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Vacinas compulsórias e dignidade humana (Parte II)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Atualizado às 10:21

No artigo anterior, demonstramos que o ordenamento jurídico brasileiro tem uma constelação de normas impositivas da vacinação: leis ordinárias, tratados internacionais e até atos administrativos, em favor dos quais milita uma presunção de constitucionalidade e de legitimidade.

Em uma abordagem originalista, apresentamos debates travados na Assembleia Nacional Constituinte que ratificam essa presunção. Um dado constituinte brasileiro chegou a dizer explicitamente que pais e mães deveriam ser punidos quando se abstivessem de vacinar seus filhos.

Até mesmo no constitucionalismo norte-americano, que glorifica a autonomia individual e efetua um dos escrutínios mais rigorosos sobre leis restritivas da liberdade, a vacinação compulsória é vista como uma medida constitucional. Na oportunidade, indicamos os precedentes do Direito Comparado que se ocuparam do assunto.

Por fim, concluímos que a vacinação tem natureza jurídica de dever fundamental. Esta é a regra. Em se tratando de pessoas que não vivem em isolamento, a imposição do dever de vacinar-se deriva da dignidade humana como heteronomia.

Não por acaso, o Projeto de Lei 3842/19 tipifica o crime de "omissão e oposição à vacinação": "omitir-se ou opor-se, sem justa causa fundamentada, à aplicação das vacinas previstas nos programas públicos de imunização em criança ou adolescente submetido ao seu poder familiar, ou tutelado". Atualmente, a proposição legislativa aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), na Câmara dos Deputados.

Porém, o problema que se nos apresenta, nesta parte final do raciocínio, diz respeito às pessoas que integram comunidades tradicionais isoladas, em um contexto de multiculturalismo. Duas delas serão ilustradas, de maneira breve.

- ETNIA BANIWA

De um modo geral, antropólogos apontam que, consoante o pensamento indígena, as doenças que acometem os índios são originadas de causas espirituais. Nesse raciocínio etiológico, as vacinas assumem uma importância mais modesta.

Na etnia Baniwa, embora a vacina seja aceita, não se trata propriamente de uma prioridade. Como indica Luiza Garnelo, "[a] vacinação é bem-vinda, mas seu alcance é visto como algo que não ultrapassa o nível sintomático da doença, [...] o grau de importância que os Baniwa atribuem à vacina é relativamente menor que o valor de uma viagem xamânica aos mundos dos deuses" (2011, p. 181).

Nesse contexto, a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais1 esclarece que indígenas têm o direito de "[...] escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual" (art. 7º, 1) - Grifo nosso.

Os índios da etnia Baniwa "têm suas prioridades estabelecidas em torno [...] do respeito à autonomia e à liberdade das crianças - cuja vontade deve ser respeitada, caso esta não deseje ser vacinada". (GARNELO, 2011. p. 184) - Grifo nosso.

A Constituição de 1988 protegeu os costumes, crenças e tradições dos índios (art. 231), tais como eles são. De mais a mais, como estabelece a Convenção 169, "...deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas [...] culturais [...] e espirituais" dos índios (art. 5º, "a") e "não deverá ser empregada nenhuma forma de força ou de coerção que viole [...] as liberdades fundamentais dos povos interessados" (art. 3º, 2). - Grifo nosso.

Tecnicamente, até mesmo a incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente no suporte fático há de observar os usos e costumes dos indígenas. Isso porque, como pontua a Convenção 169 da OIT, "Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes" (art. 8º, 1). O mesmo vale para as demais normas impositivas da constelação normativa.

A vacina de índios da etnia Baniwa implica um contato interétnico, razão pela qual o tratamento jurídico é diverso daquele conferido à cobertura vacinal usual.

- COMUNIDADE AMISH

Nos Estados Unidos e no Canadá, a comunidade Amish ainda conserva um modo de vida típico do século XVII. Trata-se de um grupo cristão que repudia a eletricidade e o telefone. Alguns chegam a usar carruagens.

Os Amish compõem uma sociedade rural, onde o alimento é aquilo que se planta. A agricultura é sempre orgânica e os animais não recebem hormônios ou antibióticos. A propósito, pesquisadores já identificaram um baixo índice de câncer entre eles, constatação que, em parte, foi justificada pelo estilo de vida adotado (WESTMAN, FERKETICH, KAUFFMAN, et al, 2010).

Para o que importa neste artigo, os Amish são minorias religiosas que vivem isoladas em assentamentos e também não aceitam vacinas (BRICKS, 2007. p. 175).

O fato é que as vacinas remetem às crenças sociais. O terreno epistêmico do ARE 1.267.879, onde o STF decidirá se o tema é dotado de repercussão geral, é a antropologia da saúde.

À luz da Constituição de 1988, as crenças transcendentais dos não índios são rigorosamente dignas da mesma consideração e respeito que as crenças indígenas - embora se saiba que, para alguns brasileiros, os usos e costumes dos índios precisam ser conservados, enquanto os usos e costumes dos não índios hão de ser "desconstruídos". Nesta concepção, a tradição valiosa é sempre e apenas a do outro, jamais a própria -.

A verdade é que, juridicamente, crenças e culturas são dotadas da mesma respeitabilidade em uma Constituição que erigiu o pluralismo como princípio fundante. Por que, então, somente as crenças das comunidades tradicionais eximem seus integrantes do dever fundamental de vacinação? 

Não se trata exatamente disso. Há, nesta pergunta, uma imprecisão. O essencial não é apenas a crença considerada em si mesma, mas a conjugação com o fato de que, quando se trata de pessoas que vivem em situação de isolamento, o argumento da periclitação da saúde pública simplesmente perde a força. A abstenção torna-se uma omissão autorreferente.

A etnia Baniwa e a comunidade Amish são comunidades tradicionais compostas por pessoas que, como diria Nietzsche, não têm alma de rebanho (2011. p. 15). Não é esperado, por conseguinte, que colaborem com a chamada imunidade de rebanho. 

A menos, é claro, que deixem suas terras, assim como Zaratustra deixou o ostracismo das montanhas - e inspirou a imponente composição sinfônica do maestro alemão Richard Strauss -. Afinal, repita-se à exaustão: no Brasil, a regra é que a vacinação tenha natureza de dever fundamental. 

Com isto, encerramos as digressões iniciadas no artigo anterior. Mas há uma pergunta suscitada por Zaratustra que parece não ter sido respondida (NIETZSCHE, 2011):

"Onde está a loucura com que deveríeis ser vacinados?".

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1 Atualmente no Anexo LXXII ao Decreto n.º 10.088/2019.

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BRICKS, Lucia Ferro. Vacina contra Poliomielite: um novo paradigma. Revista de Pediatria. Volume 25, n.º 2, 2007.

GARNELO, Luiza. Aspectos Socioculturais da Vacinação em Área Indígena. História, Ciências, Saúde -Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p.175-190.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Companhia das Letras, 2011.

WESTMAN Judith A., Ferketich Amy K., KAUFFMAN Ross M., MACEACHERN Steven N., WILKINS JR 3rd, WILCOX Patricia P., PILARSKI Robert T., NAGY Rebecca, LEMESHOW Stanley, de la CHAPELLE Albert, BLOOMFIELD Clara D. Low Cancer Incidence Rates in Ohio Amish. Cancer Causes Control. 2010 Jan;21(1):69-75.

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