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Migalhas Norte-Americanas

Textos breves e rápidas análises sobre o Direito Norte-americano.

Paulo M. Calazans
segunda-feira, 3 de abril de 2023

O grand jury, indictment e Donald Trump

Como amplamente circulado nos jornais e redes sociais, aguarda-se, amanhã, a aparição de Donald Trump perante juízo criminal em Nova Iorque, onde, ao que tudo indica, será instaurada ação penal contra o ex-presidente, fato sem precedentes na história dos E.U.A.. O caso trata de pagamento do chamado hush money, dinheiro utilizado em troca da discrição, silêncio ou omissão de informação a respeito de alguém, via de regra pessoas famosas, artistas, políticos, banqueiros e outros personagens cujas circunstâncias de suas vidas atraem o interesse público midiático.  A acusação ainda não foi trazida a público; todavia, especula-se o cometimento de inúmeros crimes envolvendo falsificação de documentos e que estariam relacionados ao pagamento de 130 mil dólares à ex-atriz de filmes pornográficos, Stormy Daniels, durante as eleições de 2016, em possível violação das regras pertinentes ao processo eleitoral e licitude quanto à utilização de verbas. O caso, um dos inúmeros em que o ex-presidente figura como réu1, corre na Procuradoria Distrital do Condado de Nova Iorque, também conhecida como Procuradoria Distrital de Manhattan (Manhattan District Attorney) .  Trata-se de órgão estadual que tem função semelhante ao Ministério Público. A Procuradoria Distrital de Manhattan é comumente confundida com sua congênere e igualmente famosa Procuradoria Federal do Distrito Sul de NY (Office of the U.S. Attorney for the Southern District of New York - SDNY), que trata de crimes federais naquela jurisdição.  Ambas têm peculiar proeminência em razão de ser Nova Iorque a sede financeira dos EUA e, portanto, onde transcorrem grandes causas civis e criminais relacionadas ao mercado financeiro, imobiliário, comercial e atividades adjacentes.  Os principais jornais nos dão conta do indictment pelo grand jury.  Como sói ocorrer nos processos de transmigração de conceitos e termos jurídicos, muito embora encontrem etimologia comum, são frequentes os falsos cognatos.  Entre nós, "indiciamento" é ato privativo da autoridade policial (delegado) atribuindo autoria (ou participação) de infração penal a uma pessoa, que passa a ser o "indiciado".  Já no sistema americano, indictment é a própria acusação formal, ato com feições similares à nossa "denúncia" na ação penal pública.  Ocorre que, no sistema processual norte-americano federal, assim como em quase metade dos estados, o oferecimento da denúncia pelo órgão de acusação (promotorias, em função equivalente ao nosso Ministério Público), no caso dos crimes de maior potencial ofensivo, deve ser aprovada por um Grand Jury, figura que não encontramos em nosso sistema.  Trata-se de garantia constitucional, com fundamento na famosa 5ª Emenda à Constituição de Filadélfia: "No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury(...)". Ou seja, no processo-crime federal norte-americano, assim como na jurisdição de vários de seus estados, a promotoria deve obter o indictment, também chamado de true bill, através do Grand Jury, e só a partir daí é que o processo criminal pode ser instaurado.  Trata-se de condição de validade do processo-crime. Embora os fundamentos filosófico-políticos do grand jury sejam os mesmos do "júri" (i.e., o julgamento por seus concidadãos), eles não devem ser confundidos.  O Grand Jury deve ser visto como um órgão ad hoc do processo penal nos EUA, composto por 16 a 23 cidadãos, cuja função é examinar os indícios e provas coletados durante a investigação criminal e que lhes são apresentados pela promotoria, sendo necessário que ao menos 12 membros (federal) ou a maioria (nos Estados, cujo número mínimo varia) aprovem a denúncia, que é o indictment.  Para a doutrina norte-americana, o Grand Jury integra a fase inquisitiva do processo; logo, seus procedimentos não se submetem ao contraditório, nem à totalidade das regras processuais penais norte-americanas, e correm sob segredo de justiça, não estando nem o indiciado, nem seus advogados presentes.  O Grand Jury tem poderes de intimar (subpoena) documentos e convocar testemunhas.  O arraignment está agendado para amanhã.  Trata-se de audiência inaugural perante o Juízo Criminal Estadual de NY na qual a Promotoria irá oferecer formalmente a denúncia, e pelo que se iniciará o processo penal contra o ex-Presidente Donald Trump. O acusado, nesse momento, deverá apresentar um plea (declaração), que poderá ser o de não-culpado (plea of not guilty), culpado (plea of guilty) ou nolo contendere (no contest plea, renúncia ao direito fundamental de defesa em juízo).  Embora funcionalmente semelhantes, a diferença entre a declaração de culpa (guilty plea) e o nolo contendere está em que, neste último, os efeitos quanto à confissão dos fatos não podem ser utilizados na esfera cível em casos correlatos. A partir daí também abrem-se possibilidades para o conhecido plea bargain, que é bem definido por Orlando Faccini Neto como: "mecanismo processual por meio do qual a acusação e a defesa têm a possibilidade de entrar em acordo sobre o caso penal, com a consequente imposição de pena, sendo o avençado sujeito à homologação judicial.  O acordo pode assumir diversas formas e, em geral, consiste em o acusado declarar-se culpado de um ou mais crimes, de modo que, como contrapartida, a acusação deixa de lado outras imputações, ou aceita que o réu se declare culpado de crimes de menor gravidade, ou, ainda, não se opõe a que o acusado receba determinada sentença, em patamar inferior àquela que eventualmente exsurgiria de sua normal condenação no processo"2.  Não é certo, ainda, se o Presidente será recolhido preso na mesma ocasião.  A decisão recairá sobre o juiz do caso, que irá avaliar os termos da acusação e, tipicamente, as circunstâncias pessoais do réu.  Dadas as características extremamente ímpares do caso, é possível que ele seja solto mediante recognizance, que é um acordo perante o Juízo em que o réu se compromente ao pagamento de determinada quantia caso não venha a cumprir intimações futuras, diferenciando-se do bail (fiança) por não haver depósito prévio. Há inúmeras outras incertezas jurídicas que pairam sobre o caso.  Entre elas, a questão de direito constitucional a respeito da possibilidade de persecução penal contra ex-presidente. Mas parece haver consenso doutrinário no sentido de que, se é que incide qualquer imunidade, ela alcançaria apenas os atos de gestão no exercício do mandato e não os atos praticados em interesse próprio ou particular. Conta-se, quase que em caráter de anedota, que o Presidente Ulysses Grant foi preso por excesso de velocidade quando a galope em seu cavalo.  Richard Nixon, envolvido no escândalo Watergate, renunciou e, antes de sofrer um provável indictment, recebeu o perdão presidencial de seu sucessor, Gerald Ford. Bill Clinton também escapou de um indictment por falso testemunho no caso envolvendo sua estagiária. Mas, seja como for, é certo que 4 de abril de 2023 será uma efeméride na história Norte-americana, já que será a primeira vez em que um ex-Presidente dos EUA se tornará réu em ação penal.  __________ 1 O site Just Security lista um rol infindável de ações contra o ex-Presidente Donald Trump, com uma pletora de possíveis ilicitudes tanto na área cível e eleitoral, como criminal.  Disponível aqui. 2 Notas sobre a instituição do plea bargain na legislação brasileira.  Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 166. ano 28. p. 175-201. São Paulo: Ed. RT, abril 2020.
Na noite de dessa terça-feira passada, em seu pronunciamento à nação (State of the Union Address)1, o Presidente Joe Biden anunciou o fechamento do espaço aéreo dos EUA para todo e qualquer voo de companhias aéreas ou operadores da Federação Russa.  Formalmente, o Departamento de Transportes (USDOT) editou o ato normativo (Notice and Order) n? 2022-3-2.  Além disso, a agência regulatória de aviação, o Federal Aviation Administration (FAA), irá emitir NOTAM (Notice to Airmen) com similar efeito. A medida se soma ao rol das inúmeras graves sanções econômicas impostas por parte de diversos Estados europeus, Canadá e outros países contra a Federação Russa em razão da invasão militar na Ucrânia, incluindo o fechamento de seus espaços aéreos para companhias aéreas e operadores russos. O governo da Rússia, de sua parte, respondeu com sanções recíprocas, aplicando medida idêntica a 36 países, incluindo todos os 27 membros da União Europeia. A proibição de sobrevoo não é algo inusitado no palco do Direito Aeronáutico Internacional.  Como exemplo mais recente, em 2017, vários países integrantes do GCC (Conselho de Cooperação do Golfo) e alguns outros da África impuseram esta sanção ao Qatar, que perdurou até a assinatura da Declaração de Al-Ula, em 2021, quando o embargo foi encerrado. O sistema normativo da aviação civil internacional, conhecido como Sistema de Chicago, foi estabelecido no final da 2ª Guerra, e compreende o reconhecimento inequívoco da soberania estatal em relação ao espaço aéreo sobrejacente a cada país.  Se, durante a 1ª Grande Guerra, o uso da aviação como instrumento militar não fora uma realidade, ao fim do 2ª Guerra, tendo a aviação militar sido um dos aspectos definidores do conflito, a preocupação com o uso e controle do espaço aéreo estava na principal ordem do dia. Assim, a Convenção da Aviação Civil Internacional, celebrada em Chicago em 1944, que estabeleceu as principais bases normativas necessárias para o desenvolvimento seguro do transporte aéreo civil, assentou o reconhecimento expresso da soberania estatal no espaço aéreo sobrejacente ao respectivo território terrestre e marítimo dos Estados, o que se tornou em um dos pilares do sistema normativo aeronáutico global.  Isto ofereceu aos Estados-membros a imprescindível percepção de segurança territorial, sem o que a celebração da Convenção não teria sido possível. A partir daí, um complexo sistema de acordos bilaterais e multilaterais entre os vários países do mundo passou a ser econstruído, envolvendo maior ou menor grau de liberdade recíproca entre eles no atinente às prerrogativas de sobrevoo, pousos e decolagens, e de acordo com os interesses comerciais, demandas de tráfego e razões geopolíticas e de segurança nacional.  Trata-se das chamadas Liberdades do Ar, e a doutrina e prática comercial as distingue em 9 categorias, que refletem os vários tipos de acordos e concessões recíprocas. A 1ª e a 2ª liberdades do ar compreendem, respectivamente, as prerrogativas não-comerciais de mero sobrevoo sem escalas (1ª) e a escala técnica para fins de manutenção ou abastecimento de combustível (2ª).  As demais Liberdades do Ar dizem respeito aos variados graus e combinações possíveis de transporte comercial de passageiros, mala postal e carga, a partir de ou para um ou mais países. Na prática, o fechamento do espaço aéreo significa a suspensão dos efeitos dos Acordos bi e multilaterais, e de todas as Liberdades do Ar em vigor entre os países envolvidos.  Esta medida impõe um enorme ônus para as companhias aéreas comerciais.  E não apenas nas operações de voo que envolvem o transporte de ou para os Estados sancionados, mas também pela suspensão de sobrevoos.  Isto porque tanto as áreas geográficas abrangidas pela União Europeia e também do Canadá, quanto da Ucrânia e da Rússia, dada suas posições estratégicas e enormes dimensões, compreendem rotas importantíssimas para a navegação aérea de longo curso.  Assim, os fechamentos recíprocos dos espaços aéreos irão tornar indisponíveis rotas que permitem a ligação direta entre vários destinos no globo, impondo a necessidade de desvios e consequente aumento de distância e tempo de voo, o que, por sua vez, irá ensejar um ingente gasto adicional de combustível e demais custos operacionais ancilares, além de eventuais pousos técnicos intermediários para abastecimento. Entretanto, no caso da Rússia, o peso a ser suportado certamente será maior, na medida em que às sanções de natureza estatal outras tantas provenientes do setor privado estão sendo paulatinamente impostas, como a recém-anunciada pelas duas maiores fabricantes de aeronaves comerciais do mundo, a Boeing e a Airbus. É mister, ainda, diferenciar a providência sancionatória de fechamento do espaço aéreo da medida operacional-militar do no-fly zone, sobre a qual já se especula em mídias sociais e jornais.  O fechamento do espaço aéreo corresponde à suspensão das liberdades do ar; trata-se de sanção com feições político-econômicas.  Busca-se infligir ônus comercial ao Estado sancionado.  Em outro patamar jurídico, situa-se a no fly-zone, que se trata de medida extrema nos níveis mais elevados das relações internacionais e do Direito Internacional Público.  O no-fly zone é a fixação de área geográfica onde apenas voos autorizados pelas entidades que a estabeleceram podem transitar, seja por razões estratégicas militares, seja por motivos humanitários em face do conflito bélico.  Trata-se de uma zona de total exclusão do tráfego aéreo.    Assim como outras circunstâncias concernentes ao jus ad bellum e ao jus in bello, a no-fly zone é medida de facto, possivelmente encontrando lastro no Direito Humanitário Internacional, com vistas a mitigar os efeitos devastadores dos conflitos bélicos, buscando viabilizar a sobrevivência e minimizar o sofrimento das vítimas civis dos Estados envolvidos. A complexa questão subjacente ao no-fly zone é a consequência de sua violação, que envolve possível abate de aeronaves civis em voo.  O Direito Público Internacional repudia o uso da força de um modo geral.  A regra cardeal é a busca da solução de controvérsias pela via pacífica, vale dizer, diplomática2.  Além disso, após a ocorrência de várias tragédias envolvendo o equivocado abate de aeronaves civis em voo, em 1984 a Convenção de Chicago recebeu Emenda ao seu texto (art. 3? bis) proibindo o uso de força contra aeronaves civis em voo. Paralelamente,, a Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo VII, art. 39, atribui ao Conselho de Segurança da ONU a competência para determinar a existência de circunstância de ameaça à paz, sua ruptura ou ocorrência de ato de agressão, assim como possíveis ações remediais.  Os arts. 41 e 42 estipulam de forma escalonada possíveis medidas de contenção, sendo que, na insuficiência das medidas contidas no art. 41 (sanções comerciais, diplomáticas e de comunicação), o Conselho de Segurança poderá levar a efeito, entre outras medidas, "bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos membros das Nações Unidas" (art. 42). Embora não claro, prevalece o entendimento que qualquer aeronave não autorizada a ingressar na no-fly zone estaria sujeita ao abate, o que corresponde ao uso da força, medida excepcionalíssima na seara do Direito Internacional Público. A fixação de uma no-fly zone é tema muito controvertido no âmbito das relações internacionais.  Mas, em que pese a incerteza jurídica que orbita sua aplicação, trata-se de fenômeno frequentemente observado nos conflitos de maior abrangência entre países ou dentro destes, como nos casos de beligerância, insurgência ou, ainda nos movimentos em luta por soberania. Sem adentrar demasiadamente o tema, que foge a essa breve análise perfunctória, o importante é sublinhar que parece ser pouco provável sua instauração no presente caso do conflito na Ucrânia, já que um dos envolvidos, a Federação Russa, é também membro do Conselho de Segurança e, por conseguinte, com poderes de veto.    __________ 1 Ao contrário do que comumente se imagina, o "State of the Union Address" não é uma prerrogativa presidencial, mas um dever constitucional.  A Constituição Norte-americana prevê que "[o Presidente] deverá, de tempos em tempos, dar ao Congresso informações sobre o Estado da União, e submeter à sua consideração medidas que julgue necessárias e expedientes (...)" (artigo II, Seção 3).  Até meados do século passado, tal endereçamento era denominado "Mensagem Anual" e enviado por escrito ao Congresso. A partir de Woodrow Wilson, o "State of the Union" passou a ser apresentado pessoalmente pelo Presidente perante sessão conjunta das duas Casas congressuais, tornando-se também em uma oportunidade ímpar para alavancar suporte político para as pretensões do Poder Executivo. 2 Aliás, é também o que consta em nossa Constituição Federal, a qual elenca, em seu art. 4, os princípios a serem observados por nossa República nas relações internacionais, "a defesa da paz" (inc. VI) e a "solução pacífica de conflitos" (inc. VII), servindo, portanto, de excelente fonte deontológica e vetor de orientação diplomática para nossos posicionamentos oficiais.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O que é uma Executive Order?

A história jurídico-política dos EUA registra um amplo leque de utilização de Executive Orders ao longo dos anos, emitidas pelos sucessivos presidentes, cuja validade e pretensão de alcance foram  muitas vezes objeto de profunda controvérsia, como durante a segunda guerra, em que foi determinada e detenção de japoneses-americanos em campos de concentração1; para promover a dessegregação racial nas Forças Armadas logo após o fim da segunda guerra2; ou para decretar intervenção Federal em usinas siderúrgicas3 durante a Guerra da Coreia. Logo que assumiu a presidência dos EUA no início deste ano, o presidente Joe Biden editou diversas Executive Orders, versando sobre temas os mais variados, tais como questões afetas à pandemia do covid-19, reingresso no Acordo Climático de Paris, política de imigração e outros. Tratou-se de deliberado, inequívoco e profundo rompimento com o Governo anterior, revogando diversas Executive Orders anteriormente editadas por Donald Trump.  Mas o que vêm a ser exatamente as "Ordens do Executivo"?  E quais seus fundamentos e limites? A Executive Order é um ato normativo expedido pelo Chefe do Poder Executivo norte-americano.  A figura mais próxima das Executive Orders que encontramos em nosso sistema é o Decreto, de que tratam os incisos IV e VI do art. 84 da CF/88.  E embora seu fundamento de validade seja idêntico ao nosso, isto é, a Constituição, há diferenças teóricas e práticas em sua aplicação.  Seu âmbito de validade e seu escopo de aplicação, assim como a correlata subsunção aos princípios da soberania popular e da legalidade (rule of law) são compreendidos de forma um tanto diversa pela doutrina e pela jurisprudência norte-americanas. Nossa CF/88, muito mais densa, detalhou minuciosamente as competências do presidente da república (art. 84), circunscrevendo seu poder regulamentar às questões intestinas de organização e funcionamento da administração Federal (inc. VI, a) e extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (inc. VI, b), cuja manifestação concreta, na forma do texto trazido pela EC 32/01, se dá mediante a expedição de decreto.  Ou, ainda, para "sancionar, promulgar e fazer publicar leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução".  O Poder Executivo no Brasil, portanto, não poder atuar praeter legem ou contra legem, mas apenas secundum legem.  Entretanto, os contornos do princípio da legalidade adquirem desenho próprio em cada país, de acordo com seu sistema constitucional e suas especificidades históricas e sócio-políticas.  Assim é que, por exemplo, em países como Portugal, França, Alemanha e Itália, o Poder Executivo detém competência regulamentar mais ampla do que a mera "fiel execução da lei", podendo, em determinadas matérias, inovar normativamente sem a necessidade de lei anterior que o autorize, ou a partir de genuínas delegações do Poder Legislativo.  Obviamente, esse quantum de permissividade constitucional está atrelado à maior ou menor preocupação de cada sociedade com o grau de vitalidade ou fragilidade de seus regimes democráticos em face de eventuais ameaças de ensaios autocráticos.  E é neste diapasão que se trava a discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da validade e limites das Executive Orders nos EUA.  As Executives Orders não constam explicitamente do texto da Constituição de Filadélfia.  Trata-se de uma das muitas consequências decorrentes de um texto constitucional sintético.  O art. II, que trata do Poder Executivo, elenca suas diversas competências, mas, no atinente ao poder normativo, nada é dito além do mandamento genérico contido em seu caput: "The executive Power shall be vested in a President of the United States of America".  Coube ao labor jurisprudencial, ao longo da história, tentar delinear as fronteiras do poder conferido ao chefe do executivo a partir da formulação genérica do art. II, e sem perder de vista a proeminência do Poder Legislativo em sua atávica e nobre função de representar a vontade da nação. Na teoria constitucional norte-americana, os primórdios deste debate remontam ao texto federalista 47, de autoria de James Madison, no qual, referenciando J.J. Rousseau, afirmava: "não pode haver liberdade onde os poderes legislativo e executivo são reunidos em uma mesma pessoa, ou corpo de magistrados(...)".  A preocupação contra uma eventual tirania, ali, era óbvia. Assim, via de regra, as Executive Orders são, tal como no Brasil, primariamente utilizadas, de um lado, para a organização interna da administração, sendo normalmente diretrizes normativas circunscritas aos órgãos e agências do governo norte-americano e seus integrantes; e, de outro, para a concretização administrativa das leis, segundo determinação parlamentar. Contudo, a timidez gramatical do texto constitucional norte-americano, somada à inação eventual do Poder Legislativo e à inevitável dinâmica social - sempre desafiando o Estado a legislar a partir de novos fatos no mundo da vida - tornaram-se, no decorrer dos anos, na principal força motriz do uso (e ocasionais abusos) cada vez mais frequente das E.O.s pelos sucessivos presidentes.  E com escopo normativo cada vez mais amplo.  De um modo geral, pode-se afirmar que nem a doutrina, nem a jurisprudência norte-americana rejeitam tout court a possibilidade de o chefe do executivo editar Executive Orders autônomas, i.e., sem lastro em diploma legislativo prévio que lhe sirva como supedâneo de validade4. Isto porque há enorme espaço interpretativo para se determinar o alcance e os limites do que venha a ser o preceito contido no art. II da Constituição Norte-americana, i.e., a própria noção de "Poder" Executivo. Neste sentido, durante o curso da história, na experiência do controle de constitucionalidade dos atos normativos do presidente dos EUA, aí incluídas as Executive Orders, o Judiciário busca ponderar, na investigação de seus limites e condições de possibilidade, se o exercício do "Poder" Executivo se adequa aos princípios fundamentais da legalidade e da separação dos poderes, assim como dos direitos e garantias individuais insculpidos nas Emendas do Bill of Rights. Em 1952, em célebre caso, a Suprema Corte norte-americana deparou-se com o tema quando o então presidente Harry Truman, receando uma greve geral de metalúrgicos em tempos de guerra, decretou intervenção federal nas usinas siderúrgicas mediante uma Executive Order.  Julgando o caso (Youngstown Sheet & Tube Co. v. Sawyer), a Corte, tipicamente, deixou de aplicar um parâmetro meramente binário de certo/errado, que seria por demais simplificativo desta questão extremamente complexa, mas, antes, acenou para um modelo de raciocínio delineado no voto do Justice Robert Jackson, o qual lançou mão de uma classificação tripartite, que se tornou em precedente frequentemente citado nos casos envolvendo separação de poderes.  Em seu voto, o ministro Jackson criou três categorias circunstanciais de validade envolvendo a edição de Executive Orders5: Se o Presidente edita uma E.O. em consonância com uma autorização implícita ou expressa do Congresso, ele age na plenitude dos poderes administrativos que lhe foram conferidos pela Constituição; Se a E.O. é editada na ausência de manifestação congressional prévia sobre o tema, verifica-se uma situação de possível competência concorrente para normatizar a matéria, onde a "inércia, indiferença ou aquiescência tácita" do Congresso pode dar azo à providência normativa presidencial; Quando, contudo, o Presidente adota medidas que são incompatíveis com manifestações prévias expressas ou implícitas do Congresso, há evidente ingresso na seara de competências do Poder Legislativo. Apoiada nesta referência lógico-jurídica, a Corte Suprema declarou, então, a inconstitucionalidade da intervenção realizada por Truman, uma vez que, conquanto em tempos extraordinários de guerra (Guerra da Coreia), o Congresso já havia debatido o assunto, e rejeitara a possibilidade de intervenção.  Portanto, o presidente não poderia editar ato normativo em sentido contrário à vontade do Legislador.  Reforçando esta noção, para além do ratio iuris contida no voto do Min. Jackson, o Relator, Justice Hugo Black, deixou claro, no acórdão, que "o poder presidencial para assegurar o fiel cumprimento das leis refuta a ideia de que ele possa se tornar em legislador"6 e que "os Founders desta Nação confiaram o poder de fazer leis ao Congresso apenas, tanto em tempos pacíficos como em tempos difíceis"7. Nada obstante, e já então, reconheceu-se a enorme complexidade de se lidar com a delicada questão da separação de poderes, ainda mais em face do sintético texto da Carta de Filadélfia.  Isso foi registrado pelo Min. Jackson ao afirmar que: "as três categorias propostas] constituem, de certo modo, uma simplificação demasiada"8; e que "os poderes presidenciais não são fixos, mas flutuam, dependendo da consonância ou dissonância com aqueles do Congresso"9. Cumpre acrescentar que, como em nosso sistema, as E.O.s podem ser revogadas pelo próprio Presidente que as editou, ou por presidências futuras.  Interessantemente, admite-se a repristinação de uma E.O. quando uma terceira E.O. revoga outra E.O. que havia revogado, por sua vez, uma E.O. original, e por assim em diante.  Em curiosa sequência desse naipe, no ano de 1992, o então presidente George H. Bush ("Bush Pai") editou uma E.O. a respeito da sindicalização em empresas que fossem parte em contratos com o Governo Federal10.  Ao assumir a presidência em 1993, o Presidente Clinton revogou tal E.O. através de uma nova E.O.11, mas sua revogação foi revogada por subsequente E.O.12 editada pelo presidente George W. Bush ("Bush filho") em 2001.  Mais tarde, em 2009, o presidente Obama revogou a revogação de "Bush filho" através de outra E.O.13, repristinando os efeitos da E.O. editada sob a administração Clinton e revogando novamente a E.O. original de "Bush Pai".   A questão quanto à validade e limites das Executive Orders continua a ser objeto de debates profundos no plano jusconstitucional norte-americano, o que, em grande parte, conforme afirmado acima, é decorrência da natureza sintética da Constituição de Filadélfia.  Aliás, convém lembrar que, entre nós, não é incomum se fazer referência a esse aspecto da Constituição dos EUA como um modelo ideal a ser seguido.  Entretanto, fácil é perceber que a prolixidade da nossa Carta nem sempre é algo ruim. ________ 1 E.O. n? 9.066/1942.  Este episódio foi objeto de judicialização em Korematsu v. United States, 323 U.S. 214 (1944), tendo a Suprema Corte referendado o odioso ato.  Anos mais tarde, na decisão do caso Trump v. Hawaii (2018), o atual Presidente da Corte, John Roberts, declarou ter sido o caso um grave equívoco histórico, e que aquela decisão perdera seu valor como precedente judicial a ser observado. 2 E.O. n? 9981/1948 3 E.O. n?10.340/1952 4 Cf. Grove, Tara Leigh. Presidential Laws and the Missing Interpretive Theory. University of Pennsylvania Law Review, vol. 168, 2020, p. 877; Stack, Kevin. The Statutory President. Vanderbilt Law School Faculty Publications, 2005, p. 539: "A Constituição não menciona a autoridade do Presidente para emitir ordens, mas a autoridade do Presidente para fazê-lo é, hoje, indisputável" (Trad. Livre). 5 Suprema Corte dos EUA. Youngstown Sheet & Tube Co. v. Sawyer, 343 U.S. 579 (1952) 6 Id., Ibid. 7 Id., Ibid. 8 Id., Ibid. 9 Id., Ibid. 10 E.O. n?12.800/1992 11 E.O. n?12.836/1993 12 E.O. n?13.201/2001 13 E.O. n?13.496/2009
segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Eleições EUA - E agora?

Tradicionalmente, nos EUA, o candidato vencedor na disputa à presidência é conhecido na mesma noite das eleições. Nem sempre, porém. E, neste complicado ano de 2020, certamente que não. Não somente em virtude da pandemia do Covid-19, que redesenhou o processo eleitoral norte-americano, mas também pela presidência nada ortodoxa de Donald Trump. Eventual presidência do Joe Biden seria, por certo, muito distinta daquela exercida por Trump. Mas, para se saber o que esperar, é necessário compreender, antes, o cenário de hoje e que o processo eleitoral está ainda, ao menos formalmente, longe de encerrado. 1.       O resultado anunciado pela mídia é definitivo? Como vimos nos três textos anteriores a respeito das eleições, o processo de contagem do voto popular em cada Estado, desde a época dos telégrafos, é reunida e comunicada pela Associated Press (AP) aos diversos entes da sociedade e a mídia se encarrega de fazer as projeções matemáticas.  E, quando se dá por certa a vitória de um ou de outro candidato, em face da impossibilidade de reversão do resultado pelos votos ainda por contar, o vencedor é anunciado aos sete ventos pelos principais canais de comunicação dos EUA e do mundo.  Logo em seguida, o candidato vencedor faz o famoso "acceptance speech", enquanto ao perdedor resta o "concession speech". Todavia, em algumas eleições ao longo da história dos EUA, as projeções falharam (e.g. Harry Truman e Woodrow Wilson) e, em outras, os resultados foram tão próximos que os respectivos partidos requereram recontagem manual dos votos, postergando o resultado final.  Além disso, os resultados são passíveis de judicialização, como ocorreu no famoso caso da eleição do Presidente George W. Bush, tendo saído Al Gore derrotado com base na decisão da Suprema Corte dos EUA, que reverteu a decisão da Suprema Corte da Flórida, impedindo a recontagem de votos naquele Estado1. 2.       Os tribunais poderão reverter o resultado do sufrágio? Desta feita, nada indica que o provável candidato derrotado e atual presidente possa conseguir reverter o resultado das urnas pela via judicial. Embora a Suprema Corte tenha expressado, ao longo dos anos, interesse em revisitar questões envolvendo interpretação das constituições estaduais em nível local, sobretudo quando se nota exagerada influência do partido político no poder, nada indica que a Corte intervirá este ano.  Isso porque a questão que mais vem sendo disputada, e que tem natureza procedimental, diz respeito à aceitação dos votos enviados pelo correio após a data de encerramento das eleições.  Como é de praxe em vários aspectos da vida nos EUA, muitos Estados consideram a "data de envio" (postmark)  das cédulas como requisito temporal de validade, determinando-se um prazo razoável máximo para sua chegada aos órgãos eleitorais locais. Este é o caso, e.g., da disputa na Pensilvânia, onde a legislação estadual estipula que a cédula postmarked até o dia das eleições será aceita desde que chegue ao Board of Elections em até três dias. A questão que vem sendo disputada, portanto, diz respeito ao número de votos incorporados ao resultado que sejam provenientes desta hipótese. E, até o presente momento, ao que tudo indica, tais votos não teriam o condão de modificar o resultado final, ainda que eventualmente desconsiderados.  E, assim, tal questão não recairía sobre o que a doutrina jurídica norte-americana denomina de "margem de judicialização" (margin of litigation), o que provavelmente deixará de atrair, por sua falta de consequência prática, o interesse da Suprema Corte Federal.  3.       E quanto às alegações de fraude?  O importante a se observar é que fraude não se presume, se prova. Ou não. As alegações de fraude, ampla e veementemente alardeadas pelo atual presidente Trump, embora ressonando furiosamente em sua base eleitoral, não tem encontrado eco sequer na mídia conservadora e, para além de balbúrdia, nenhum indício foi até agora formalmente produzido perante os órgãos judiciários que possa ensejar eventual apuração e apreciação.  Até mesmo na Geórgia, onde a margem de diferença entre os candidatos é ínfima, membros dos órgãos eleitorais, que são republicanos em sua totalidade, rechaçam qualquer alegação de ocorrência de fraude.  4.       Após a contagem final dos votos em cada Estado, já saberemos, por certo, quem será o futuro Presidente?  Na verdade, e formalmente, não. Há outro detalhe ainda mais relevante no processo eleitoral norte-americano: o voto popular não define o candidato vencedor, pois, como vimos anteriormente (clique aqui), as eleições nos EUA não são diretas, cabendo ao "Colégio Eleitoral" a escolha formal e definitiva do Presidente.  Por mais curioso que possa parecer, os cidadãos, ao votarem em novembro, não elegem seu candidato à Presidente; na verdade, elegem os "eleitores" (electors), os quais se incumbirão, por sua vez, em 14 de dezembro, de eleger um candidato. Como seria de se imaginar, espera-se que os electors votem conforme a preferência majoritária dos cidadãos de seu Estado. Mas isto não é um dever constante da Constituição Federal norte-americana, ou de qualquer estatuto federal.  Entretanto, este dever surge de dois modos: compromisso com o partido ao qual é filiado ou por determinação legal da legislação estadual.  Em ambos os casos, alguns estatutos preveem penas pecuniárias ou até de invalidação dos atos dos electors que votam em desacordo com a preferência majoritária estadual2. Isto já ocorreu no passado, mas nunca de modo a modificar o resultado final.  Mas, verdadeiramente, o vencedor só será conhecido em 14 de dezembro. Finalmente, portanto, após a eleição pelo Colégio Eleitoral, e somente após ela, é que se consagra um candidato vencedor, cuja posse (inauguration) se dá, então, no dia 20, também de janeiro.  5.       Como será a transição de poder se Joe Biden for o vencedor?  Primeiramente, com base no que foi visto nos últimos 4 anos, não será uma transição suave. Donald Trump, embora pertencente a um partido conservador, rompeu com todas as tradições observadas pelos ocupantes pretéritos da Sala Oval, desde a recusa à apresentação de suas declarações de imposto de renda, até a realização de comício para reeleição nos jardins da Casa Branca.  Acredita-se que ele jamais fará o "concessions speech" e continuará inconformado com o resultado até o último minuto de seu mandato, ainda que na qualidade de "lame duck"3.  6.       O que esperar se Joe Biden for mesmo o vencedor?  Antes de mais, Joe Biden terá sido o Presidente eleito com o maior número de votos na história dos EUA. Há grande expectativa, até mesmo por parte de importantes protagonistas republicanos, que a política norte-americana retorne à sua "normalidade", após os 4 anos de Trump. O teor de agressividade, o rompimento com tradições, e as agressões a instituições fundamentais da república norte-americana assustou a muitos.  Espera-se que o estilo mais moderado de Biden, um político hábil e experiente, possa ajudar a reduzir a polarização política intensa observada nos últimos anos dentro dos EUA. Mas é um erro achar-se que os liberais-progressistas saíram vencedores. Em primeiro lugar, como já foi observado por muitos, nada parece indicar que o Partido Democrata voltará a dominar o Senado. E chegou-se a cogitar que poderia perder o controle da Câmara (House of Representatives). O que poucos observaram, entretanto, é que, fundamentalmente, os EUA continuam um país em grande parte conservador. O cotejamento das eleições para o Senado e para a Câmara com o resultado dos votos para Presidente demonstra claramente que a preferência do eleitor não foi necessariamente por maior inclinação à linha liberal/progressista, mas, antes, um cartão vermelho dado ao próprio Trump.  Certamente, o maior inimigo do Presidente à reeleição foi ele próprio. Em particular, os ataques ao Dr. Anthony Fauci (Médico-Diretor do NIAID-NIH), assim como sua assombrosa insistência em realizar comícios, em plena pandemia, com a presença de milhares de pessoas sem o uso das máscaras de proteção, se energizou sua base, certamente não traduziu boa e prudente liderança que pudesse inspirar indecisos ou conservadores moderados. Há quatro anos, Trump herdava um quadro econômico próspero ao fim do governo Obama, que seguia de vento em popa. Hoje, o momento é outro. O desemprego elevado, as incertezas quanto ao futuro, e a vontade/necessidade da sociedade de ouvir a comunidade científica para que a pandemia possa ter um fim ou ser administrada da melhor forma possível daqui por diante rechaçaram a agressividade gratuita e o desmerecimento de dados e fatos em prol de brados populistas que tanto caracterizaram o Governo Trump. Em relação à política internacional, a impressão geral é que o Partido Democrata favorece e certamente fomentará o papel das organizações internacionais (ONU, OMC, OMS) e buscará abordagens multilaterais para a resolução de controvérsias na política externa.  Embora nem Trump nem Biden sejam plenamente pró-livre comércio, eventual governo Biden retomaria os programas iniciados na era Obama, restabelecendo alianças com os países asiáticos e reforçando os laços comerciais, políticos e militares com os parceiros europeus. As questões climáticas voltarão à ordem do dia, com especial atenção ao tema do desmatamento da Amazônia, que ocupou lugar de destaque até mesmo nos debates eleitorais. O pacote comercial em negociação com o Brasil deverá seguir adiante independentemente do candidato vencedor, mas é bem provável que a questão ambiental adquira maior peso nas conversas em prol de um acordo de livre comércio, assim como questões relacionadas aos direitos de minorias. O governo de Biden provavelmente continuará a política de contenção da imigração através de mecanismos de fomentação ao desenvolvimento econômico nos países de origem (em especial, El Salvador, Guatemala e Honduras), mediante cooperação internacional, tal qual foi feito, com grande êxito, no Oriente Médio em relação à redução dos movimentos extremistas islâmicos (programa CVE). De um modo ou de outro, as mudanças na política fundamental do Departamento de Estado serão acentuadas.  De um de seus mais importantes pronunciamentos4, podem-se extrair as seguintes metas principais de Joe Biden para os EUA, sua política doméstica e internacional: (1) a necessidade de reforçar e revigorar a democracia no próprio país, reduzindo desigualdades internas, o encarceramento em massa, e aprimorando o sistema público de ensino; (2) dar fim às graves questões atuais que envolvem a separação de pais e filhos imigrantes ilegais nas fronteiras; (3) reafirmar a censura à tortura e aumentar a transparência nas operações militares no estrangeiro; (4) fomentar políticas voltadas ao fortalecimento dos direitos de crianças e mulheres em países menos favorecidos; (5) censura aos governos autoritários e à cleptocracia; (6) criação de um fórum global para a questão da energia nuclear e seu uso indevido; (7) investimentos pesados em infraestrutura, inclusive a tecnológica; (8) fomento à pesquisa e ao desenvolvimento, com foco em fontes energéticas alternativas e tecnologias de informação; (9) revisão da política tarifária com antigos parceiros, sobretudo Canadá e EU; (10) reentrada no Acordo Climático de Paris; (11) apoio e aumento na participação em organizações internacionais e regionais, assim como fortalecimento de alianças e incentivo à diplomacia.  7.       Esquerda e direita nos EUA são semelhantes ao nosso cenário político brasileiro? Há vários erros de interpretação por parte de formadores de opinião que não conhecem bem os processos culturais americanos. Assim como qualquer país, os EUA têm suas peculiaridades, virtudes, pecados, manias, fantasmas do passado e patologias sociais. E a diferença entre EUA e Brasil é tanta quanto entre Zeca Pagodinho e Bruce Springsteen. Somos diferentes na história, na política, nos hábitos, no comércio, no comportamento social e em vários outros aspectos culturais.  Uma primeira questão, importantíssima, e que tem causado tremenda confusão na "transmigração" de informações políticas ao Brasil diz respeito ao que se entende pelo termo "liberal". Liberal, nos EUA, significa aquilo contrário ao que é conservador.  Basicamente, mas de forma muito tosca, pode-se dizer que republicanos são conservadores, enquanto democratas são liberais. Logo, veja-se, é diametralmente oposto ao que nós entendemos por liberal, termo que associamos ao liberalismo econômico, normalmente mais próximo aos partidos de direita entre nós, que, por sua vez, tendem mais ao conservadorismo. E isso tem mesmo causado muita confusão em tempos onde o debate político, lamentavelmente, tem-se assemelhado ao debate entre torcidas de futebol, abundando os conceitos reducionistas, superficiais e binários, e estando em enorme escassez análises de conteúdo mais profundas e mais apropriadas à gigantesca complexidade da vida política e social.  8.       Na comunidade hispânica dos EUA, sobretudo na Florida, propagou-se muito a vinculação do Partido Democrata ao socialismo. Isto procede?   No espectro político norte-americano, que alcança liberais e conservadores, há extremos. Contudo, nem a extrema direita, nem a extrema esquerda nos EUA guardam qualquer semelhança com nosso mosaico político brasileiro.  As questões abraçadas pela esquerda mais à ponta do espectro nada têm a ver com algo minimamente próximo a socialismo ou comunismo, apesar desta simplificação ter ressonado intensamente nos ouvidos da comunidade hispânica na Flórida e em outros segmentos que encontram origens em países com regime ditatorial: Venezuela, Cuba, Leste Europeu, África. Da mesma forma, vemos o eco amplificado disto nas mídias sociais no Brasil. Nos EUA, o que está mais à esquerda seria, no Brasil, nada mais do que uma esquerda moderada, tendo por mote uma maior presença do Estado na providência social (welfare state) e na redução de desigualdades sociais. Do mesmo modo, a extrema direita norte-americana tem raízes históricas que desconhecemos, fortemente ligadas a aspectos que deram azo à Guerra de Secessão, e que produziu sequelas ainda hoje observáveis, como a disfunção respeitante à supremacia racial e à questão da posse de armas.  E, por mais que importantes figuras no Brasil insistam em importar tais temas, a verdade é que não compartilhamos tais aspectos históricos. Por exemplo, apesar de nossos profundos problemas, não temos algo como a Ku Klux Klan no Brasil. Tampouco tivemos que dar hospedagem às tropas inglesas durante nossa Guerra de Independência. E o que chamamos de milícia no Brasil não guarda qualquer semelhança com a "militia" norte-americana, nem em suas origens, nem em sua atualidade.  Palavras não aceitam qualquer acepção. O significado que damos aos termos socialismo e comunismo não é luta-livre.  E, se entendemos o socialismo e o comunismo como apropriação pelo Estado dos meios de produção e consequente intervenção máxima do Estado na vida social, pode-se afirmar que nada é mais inadequado do que se pretender associar o Partido Democrata ao socialismo. Tanto quanto seria um absurdo afirmar-se que o Partido Republicano é fascista.  Ocorrem manifestações por vezes extremas por simpatizantes de um e outro partido? Sim, claro, sempre haverá.  Mas não se pode dar equivalência conceitual onde ela inexiste. Aliás, há pouco espaço, ou nenhum, para o socialismo nos EUA, onde impera a livre-iniciativa. Há outras ameaças graves ao bem-estar social norte-americano, mas o socialismo certamente não é uma delas. Se tivéssemos que simplificar ao máximo o sistema bipartidário norte-americano (Democratas e Republicanos), poderíamos imaginar um plano cartesiano, com dois vetores representando aspectos da liberdade e da igualdade, no qual as possíveis coordenadas corresponderiam à preferência política por maior ou menor intensidade de um ou outro, não sendo possível valores nulos ou negativos, pois isto corresponderia ao fim da democracia, e a um regime autocrático.  Aliás, é esta sempre a maior ameaça: igualdade sem liberdade, ou liberdade sem igualdade. Não raro, prenunciadas ou sustentadas por regimes populistas.  Sendo sempre oportuno lembrar que a democracia não é algo "dado", mas "construído" diuturnamente. Entretanto, tentar reduzir o mosaico da política, quer no Brasil, quer nos EUA, a conceitos herméticos, a-históricos e binários pode servir bem para o marketing político, mas não traduz a realidade complexa de um país tão grande quanto diverso, como são os EUA.  E, para este efeito, tampouco do Brasil. _______________ 1 Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000).  Em alguns Estados norte-americanos, os tribunais superiores também se denominam "Suprema Corte".  Daí a usual referência ao termo "SCOTUS", abreviatura frequentemente utilizada para designar a Supreme Court of the United States, distinguindo-as das demais cortes estaduais. 2 Há precedentes da Suprema Corte dos EUA concedendo ampla discricionariedade aos Estados para legislarem da forma que mais bem lhes aprouver em matéria eleitoral, o que, aliás, está na Constituição Federal.  3 Literalmente, "pato coxo", nome que se dá aos presidentes nos dias finais de seus mandatos, pela baixa carga de atenção, relevância ou legitimidade em razão da proximidade do fim do segundo mandato ou perda da reeleição 4 Biden, Joseph R.  Foreign Affairs.  March/April 2020.  clique aqui
As eleições presidenciais norte-americanas atraem a atenção do mundo inteiro.  Não à toa. Sua repercussão nos diversos planos da vida, sobretudo em tempos de globalização, é proporcional ao peso dos EUA na geopolítica e na economia mundial. Empresas de consultoria, fundos financeiros, organizações internacionais e governos mundo afora aguardam com elevado grau de ansiedade pelo resultado das eleições. Normalmente, já prenunciado na própria noite do dia (final) da votação. Todavia, este ano, há elevado grau de probabilidade que o resultado não venha a ser conhecido hoje. Como vimos no artigo anterior, desde há muito, as eleições nos EUA não se dão em um só dia. Antes, o dia oficial das eleições1 é, na verdade, um termo final, antecedido por um período determinado pela legislação eleitoral de cada Estado da federação, durante o qual se é possível efetuar o chamado "early voting", seja pelo envio das cédulas pelos correios, seja pelo comparecimento aos centros de votação, ou, ainda, pelo depósito antecipado das cédulas em urnas oficiais espalhadas por cada região eleitoral. E, desta feita, como resultado das medidas de prevenção contra a Covid-19 - em particular, a necessidade de distanciamento social, associada ao enorme risco de contaminação pelos segmentos mais vulneráveis - , vários Estados ampliaram e incentivaram o voto antecipado e o voto não-presencial (por correio ou depósito das cédulas em urnas oficiais).  E, com efeito, o volume de votos realizados desse modo, já se sabe, será colossal.  Na verdade, nada há de novo com relação a isso. Formalmente, os resultados oficiais jamais são fornecidos na mesma noite das eleições, pois os Estados somente certificam a contagem dos votos vários dias depois. Portanto, o resultado que usualmente vemos na própria noite do pleito é apenas a estimativa não-oficial fornecida pelos órgãos jornalísticos e entes afins, na medida em que a contagem já iniciada atinge determinado índice percentual onde matematicamente parece ser definitivo o resultado nesta ou naquela localidade.  Ainda assim, quando, em 1916, anunciou-se que o candidato republicano Charles Hughes havia derrotado o então presidente democrata Woodrow Wilson, dois dias depois, os resultados oficiais indicaram que, na verdade, Wilson houvera sido reeleito. O mesmo ocorreu também, em 1948, na disputa entre Harry Truman e Thomas Dewey, tendo sido o primeiro o vencedor, apesar de logo antes ter-se dado por certa a eleição de Dewey. Como, neste ano, o volume de votos encaminhados pelos correios será expressivo e como a legislação eleitoral de muitos Estados não permite a abertura ou o processamento das cédulas até o horário de encerramento das votações, é improvável que o vencedor seja anunciado na noite de hoje. Por outro lado, há Estados onde o processamento dos votos antecipados é permitido. É o caso da Flórida, da Carolina do Norte e da Georgia, por exemplo, onde é possível que se conheça o vencedor naqueles Estados pouco após o fechamento das urnas.  E alguns desses Estados são decisivos para o resultado das eleições ("battleground states"), pois não somente a disputa é acirrada, como o número de eleitores do Colégio Eleitoral é elevado (sobre o Colégio Eleitoral e o peculiar modo de eleição presidencial "indireta" norte-americana, veja-se nosso outro artigo publicado nesta coluna.  Em especial, o resultado da Flórida, por representar mais do que 10% dos votos do Colégio Eleitoral necessários para a vitória (29 dos 270 votos que garantem o êxito no pleito), poderá vir a definir o próximo presidente norte-americano. Por fim, cumpre destacar o elevado grau de judicialização por parte dos dois principais partidos, o Republicano e o Democrata, em torno de questões relacionadas ao prazo máximo para recebimento dos votos pelos correios, sua validação e contagem.  Estima-se que o Partido Republicano já tenha gasto mais de 20 milhões de dólares em disputas judiciais e o Partido Democrata, cerca de 10 milhões.  Segundo um grupo de estudo formado pela Universidade de Stanford e pelo M.I.T., que acompanha as ações eleitorais já ajuizadas em torno das eleições presidenciais deste ano, somam-se, até a presente data, um total de 432 casos em 44 Estados2. Logo, a depender da margem de proximidade dos votos, a transposição da disputa política para a seara judicial poderá ensejar demora ainda maior para que os EUA e o mundo conheçam o candidato vencedor da corrida presidencial norte-americana de 2020. __________ 1 Segundo Lei Federal dos EUA de 1845, a terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro. 2 Para um estudo abrangente e minucioso sobre o tema, consulte-se: Stanford-MIT Healthy Elections Project. Mail Voting Litigation during the Coronavirus Pandemic. Out 2020.  Disponível aqui.
Se, no Brasil, temos um único dia para "depositar" nossos votos nas urnas (hoje, eletrônicas), nos EUA, a votação se dá ao longo de várias semanas que antecedem o dia oficial das eleições, através do envio das cédulas via correio ou seu depósito em urnas oficiais distribuídas pelos distritos eleitorais, segundo as regras em vigor em cada Estado da federação norte-americana. Como vimos no artigo anterior, a Constituição dos EUA (1787), por sua forma sintética, não detalhou o sistema eleitoral, o que ficou a cargo dos Estados.  O art. II, Seção 1, da Carta norte-americana estabeleceu o chamado "Colégio Eleitoral" e outorgou aos Estados competência legislativa ampla para definir o modo de escolha dos membros do Colégio (electors), assim como competência material plena para administrar e organizar os processos eleitorais.  Entretanto, é importante notar que o art. I, Sec. 4, da Constituição de Filadéflia reservou ao Poder Legislativo Federal (Congresso dos EUA) a competência para editar normas que se sobreponham às leis estaduais no que diz respeito às eleições federais.  Como exemplos, citem-se o National Voter Registration Act (1993), que veio a regular o registro de eleitores para as eleições federais, e o Help America Vote Act (2002), que visou à melhoria na infraestrutura dos sistemas de votação na esfera federal e outras questões adjacentes. Observe-se aqui a evidência do modelo dual de federalismo norte-americano, ao contrário do nosso, de natureza híbrida, que também incorporou o federalismo cooperativo, inspirado no modelo alemão. Logo, não se veem competências comuns ou concorrentes no sistema norte-americano de repartição de competências.  Entretanto, de modo geral, como assinalado, a competência para fixar regras e administrar as eleições repousa com os Estados. Como resultado, os quadros normativos respeitantes às eleições variam sensivelmente de Estado para Estado, como ocorre com as normas respeitantes ao voto antecipado, em datas diversas e anteriores ao dia fixado para as eleições. Na verdade, esta questão remonta às origens da formação da República norte-americana. As dificuldades envolvendo o acesso aos locais de votação, e o tempo muitas vezes inclemente do país nos fins de ano, quando se dá o início do inverno no hemisfério norte, tornava necessário que o pleito eleitoral se desse ao longo de vários dias, e não em uma única data, a fim de viabilizar o voto para os cidadãos que não residiam nas cidades. Em 1845, preocupado com possíveis fraudes envolvendo cidadãos que pudessem votar em mais de um Estado ao longo do prazo eleitoral ampliado, o Congresso editou lei estabelecendo que as eleições quadrienais para presidente e vice ocorreriam na terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro1. Mais tarde, durante a longa Guerra de Secessão, a possibilidade de se votar em data anterior ao dia das eleições foi restabelecida para os militares, que votavam "ausentes" (entre nós, melhor seria o termo "não-presencial"), e suas cédulas eram encaminhadas por malotes e correios.  Eis aí a origem histórica do voto antecipado (early voting) e à distância (absentee ballot) nos EUA.  Perceba-se, desde já, que o voto à distância, isto é, não-presencial (mail-in absentee voting) é uma espécie de voto antecipado (early voting), já que é necessário que se dê em data anterior à contagem para que possa ser eficaz. Este sutil detalhe tem sido muito disputado e, no particular, pela campanha do presidente Trump, que se tem manifestado contrário ao voto não-presencial, embora ele próprio já tenha lançado mão deste tipo de votação.  No início do século XX, e já que antes admitida amplamente durante a guerra, essas práticas vieram a ser paulatinamente adotadas pelos Estados, embora cada um com seu conjunto de regras próprio.  Vários Estados nos EUA condicionaram a prerrogativa de voto não-presencial à apresentação de "justificativa" (excuse) para a impossibilidade de se votar presencialmente. De certo modo, parece ser um instituto mais inclinado à maior participação (e, portanto, com maior teor democrático) do que nossa mera "justificativa" (sem voto) junto aos TREs. Mas, como afirmado, as regras variam muito entre os Estados. Com o tempo, muitos deles dispensaram a exigência de justificação para o voto não-presencial e envio de cédulas por correios só se daria mediante requerimento do interessado.  Outros fixaram regras determinando que as cédulas sejam automaticamente enviadas para os domicílios dos cidadãos daquele Estado, onde quer que se encontrem, desde que tenham seus endereços atualizados, e os mesmos poderiam devolver as cédulas preenchidas por correios ou, de acordo com sua preferência, comparecer aos locais próprios de votação no dia das eleições.  Há, ainda, um grande número de Estados que admite o depósito das cédulas em urnas oficiais (em vez das caixas de correios) distribuídas por repartições e escolas públicas. Atualmente, a votação antecipada e não-presencial é uma realidade em todos os EUA.  De acordo com a Conferência Nacional das Assembleias Estaduais (National Conference of State Legislatures), atualmente, todos os Estados admitem a votação não-presencial de algum modo. Cerca de dois terços abandonaram a exigência de justificação para o early voting ou absentee voting. E a pandemia da Covid-19 fez com que um número elevado de Estados ampliasse as formas de votação à distância2.  Estima-se, na data de redação deste artigo, que cerca de 60 milhões de americanos já enviaram seus votos não-presenciais pelos correios e urnas coletoras distribuídas pelo país. Paralelamente, a acidez cada vez maior das disputas eleitorais nos EUA tem causado expressiva judicialização das questões relativas ao voto não-presencial e antecipado, em temas os mais diversos, sobretudo neste ano3.  Em geral, os posicionamentos fixaram-se em dois polos argumentativos opostos: de um lado, a necessidade de ampliação da votação à distância em razão da pandemia, e, de outro, a preocupação com eventuais fraudes. Seja como for, a pandemia da Covid-19 tem trazido inúmeros inéditos desafios para os legisladores e para as Cortes norte-americanas.  Diversas questões aguardam julgamento definitivo e a nomeação da ultra-conservadora juíza Amy Coney Barrett para a Suprema Corte dos EUA, na última segunda-feira, certamente trará inclinação mais favorável às pretensões do Partido Republicano nas questões trazidas, em última análise, à apreciação daquela Corte. Por certo, os EUA caminham para mais uma eleição presidencial a ser decidida nos Tribunais. __________ 1 Neste ano, no dia 3 de Novembro.  Vale observar que, em acordo com as competências materiais e legislativas locais, os estados, cidades e condados, buscando maior eficiência e redução de custos, comumente lançam mão da mesma data para a realização de eleições locais, além de plebiscitos e referendos.  2 Disponível aqui. Acesso em: 26.out.2020. 3 Entre outras: Republican National Committee v. Democratic National Committee (Suprema Corte dos EUA); Paher. v. Cegavske (U.S. District Court of Nevada); Texas Democratic Party v. DeBeauvoir (201st Judicial District Court of Texas). Tully v. Okeson (U.S. District Court for the Southern District of Indiana).
Um dos mais curiosos fatos da democracia norte-americana é que não há eleições diretas para presidente.  E nem sempre o candidato com maior número de votos populares consagra-se eleito, sendo possível que seja derrotado pelo adversário que logrou obter maior número de votos "indiretos" do "Colégio Eleitoral" (Electoral College).  Isso aconteceu diversas vezes na história dos EUA, como em 2000, quando o candidato Al Gore recebeu cerca de 500 mil votos a mais do que George W. Bush; e, mais recentemente, com a candidata Hilary Clinton, que venceu a escolha popular com cerca de 3 milhões de votos a mais do que Donald Trump, mas perdeu na contagem dos votos do Colégio Eleitoral. Embora um tanto estranho e aparentemente complexo, o processo de eleições indiretas para presidente nos EUA encontra suas origens em razões históricas. Quando a Constituição dos EUA foi promulgada pelos Founding Fathers em setembro de 1787, a belíssima cidade de Washington D.C. ainda não havia sido idealizada pelo célebre engenheiro Pierre L'Enfant.  Inicialmente, restou definido que a capital provisória da recém-nascida República seria Filadélfia, mesmo local onde se deu o processo revolucionário e constituinte. Naquela época, não somente pelas dificuldades derivadas do pós-guerra, como também pelas próprias limitações estruturais de então, o transporte era precário, a comunicação era lenta e irregular, e as diferenças sociopolíticas regionais eram evidentes. Isso trazia inúmeras preocupações com relação à lisura e correção das eleições, além daquelas relativas à legitimação dos agentes políticos do governo Federal pela escolha livre e democrática, através de efetiva participação popular. Diferentes métodos foram considerados para a escolha do presidente durante os trabalhos constituintes; entre eles, a escolha indireta por membros do Congresso, a escolha pelas Assembleias estaduais, ou, ainda, a votação pela maioria dos governadores. Ao fim, esse complicado tema foi atribuído ao "Comitê dos Onze para Assuntos Postergados", cuja proposta veio a ser adotada com amplo apoio dos constituintes. Tal proposta deu origem ao chamado "Colégio Eleitoral". O artigo II, Seção I, da Constituição Americana estabelece que cada Estado da Federação, na forma definida por suas próprias Assembleias Estaduais, irá indicar "eleitores" (electors), cujo número será correspondente ao seu número de deputados e senadores no Congresso.  A Constituição não estabelece qualquer requisito para o cargo de "eleitor", mas proíbe-o a qualquer ocupante de cargo público. Atualmente, o Colégio Eleitoral é formado 538 "eleitores", 100 correspondentes ao número total de senadores (2 por cada Estado) e 438 correspondentes ao número total de deputados na Câmara Federal (House of Representatives), conforme o gráfico abaixo: Mais tarde, a 12ª Emenda à Constituição estabeleceu que os "eleitores" de cada Estado se reunirão em sua respectiva unidade da Federação para lançarem seus respectivos votos para presidente e vice-presidente.  A lista com o número de votos dos "eleitores" de cada particular Estado, tanto para presidente quanto para vice, é, então, encaminhada ao presidente do Senado, que procede à leitura e contagem dos votos totais do Colégio Eleitoral. Assim, a população comparece às urnas a cada 4 anos para a escolha do presidente, de onde se extrai a contagem total dos votos populares. E os membros do Colégio Eleitoral tradicionalmente votam naquele candidato que obteve a preferência popular nas urnas de seu respectivo Estado. Entretanto, isto não é uma exigência constitucional. E, em algumas ocasiões ao longo da história, os "eleitores" votaram de forma distinta do resultado obtidos nas urnas.  Muitos Estados, todavia, vieram a proscrever tal conduta por parte de seus "eleitores", atribuindo-lhes multas pecuniárias ou eventual anulação de seu voto. Essa questão foi tema central no recente julgamento do caso Chiafalo v. Washington, em julho deste ano, no qual a Suprema Corte Norte-Americana reconheceu que os Estados têm o poder legislativo para coibir os "votos rebeldes". Entretanto, estes eventos, para além de raros, não têm o condão de alterar o resultado das eleições em razão de outra peculiaridade do processo eleitoral norte-americano: em 48 das 50 Unidades da Federação1, o candidato que obtém a maioria dos votos populares em determinado Estado "leva" a totalidade dos votos eleitorais daquele Estado.  Assim, p.e., se o candidato Joe Biden ganhar apenas 51% dos votos dos cidadãos-residentes na Flórida, levará 100% dos 29 votos do Colégio Eleitoral atribuídos àquele Estado. Este sistema é conhecido como "winner takes all". Há, hoje, forte movimento por parte da sociedade norte-americana em favor da abolição do Colégio Eleitoral. Algo semelhante ao nosso movimento "Diretas-Já", da década de 80.  Entretanto, dada a natureza rígida da Constituição de Filadélfia no que diz respeito à possibilidade de reforma, isto parece ser pouco provável em futuro próximo. Seja como for, adequado ou não, nobre foi a intenção dos "founding fathers", ao registrarem durante as discussões em sua Constituinte: ".[T]he members of the General Convention...did indulge the hope [that] by apportioning, limiting, and confining the Electors within their respective States, and by the guarded manner of giving and transmitting the ballots of the Electors to the Seat of Government, that intrigue, combination, and corruption, would be effectually shut out, and a free and pure election of the president of the United States made perpetual"2. A data da eleição presidencial é fixada em lei de 1845, e ocorrerá no dia 3 de novembro próximo, correspondente à terça-feira seguinte à primeira segunda-feira do mês de novembro.  Entretanto, o chamado "early-voting" (votação antecipada) por correio e por urnas espalhadas pelos inúmeros distritos eleitorais, e que é objeto de fervorosa crítica por parte dos republicanos, já foi iniciado, estimando-se que, por esses dias, cerca de 20 milhões de votos já foram depositados. Deste tema trataremos na próxima edição. __________ 1 À exceção de Maine e Nebraska. 2 Trad. Livre: "Os membros da Convenção Geral. alimentaram a esperança de que distribuindo, limitando e restringindo os Eleitores dentro de seus respectivos Estados, e pela maneira protegida de fornecer e transmitir as cédulas dos Eleitores à sede do Governo, que a intriga, conluio ou corrupção seriam efetivamente eliminados, e uma eleição pura e livre tornar-se-ia perpétua".  Library of Congress. A Century of Lawmaking for a New Nation: U.S. Congressional Documents and Debates, 1774-1875. Vol. 3, p.461.  Disponível aqui. Acesso em: 17/10/2020.
O falecimento da ministra Ruth Bader Ginsburg deu início a uma das mais acirradas disputas de natureza política nos EUA: a nomeação de um novo "Justice", como são chamados os ministros da Suprema Corte dos EUA. De certo modo, é triste que a existência esplendorosa da ministra RBG (como era carinhosamente conhecida) e toda sua fúlgida carreira jurídica estejam sendo parcialmente ofuscadas por esse lado menos nobre da política.  Mas, às vésperas de uma das mais virulentas eleições presidenciais da história dos EUA, isto não poderia ser diferente. Como no Brasil, a Suprema Corte dos EUA situa-se no ápice do Poder Judiciário Federal. Contudo, ao contrário de nós, os Estados também possuem, cada um, suas Supremas Cortes1. Daí o acrônimo, frequentemente utilizado, S.C.O.T.U.S. (Supreme Court of the United States)2, para diferenciá-la das Supremas Cortes estaduais. O artigo III da Constituição norte-americana institui o Poder Judiciário como um dos Poderes da União Federal.  E sua seção I estabelece que o Judiciário Federal é composto pela Suprema Corte e por cortes inferiores a serem definidas por lei. Os Ministros da Suprema Corte são nomeados pelo presidente e sua nomeação é sujeita ao "consentimento" do Senado Federal, o que ocorre em audiência senatorial (sabatina). Os Justices da Suprema Corte têm cargo vitalício, não se submetendo a qualquer limite de idade. Tal tese constitucional foi patrocinada por Alexander Hamilton, um dos founding fathers3, expressando preocupação com possíveis pressões dos demais Poderes na atuação judicial dos magistrados.  E o tema, longe de ser pacífico, é objeto de debate acadêmico e político desde então.  Seja como for, e por todos os benefícios que possa oferecer, a regra da vitaliciedade traz a consequência da formatação ideológica da Suprema Corte por décadas à frente da nomeação, ultrapassando os mandatos dos congressistas e presidentes, que são representantes eleitos.  Assim, a relevância política da Suprema Corte, somada à peculiar característica da vitaliciedade de seus ministros, torna o processo de nomeação e aprovação de seus ministros uma das questões políticas mais sensíveis e disputadas nos EUA, sobretudo se a oposição política ao chefe do Executivo detém a maioria no Senado. Historicamente, cerca de 20 porcento das indicações presidenciais foram rejeitadas pelo Senado. Um bom exemplo do elevado grau de litigiosidade desta questão foi a nomeação do juiz Merrick Garland, pelo presidente Barack Obama, ao fim de seu segundo mandato, em 2016, para assumir a vaga anteriormente ocupada pelo ministro Antonin Scalia, um dos mais conservadores juízes da Corte, e que havia falecido em fevereiro daquele ano. Merrick Garland era o presidente do Tribunal Federal de Apelações do Circuito do Capital (U.S. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit) e já há muito vinha sendo cotado para ocupar eventual vaga no Supremo.  Entretanto, embora fosse considerado um magistrado de posições moderadas e louvado até mesmo por vários senadores republicanos mais conservadores, sua nomeação sequer chegou a ser apreciada pelo Senado, pois o líder da maioria na Casa, senador Mitch McConnell já havia anunciado, desde a morte de Scalia em fevereiro daquele ano, que qualquer indicação para ocupar o cargo vago no último ano do mandato presidencial deveria ser tida por nula, pois o Senado deveria "dar voz ao povo no processo de preenchimento da vaga"4, o que restaria consignado pela eleição do novo presidente.  Isto foi em fevereiro do último ano do mandato presidencial do presidente Obama. Outro ícone conservador no Senado, e um dos principais aliados do atual presidente Trump, Sen. Lindsay Graham, alinhando-se a esta tese, afirmou na ocasião: "Podem usar minhas palavras contra mim" (2016)... "Se uma vaga abrir no último ano do mandato do Presidente Trump, e as primárias já houverem se iniciado, esperaremos até a próximaeleição (2018)"5. Em que pese a tremenda contradição, ambos senadores, juntamente com toda a ala republicana do Senado (maioria), à exceção de duas senadoras, posicionaram-se favoravelmente a conduzir a audiência de aprovação após qualquer indicação que venha a ser feita por Trump, ainda que há apenas poucas semanas das eleições presidenciais e, logo, de forma manifestamente contrária à tese que antes haviam esposado. O constitucionalismo norte-americano assentou, em bases sólidas, uma das noções mais fundamentais do sistema democrático constitucional: a de que a constituição institui o poder máximo dentro de um Estado soberano; mas é também a constituição que o limita.  O texto federalista n.51, de autoria de James Madison, outro expoente na Convenção de Filadélfia, sintetizou esta preocupação na famosa passagem: "(...) Mas o que é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos, nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controles externos nem internos sobre o governo. Ao construir um governo que será administrado por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, em seguida, obrigar o governo a controlar-se a si próprio". A separação de poderes exsurge como um dos principais elementos de profilaxia constitucional para a eterna propensão patológica dos sistemas políticos à concentração e ao abuso de poder. Ao mesmo tempo, diversos elementos da engenharia constitucional moderna oferecem sistemas de pesos e contrapesos (checks and balances) a fim de limitar o exercício do poder por cada um dos Poderes do Estado, dois deles de particular interesse aqui: de um lado, a escolha de juízes para o órgão máximo do Poder Judiciário realizada com a participação do Executivo e do Legislativo; de outro, o inevitável ingresso em relevantíssimos assuntos que envolvem política pública pelo Poder Judiciário, sempre que instado a se manifestar sobre atos legislativos e executivos em face dos mandamentos constitucionais.  Isto torna a Suprema Corte um ente não somente jurídico propriamente dito, mas inexoravelmente político também. E, pelo mesmo motivo, assim como pela repercussão de seus julgamentos, a composição da Corte é assunto da maior relevância na ciranda política. __________ 1 Todavia, a nomenclatura dada às Cortes de última instância dos estados varia: Supreme Court, Supreme Court of Appeals, Supreme Judicial Court, Court of Appeals etc.. Texas e Oklahoma possuem duas supremas cortes, uma para a jurisdição cível, outra para a criminal.  2 De forma similar, desde a época dos telégrafos, utiliza-se o acrônimo POTUS para designar o Presidente dos Estados Unidos (President of the United States). 3 A Convenção Constitucional em Filadélfia contou com representantes de 12 dos 13 estados (Rhode Island não enviou delegados), reunindo os mais expressivos e renomados políticos norte-americanos da época, entre eles: George Washington, James Madison, Alexander Hamilton, Benjamin Franklin, George Mason, Roger Sherman, Robert Morris e outros. Thomas Jefferson e John Adams não participaram, pois estavam ocupando as embaixadas da França e da Inglaterra respectivamente.  Os founding fathers, como ficaram conhecidos, eram estadistas natos, além de eruditos em matéria de história e filosofia; a maioria bem versada nos tratados de filosofia política, especialmente Montesquieu, Rousseau e Locke. 4 Disponível aqui.  Acesso em 22 set 2020. 5 Disponível aqui.  Acesso em: 23 set 2020.  O vídeo com tal declaração também está disponível neste mesmo sítio.
sexta-feira, 10 de julho de 2020

Impeachment não é impedimento

A projeção e relevância dos acontecimentos econômicos, políticos e jurídicos nos EUA para o resto do mundo são inegáveis. No Brasil, embora sejamos herdeiros em grande parte do sistema jurídico de nossa ex-matriz, Portugal, tanto pelo alargamento da esfera de influência política norte-americana a partir de 1823 (doutrina de Monroe), como também pelas consequências da 2ª Grande Guerra, inúmeros institutos, noções e arranjos jurídicos dos EUA têm se tornado parte de nossas vidas. É o que ocorreu e.g. com a formação do nosso arcabouço constitucional no início da República, sobretudo por obra de Rui Barbosa, enorme apreciador dos institutos de direito constitucional dos EUA. Outro exemplo mais recente foi a implantação do sistema de agências regulatórias entre nós. E é com isso em mente que inauguramos as "Migalhas Norte-americanas". O propósito desta coluna é discutir institutos e noções provenientes daquele sistema, os quais, bem ou mal, acabam por influenciar nosso debate jurídico brasileiro. Buscaremos oferecer pontos de partida ou referência para a arguta mente dos leitores do Migalhas na satisfação de sua curiosidade ou perquirição ligeiramente mais aprofundada das origens, causas e fundamentos dessas questões. Neste contexto, inauguramos a coluna com tema que tem assombrado igualmente brasileiros e norte-americanos nos últimos tempos: o impeachment. E iniciamos pela avaliação da seguinte manchete de Jornal, a título ilustrativo: "Quem assume em caso de impeachment?"1 À leitura da notícia acima segue-se a inevitável pergunta: impeachment é destituição ou impedimento? Se há, entre nós, estrangeirismos cujo processo de incorporação à nossa linguagem coloquial - e até mesmo ao nosso "juridiquês" - se mostrou muito infeliz, certamente o termo impeachment é um deles. O instituto do impeachment chegou às 13 colônias norte-americanas por herança do sistema jurídico de sua matriz, Inglaterra. Foi adotada pelos governos coloniais, assim como inserido nas Constituições Estaduais posteriormente. Durante o movimento pela Independência, Alexander Hamilton, um dos founding fathers, escreveu no Texto Federalista n°65 que o escopo do impeachment são as infrações que resultam de improbidades dos homens públicos e, em última análise, da violação à fé pública2. E, após o fim da Guerra pela Independência, o instituto foi insculpido na Constituição de 1787, constituindo-se em um dos mais importantes pilares do sistema constitucional contemporâneo, os chamados "freios e contrapesos" (checks and balances). Como era de se esperar, por se tratar de palavra estrangeira, não temos o termo impeachment em nosso ordenamento. Os estatutos jurídicos que tratam do tema, grosso modo, são a Constituição Federal de 1988 e a lei 1.079/50. Nenhum deles o contêm. E, quando fazem referência a "impedimento", é apenas em seu sentido processual. Paralelamente, os arts. 34 e 70 da lei 1.079/50 referem-se à "destituição" do cargo como um dos possíveis desdobramentos da condenação por crime de responsabilidade e não como sinônimo do impeachment, que sequer é mencionado. Na verdade, em resposta à pergunta acima, na forma como foi importado o instituto, impeachment não se trata de destituição nem tampouco de impedimento. Embora o termo possivelmente tenha origens etimológicas no Latim, no sentido de se prender o pé (pes, pedis), e no Francês arcaico, no sentido de prevenir (empêcher), no contexto de sua utilização pela linguagem jurídica hodierna, não parece haver dúvidas quanto à sua ligação ao instituto jurídico de origem norte-americana. Isto, não somente pela inesgotável referência doutrinária e jurisprudencial brasileira aos autores e precedentes norte-americanos, como também pela abundância de semelhanças no que diz respeito aos contornos do desenho institucional que preferimos adotar no Brasil para o tratamento da questão. No que releva lembrar, entre suas várias e riquíssimas contribuições para nosso Direito Constitucional prístino, famoso texto de Rui Barbosa, publicado na edição do Jornal do Brasil de 07.06.1893, onde era redator-chefe, intitulado "Theoria do Impeachment". Entretanto, nos E.U.A., o significado de impeachment é outro: significa algo semelhante a indiciamento ou acusação. Em que pese haver natural tendência a utilizar o termo impeachment como sinônimo de impedimento, pela óbvia similitude entre os dois, trata-se de um estrangeirismo viciado por grave incorreção. Não é incorreto, todavia, falar-se em processo de impeachment, pois o impeachment é mesmo um processo acusatório. E, mais importante, desde que se compreenda que um agente político que sofreu um impeachment não é aquele que foi impedido ou destituído do cargo, mas que foi "acusado" de infrações graves. Mas é um equívoco utilizar o termo como sinônimo de efeitos de eventual "condenação por crime de responsabilidade a qual pode levar ao impeachment", tal como se depreende da manchete acima e até mesmo se registra em respeitáveis obras jurídicas. Em outras palavras, o impeachment é um caminho, uma via processual e não um resultado (impedimento ou destituição). Assim tem-se, por exemplo, o caso do atual Presidente Norte-Americano, Donald J. Trump, que foi efetivamente "impeached" - isto é, acusado de infrações graves (high crimes and misdemeanors - Art. II, Sec. 4, da Constituição dos E.U.A.), embora tenha sido absolvido dessas acusações pelo Senado e não se viu impedido de continuar a exercer o cargo de Presidente. Aliás, como logo se vê, nosso processo de julgamento por crimes de responsabilidade, conforme previsto no art. 86, CF/88, e detalhado pela lei 1.079/50, acompanhou, em linhas gerais, o rito adotado pela Constituição de Filadélfia para o processamento do impeachment, onde a acusação (articles of impeachment) é aprovada por maioria simples pela Câmara dos Deputados e julgada pelo Senado, sendo necessária a maioria de 2/3 dos presentes para condenação (conviction) do Presidente (Art. I, Sec. 3, da Constituição Norte-Americana). E as competências, como aqui, são exclusivas de cada Casa (Art. I, Sec. 2 e Sec. 3), embora lá as votações se deem em apenas um turno. Observe-se que, no sistema norte-americano, a exigência de quorum simplificado pela maioria simples na Câmara torna menos difícil a eventual aprovação do impeachment; todavia, a exigência da maioria de 2/3 no Senado a dificulta, ainda mais quando se trata de Casa legislativa que, ao longo da história, sempre se mostrou assaz conservadora. Assim, tanto no Brasil como nos EUA, o presidente da República, ao sofrer um impeachment, só virá a ser "destituído" se sobrevier a condenação pelo Senado. Entre nós, a CF/88, art. 79 estabeleceu que "substituirá o Presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á, no de vaga, o vice-presidente". Isto porque, se foi destituído, o cargo se tornou "vago", fato jurídico de natureza definitiva, ao contrário do impedimento, que possui natureza temporária. É assim, pois, que pacificamente a doutrina diferencia "impedimento" de "vacância", sendo esta definitiva e aquela, temporária. Pois veja-se que o artigo 81 da CF/88 disciplina o caso de vacância, mas nada diz a respeito do impedimento. E, claro, desnecessário seria, pois se se trata de obstáculo de fato ou de direito de natureza temporária, eleições para suprimento do cargo vago não serão necessárias. Eis aqui, então, a armadilha de nosso "falso cognato jurídico": se um presidente sofre um processo de impeachment, e é acusado e condenado pelo Congresso Nacional, ele foi "impeached" na primeira fase do processo, mas não será "impedido" e, sim, "destituído" ao fim. A relevância disto reside na infinita confusão que tem ocorrido no tráfego de informações entre os meios jornalísticos, as análises jurídicas e a percepção popular acerca do importantíssimo instituto do impeachment e, principalmente, de suas consequências jurídicas e políticas. Esta armadilha terminológica, com efeito, veio à tona por ocasião do mais recente episódio congênere que vivenciamos em nosso país, e embora tenha passado quase que amplamente despercebida, gerando inúmeras confusões e incorretos vaticínios, convém, naturalmente, estar-se atento à gravidade de suas consequências. Na próxima coluna, discutiremos outro instituto de origem norte-americana, cuja origem histórica e processo de importação ao Brasil produziram consequências interessantíssimas: o federalismo. Até lá. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 04.jul.2020 2 A preocupação maior com a harmonia e equilíbrio entre os Poderes, sua limitação e eventual censura - incluindo a destituição de agentes políticos de seus cargos - esteve presente em vários momentos da Convenção de Filadélfia, recebendo referência direta de relevantes figuras históricas, como James Madison, Benjamin Franklin e Gouverneur Morris. Mas foi Hamilton que trouxe a questão ao debate público durante o árduo processo de ratificação da Constituição pelos Estados, através de sua contribuição para os famosos Textos Federalistas.