentiroso em sua essência.  
terça-feira, 28 de março de 2023

Futebol: jogava-se em qualquer lugar

Na última crônica evoquei as minhas "aptidões" futebolísticas. Quero nessa pedir licença para fazer uma breve explanação de como era jogado o futebol nos anos cinquenta e sessenta em São Paulo. A primeira observação é de lamento, em relação à ação predatória de algumas construtoras que movidas pela ganância terminaram com os campos de várzea, existentes em todos os bairros de São Paulo. O Poder Público, por sua vez, não soube defender esses importantes espaços de sociabilidade.    Na verdade, discorro não sobre como era jogado, mas qual o instrumento com que se atuava e os locais onde o esporte era praticado. A bola, bem, a bola nem sempre era bola. Diga-se que ela era à época quase uma raridade. Poucos a tinham. Quem a fornecia se credenciava para jogar, como era o meu caso. Aliás, como disse no escrito anterior a única razão de ser escalado era essa.  A bola era tão preciosa que a tratávamos, como se dizia antigamente, a "pão de ló". Dávamos-lhe carinhos especiais: para conservar o couro, passávamos sebo em todos os seus gomos. Naqueles tempos a chamávamos de bola "capotão". Não sei o porquê dessa expressão. Nem sempre tínhamos bola ou mesmo local apropriado para jogar. No lugar da bola serviam meias, que grudadas uma a uma formavam uma esfera própria para ser chutada. Por vezes, para não perdermos o hábito, uma latinha também servia. Quanto aos locais para o futebol, uma primeira observação. É com tristeza que se observa que São Paulo, em pouco tempo, perdeu as ruas, como seus espaços de convivência e de sociabilidade. Os campos de várzea também foram soterrados, como já disse. O trânsito e a especulação imobiliária foram os usurpadores. O poder público poderia ter planejado a existência de mais ruas que pudessem, em cada bairro, ser fechadas para serem ocupadas pelas pessoas, como se fez com a avenida Paulista aos domingos. Mesmo na minha época de jovem, de adolescente e mesmo antes de menino, além da rua qualquer espaço era espaço para jogarmos. Sempre encontrávamos um meio de transformar os locais em campos. As traves, bem as traves eram pedaços de pau, tijolos, pedras, até nossos sapatos ou quaisquer outros objetos serviam para demarcar os gols. Não se pense que vivíamos de improvisações. Não. Por vezes conseguíamos atuar no Colégio Ipiranga; no Ateneu Brasil; na quadra da Faculdade Paulista de Medicina, no "campinho" do Olímpicos da Vila Mariana; em uma chácara de meu avô localizada em Diadema. Também exercíamos as nossas habilidades futebolísticas em locais menos ortodoxos como vilas, ruas, terrenos abandonados jardins e quintais.  No entanto, o nosso estádio, o nosso campo, o nosso especial reduto, o nosso abrigo era a rua Stella. Lá tudo fazíamos e tudo era possível de ser feito, inclusive acolher as nossas pelejas. No entanto, na Stella nós nos defrontávamos com um problema insolúvel. Jogávamos em um trecho da rua na qual ela passava a ser uma ladeira. Assim, o time que ficava na sua parte baixa tinha insuperáveis dificuldades para atacar. Era fundamental a escolha do lado, antes da partida ter início. Mas não se pense que as nossas saudáveis atividades esportivas não eram do agrado dos habitantes da Stella. A maioria nos compreendia e por nós nutria simpatia. Alegrávamos a rua, com nossos jogos, conversas e por vezes cantorias. Havia duas moradoras, irmãs, que nutriam indisfarçável implicância com o nosso futebol de rua. Na verdade, a implicância era mesma conosco. Uma ocasião em que um dos gols era o portão de sua casa, a bola, inadvertidamente, caiu em seu jardim, fato que não era incomum. Mas, desta feita foram rápidas e apreenderam a pelota, não a devolveram e, suprema violência, a furaram. A nossa indignação só não foi maior do que o nosso desejo de vingança. Logo surgiu uma ideia, bastou olharmos para um pé de café que ornamentava o pequeno jardim da pequena casa. Nada tínhamos contra a simpática rubiácea e suas reluzentes folhas. No entanto, tínhamos que devolver a infâmia praticada contra o objeto de nossas afeições, a bola. Pagaríamos na mesma moeda, atingindo o xodó de ambas que era o pé de café. Arrancá-lo seria a forma mais eficaz de atingir as irmãs agressoras. Em uma noite, cortamos a pequena árvore e a encostamos na porta de entrada da casa. A vindita estava consumada. E logo estávamos com outra bola, passando de pés em pés.   
terça-feira, 21 de março de 2023

Memória sem aviso prévio

A memória não nos dá aviso prévio. Ela surge e nos conduz a um fato, a uma pessoa, a uma saudade, a alegrias e a tristezas, enfim nos retira de onde estamos e nos transporta para outros tempos e para outras situações. Isso deve ter uma razão. Acho que as recordações não representam apenas uma volta ao passado, geradora de nostalgia e de tristeza. Não, ela nos mostra que a nossa vida é composta pelo que foi, pelo que é e pelo que será. Todas essas etapas estão entrelaçadas, se comunicam, por vezes se misturam, se repetem e se projetam para o futuro. São indissociáveis. É muito bom que assim seja, pois dessa forma não perdemos a nossa identidade. Conseguimos conservar o que fomos, o que somos e projetar o que seremos, sem que nos deixemos soterrar pela voragem do tempo.   Tenho uma especial predileção pelos memorialistas que escrevem sobre si, sobre sua época e não só a respeito dos fatos que vivenciou, mas especialmente sobre o seu eu, a sua alma, suas paixões, suas idiossincrasias, realizações e frustações, enfim gosto de conhecer, através da leitura, as ações, o pensamento, os erros e os acertos daqueles que tem a coragem e a honestidade de se colocar integralmente, sem subterfúgios e maquiagens diante de seus semelhantes. Desta forma peço licença aos milhares de migalheiros para pô-los, pelo menos aqueles que perderem o seu tempo lendo-me, em contacto com algumas das minhas recordações. São lembranças que assumem algum significado, não em razão de quem as narra, mas das pessoas citadas das situações e dos eventos que são descritos, sempre com realce a algum aspecto ligado aos sentimentos que movem o ser humano.     Hoje veio-me à mente uma das grandes frustações de minha vida. Frustação amenizada pelos seus aspectos hilários. Sempre quis ser um craque de futebol. Nunca o fui, muito ao contrário. Quando permitiam que eu atuasse era, simplesmente, por que eu fornecia a bola. Caso houvesse outro amigo que a possuísse eu ficava fora do time. Não indaguem qual a minha posição. Eclético, eu sempre estava pronto a atuar em qualquer delas. Aos meus companheiros pouco importava onde eu jogaria. Na verdade, desejavam que eu sempre estivesse onde era necessário, LONGE DA BOLA. Mas, digo-lhes com orgulho jamais desisti. Joguei no time de futebol do 3° Tabelião de Notas, o meu primeiro emprego. Joguei uma única vez, mas joguei na lateral direita. Não conheciam as minhas aptidões. Escalaram-me, joguei por dez minutos. Também integrei o time do Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, do qual fui advogado. Meu consolo nesse time é que, um dos laços craque de fora, era Plínio Marcos, grande teatrólogo, mas sofrível jogador. Para enriquecer o meu curriculum futebolístico duas derradeiras recordações. Primeira, nós da rua Stella fizemos uma união com outras turmas e criamos o Oásis Futebol Clube. Eu fui um dos artífices e como tal consegui o honroso cargos de MASSAGISTA. Um outro, refere-se ao glorioso "In Dúbio Pro Reo" fundado por jovens advogados, na década de setenta. Esses colegas fizeram-me justiça, pois no final da temporada entregaram-me um significativo troféu, merecida homenagem, o "Troféu Encrenca". A minha trajetória futebolística nunca foi devidamente reconhecida. Paciência, me contento com o citado troféu.
terça-feira, 14 de março de 2023

Voto livre, mas no meu candidato

A elegante senhora sorridente, adornada com joias, maquiada com apuro falou que me admirava, acompanhava o meu trabalho e lia os meus escritos, mas, no entanto, lamentava que eu havia votado em Lula: "pena que você votou no Lula". A única coisa que me ocorreu foi dizer "pena que a senhora votou no Bolsonaro". E, nada mais. Fala curta, mas incisiva e significativa, que ocorreu na última semana, quatro meses depois das eleições. A fala foi incisiva porque veio na forma de uma sentença, de uma afirmação categórica, sem dar ensejo à contestação, justificativa, explicação. A senhora disse e pronto, ponto final. Significativa porque veio na forma de um anátema, de uma reprovação, de uma censura, que aliás espelha uma triste realidade de parte de nossa sociedade, especialmente da se dizente elite.  Fosse a senhora dotada de formação democrática ela jamais condenaria a minha opção, a respeitaria. No entanto, para ela as minhas eventuais qualidades, por ela declinadas, perderam o valor diante da minha escolha eleitoral. A sua manifestação reflete com exatidão o clima de intolerância que ainda reina no país. Dessa feita não houve nenhuma agressão, nenhum maior desconforto, mas poderia ter havido. Bastaria que eu passasse a defender o meu candidato ou a criticar o por ela escolhido, para que a temperatura subisse a graus insuportáveis. Por outro lado, não adiantaria nada eu tentar explicar que a democracia implica  na liberdade de pensamento, de expressão e de escolha, pois, naturalmente, ela só admitiria ouvir um meu mea culpa ou uma palavra de arrependimento pelo voto dado.  Usou a liberdade para, sem me conhecer, em um lugar inadequado -- estávamos numa festa -- interpelar-me. Ou melhor, censurar-me, apontar-me o dedo e exclamar que eu deveria ser excluído do rol dos confiáveis. Não afirmou isso, mas é o que significa a sua intolerância. Poder-se-á dizer que a minha censora apenas emitiu a sua opinião. Não, não foi bem isso. Ela não se limitou a dizer que o seu candidato fora outro. Que não votara no meu, enfim, falas que não implicassem em condenação pessoal pela escolha feita. Eu reunia qualidades, no entanto, superadas pelo pecado, pelo crime de votar no outro candidato. Anteriormente, eu já tinha sofrido a ação de patrulheiros ideológicos. Nas décadas de sessenta e setenta não foram poucas as manifestações contrárias ao meu posicionamento político. Mas, a diferença residia no fato de que estávamos vivendo uma situação política anômala. Não estávamos sob o guarda-chuva do Estado Democrático de Direito. Lá não havia liberdade, aqui há, mas não respeitada. Mais recentemente, logo após haver proferido um discurso em prol do meu candidato, recebi um telefonema agressivo, ofensivo de alguém que jamais vira. Nos mesmos dias um conhecido de mais de quarenta anos disse por escrito que eu o havia decepcionado, e que não mais merecia o seu respeito. Em outra ocasião fui interpelado na porta de um clube com a mesma fala absurdamente antidemocrática sobre o meu apoio político e eleitoral. Todas essas pessoas e mais milhares de brasileiros mostraram e seguem mostrando a sua verdadeira face: autoritária, intolerante, contrária à liberdade e claramente incompatível com o regime democrático. Creio estar na hora, e que não seja tardia, de ensinarmos democracia para parcelas da sociedade que estão se revelando avessos à liberdade de escolha, de pensamento e de expressão. A missão é difícil, mas devemos tentar.   
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Réquiem para uma livraria

O réquiem de uma livraria não representa uma simples manifestação por meio de oração ou de canto pela sua perda. É mais, deve ser mais. Precisa representar um clamor vigoroso contra as causas desse trágico evento. Pois bem, no caso da Livraria Cultura, os administradores de sua massa falida, os advogados, juízes, curadores e credores poderão apontar as causas jurídicas e de natureza financeira. Para nós, leitores, seus velhos frequentadores, uma só e fatal causa: o gigantismo. É claro que essa irrefreável e irresponsável ânsia de crescimento, portanto de lucro, tem uma única causa, pecaminosa e criminosa: a ganância. A cultura começou, salvo engano, no Conjunto Nacional. Pelo menos eu a conheci lá. Era menor, muito menor do que era quando se foi. Simpática localização, com simpáticos atendedores. Fácil de se encontrar os livros desejados. Havia mesinhas fora, onde as pessoas sentavam-se e desenvolviam tertúlias literárias. Eu nunca delas participei, pois simples rábula jamais me aventurei nessas lidas intelectuais. Mas gostava de ver os que ali estavam. Dentre eles via um que se tornou meu querido e imprescindível amigo: Ignácio de Loyola Brandão. A nossa amizade surgiu em um evento na Associação dos Advogados de São Paulo. De lá para cá, eu não mais o larguei. Voltemos às origens da Cultura. Não sei se foi ela, acho que não, mas na época introduziu-se a possibilidade de se ter um cadastro, um cartão de cliente. Isso facilitava e instigava as compras. Na verdade, estou me  lembrando que o crédito para aquisição de livros foi introduzido pelo velho livreiro Saraiva. Tornou-se ele um benfeitor dos  estudantes de Direito que podiam adquirir as obras exigidas pelos  mestres da São Francisco com facilidade. Durante anos estudantes do Largo e de outras faculdades, como eu que me formei na Católica, podiam formar as suas bibliotecas de forma suave. Abríamos contas na loja então existente na rua José Bonifácio, antiga do Ouvidor. Ao falar da Saraiva, lembro de tantas outras que não mais existem. Freitas Bastos, na 15 de novembro; Teixeira, na Marconi, ou teria sido na Conselheiro Crispiniano? Livraria do Povo, na Praça João Mendes; Forense, no Largo de São Francisco; Revista dos Tribunais, na Conde do Pinhal; Nobel, no Itaim; Brasiliense ou seria Civilização Brasileira na Barão de Itapetininga; o sebo Orfali na Benjamin Constante; a Livraria Vozes, salvo engano na Senador Feijó. Vários e valiosos outros sebos existentes na região da João Mendes se foram. Outros resistem, como o Messias. Dizia eu que no caso específico da Cultura o crescimento desordenado e a fúria expansionista decretaram-lhe o fim. Soube que possivelmente sem planejamento algum, foram abertas filiais em várias capitais, algumas com dimensões até incompatíveis com o mercado local. Em São Paulo, a ampliação da que me parece ter sido a primeira foi extraordinária. Deixou-nos, os seus assíduos clientes, entusiasmados num primeiro momento. Com o passar dos tempos viu-se e soube-se que o crescimento em outras praças já estava colocando em risco a sua higidez financeira. E agora vieram as consequências. Amargas consequências, para a cultura em geral e para os seus velhos e fiéis amigos.  Eu torço, rezo e faço mandingas para que outras livrarias não caiam nas mesmas tentações argentárias e se lembrem que embora o lucro seja legítimo, o escopo de suas existências é a expansão da cultura, é o livro, tal como entendia o livreiro Saraiva.