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A impossibilidade jurídica de revisão das privatizações

Este artigo pretende demonstrar as garantias do sistema jurídico brasileiro aos direitos dos investidores que participaram dos projetos de privatização no País durante os últimos anos.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2003

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

A impossibilidade jurídica de revisão ou

 renegociação das privatizações brasileiras.

 

Joaquim Manhães Moreira

 

Este artigo pretende demonstrar as garantias do sistema jurídico brasileiro aos direitos dos investidores que participaram dos projetos de privatização no País durante os últimos anos.

 

Demonstrará, portanto, como o nosso sistema jurídico proíbe que novas leis ou atos de Governo imponham a tais agentes econômicos: (a) a perda de participações ou posições societárias adquiridas; ou, (b) a restrição ao exercício de concessões ou permissões para exploração de serviços públicos a eles outorgadas.

 

Durante as décadas de 1960, 1970 e 1980 o Estado Brasileiro manteve forte participação na economia, sob a égide da Constituição de 1967, não apenas planejando e regulamentando a ação da iniciativa privada em quase todos os setores, mas também atuando como agente econômico através das empresas públicas e das sociedades de economia mista.

 

A partir do início dos anos 90, em consonância com o disposto na Constituição de 1988, o Estado passou a reduzir a sua participação no sistema econômico, diminuindo o nível de controle das atividades do setor privado, eliminando ou restringindo monopólios estatais, e, principalmente, através da execução de um amplo projeto de privatização.

 

Foram muitos os motivos que conduziram a esse movimento. No plano internacional verificou-se, por um lado a criação de novas necessidades de investimentos, criadas pelos desenvolvimentos tecnológicos permanentes e pela globalização da competição econômica. Ao mesmo tempo constatou-se a escassez de recursos de investidores internacionais dispostos a financiar os setores públicos das economias. A captação de recursos financeiros para novos projetos tornou-se praticamente inacessível ao setor público. Os investidores que nas décadas anteriores concordaram em financiar governos passaram a exigir desde então a assunção dos riscos dos projetos pela iniciativa privada.

 

No plano interno a economia brasileira mostrava-se madura para a redução da participação estatal. Todos os setores importantes encontravam-se fortalecidos e atuantes. Ao mesmo tempo a presença do Estado em tais setores começava a dar sinais de exaustão. A máquina governamental administrava mal as empresas públicas, as sociedades de economia mista e a prestação dos principais serviços públicos. As diversas influências políticas faziam com que as entidades da administração direta e indireta utilizadas com esses objetivos gerassem déficits crescentes, onerando os orçamentos públicos e, com isso, auxiliando na alimentação do processo inflacionário.

O processo de privatização iniciou-se pela redução da participação do Estado em setores específicos da economia, como siderurgia, química e petroquímica, mas teve o seu maior sucesso nos segmentos de infra-estrutura, representado pelas atividades de energia, telecomunicações e transportes.

 

Nos segmentos que integram a infra-estrutura a privatização foi promovida através da venda de participações societárias dos governos em empresas estatais, e da concessão à iniciativa privada para a exploração de serviços públicos. Desde o princípio do processo até o início do ano de 2002 foram os seguintes os resultados alcançados· :

 

  • privatização de 72 empresas federais;
  • concessão de 78 serviços públicos;
  • privatização de 40 empresas estaduais;
  • alienação da participação federal em 15 empresas estaduais;
  • arrecadação de US$ 85,3 bilhões pelos cofres públicos, como receitas derivadas da exploração do seu próprio patrimônio, recebidos em contra-partida às alienações promovidas;
  • transferência de dívidas de US$ 18 bilhões do setor público para o setor privado.

Os benefícios para a população projetaram-se além dos impactos financeiros positivos nos orçamentos públicos. Eles se refletiram principalmente na qualidade dos serviços oferecidos. Mas os ajustes das estruturas de recursos humanos das empresas privatizadas geraram demissões, e com elas certo grau de insatisfação por parte dos setores da sociedade atingidos pelos cortes dos contingentes excedentes, improdutivos ou de baixa produtividade.

 

Esses setores minoritários da sociedade brasileira continuamente chamam a atenção da imprensa clamando por uma revisão do processo de privatização. Sob o ponto de vista jurídico tal revisão não é possível, como será demonstrado a seguir, por força dos direitos adquiridos dos agentes econômicos, ainda que houvesse - e pelo menos aparentemente não há - vontade política dos governantes e legisladores em promovê-la.

 

O processo de privatização foi representado pela celebração dos seguintes conjuntos de negócios jurídicos entre o Governo e os agentes econômicos: (a) alienação pelo Governo e aquisição pelos investidores de participações societárias, majoritárias ou minoritárias em empresas anteriormente controladas pelo Estado; (b) outorga pelos Governos à iniciativa privada de concessão ou permissão para exploração de serviços públicos; e, (c) misto, englobando os negócios mencionados nas alíneas "a" e "b" anteriores.

 

Os contratos aqui tratados são atos jurídicos perfeitos, ou seja, caracterizam-se como negócios legítimos, praticados nos termos permitidos pela lei vigente ao tempo da sua celebração, e, portanto, eficazes para obrigar em definitivo as partes dentro dos prazos neles estabelecidos.

 

Uma primeira hipótese de modificação dessa ordem jurídica poderia ser através de um novo texto legal: lei ou medida provisória, que determinasse: (a) a anulação ou invalidade dos contratos celebrados; ou, (b) a rescisão "ex lege" (por força de lei) de tais instrumentos.

 

Qualquer ato normativo nesse sentido seria inconstitucional por violar o princípio da segurança jurídica, constante da Constituição Federal (art. 5º, XXXVI) que estabelece a impossibilidade de lei posterior alterar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

 

Os contratos aqui referidos, tanto aqueles relativos a aquisições de participações societárias quanto os que tiveram por objeto a outorga de concessão de serviços públicos constituem-se como atos jurídicos perfeitos, que geram direitos adquiridos para as respectivas partes que os celebraram, e, portanto, não podem ser afetados por leis posteriores. A razão pela qual a Constituição oferece essa garantia está exatamente no nome do princípio que erige a proteção: a segurança jurídica. Se uma lei posterior puder modificar no futuro o que legitimamente se contrata no presente, não haverá mais segurança e ninguém mais se proporá a se obrigar quanto ao futuro, gerando a médio prazo um caos econômico e social.

 

A absoluta necessidade de o Estado respeitar o princípio da segurança jurídica encontra-se na jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores e principalmente do Supremo Tribunal Federal.

 

Outra hipótese seria a da simples rescisão unilateral por parte do Estado das concessões ou autorizações outorgadas.

 

Também essa atitude não poderia ser acatada pelo ordenamento jurídico vigente, e poderia ser revogada pelo Poder Judiciário, pelas seguintes razões: (a) as diversas leis que regulamentam as concessões dos serviços públicos (como a Lei 9074/95), assim como os contratos de concessões estabelecem as hipóteses nas quais pode haver rescisão, não se encontrando dentre elas a simples mudança de orientação política do Governo; e, (b) a rescisão por lei ou outro ato de Governo, sem concordância do concessionário ou permissionário, caracterizaria, novamente, uma violação do princípio da segurança jurídica.

 

Uma terceira possibilidade seria a do Estado impor aos concessionários e permissionários uma renegociação de tarifas ou de critérios para reajustes das tarifas dos serviços.

 

A esse respeito é preciso levar em conta que tanto as tarifas como os critérios para os respectivos reajustes encontram-se expressos em textos contratuais. Os contratos estão sujeitos ao princípio do justo equilíbrio econômico e financeiro. Esse princípio que tem sido tão prestigiado pela jurisprudência pátria foi inserido no próprio texto do Novo Código Civil Brasileiro.

 

Portanto, se um critério de reajuste de tarifa é essencial para que o concessionário obtenha a receita que esperou ao assinar o contrato, e em função da qual incorreu em investimentos, a começar pela aquisição da concessão, não poderá ele ser revisto unilateralmente. Não podendo ser revisto unilateralmente, somente poderá sê-lo através de um processo de convencimento do concessionário por parte do poder concedente. Mas o concessionário terá sempre a seu favor a possibilidade jurídica de não concordar com a renegociação, sem que daí lhe advenha qualquer resultado negativo.

 

Qualquer tentativa do poder concedente em impor uma perda ao concessionário, que ele não poderia prever ao tempo da celebração do contrato, será rechaçada pelo Poder Judiciário com base nos princípios da segurança jurídica e do justo equilíbrio econômico e financeiro dos contratos. Tais princípios obrigarão o poder concedente a manter a tarifa ou o critério de reajuste anteriormente contratados.

 

Esse princípio se aplica a todos os fatores que influenciam no cálculo dos critérios de reajustes. Um exemplo é o do reflexo dos custos dos bens importados nas tarifas. Por ocasião do início da operação das concessões alguns concessionários precisaram adquirir equipamentos estrangeiros para utilização nos serviços. Os pagamentos desses equipamentos se fazem em moeda estrangeira, fazendo com que parte dos seus custos variem de acordo com a valorização do dólar.

 

Qualquer pretensão unilateral do Estado de ignorar a variação da parcela do custo em dólar significará, evidentemente, uma violação dos princípios da segurança jurídica e do equilíbrio econômico e financeiro dos contratos. Como conseqüência, poderá ser contestado imediatamente perante o Poder Judiciário.

 

A última hipótese de intervenção estatal nas privatizações já realizadas seria através de desapropriação. Não vemos motivos para comentar em detalhes a proteção dos direitos dos concessionários sob tal circunstância, em face da total improbabilidade da sua concretização. De qualquer modo é importante lembrar que mesmo nessa hipótese -totalmente remota e improvável - de desapropriação a Constituição assegura a plenitude dos direitos aos concessionários, inclusive o da justa indenização. Justa indenização engloba, evidentemente, a restituição patrimonial e os danos decorrentes, ou seja, os lucros que os investidores teriam se tivessem optado por outra concessão que não lhes fosse desapropriada.

 

Conclui-se, portanto, que os atos de privatizações já praticados pelo Governo brasileiro, quer seja através da venda de participações societárias, quer através da outorga de concessões ou permissões para exploração de serviços públicos, estão garantidas pelo ordenamento jurídico pátrio. Não poderão, portanto, ser revistas unilateralmente pelo Estado em detrimento dos agentes econômicos que participaram do processo, sob pena de esses últimos se valerem das suas proteções constitucionais perante o Poder Judiciário.

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* advogado especializado em Direito Empresarial, Presidente do Conselho de Sócios do escritório Manhães Moreira Advogados Associados

 

 

 

 

 

 

 

 

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