MIGALHAS DE PESO

Moradas

Divagando, o cronista fala sobre uma fila, sempre invisível que, volta e meia ao andar, açambarca da vida de nós pessoas queridas como Millôr Fernandes e Chico Anísio.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Atualizado em 2 de abril de 2012 14:31

Quão maravilhoso é amanhecer assim, as janelas quais narinas, aspirando o ar marítimo, o sol largo e radiante escancarando o azul e não muito longe, parece não ser tão longe, a fila de navios, a fila de sempre, que parece não andar nunca.

Nas caminhadas de todo o dia pela praia eu conto os navios como um menino encantado, sonhando que um dia ainda dará volta ao mundo num deles.

Geralmente, são vinte, trinta, os navios, como se a burocracia de algum hospital tivesse se assenhoreado do porto. Tudo muito devagar. Quase nem aportam. Moram, talvez.

Morar, talvez, ao mesmo tempo em vários lugares tem lá suas vantagens. Como sugere o nosso poeta, o hoje maior, Zeca Baleiro, - estar aqui na ilha, em Arari ou em Nova Iorque não faz diferença quando se está na antessala do dentista. Nada a ver com o que eu ia dizendo. Ou queria dizer.

Falava das vantagens de se morar, que nem nos navios, ao mesmo tempo em muitos lugares. De algum modo, a vida faz assim também comigo e eu gosto de todos os dias dos lugares por onde pouso ou consigo andar ou tenho que andar.

Não se completa nem uma semana na Ilha do Amor, que ultimamente tem sido menos do amor e mais das facas peixeiras com que os assaltantes, à luz dos dias, atacam as pessoas indefesas nas praias, lindas praias de areias firmes e ondas mornas, não se completa nem uma semana e o dever me arranca e me manda voando para o planalto central.

Quando desce a cortina e a saudade, como se fosse uma tireoide faminta me tange para o sertão, lá estou eu entre Rosa e veredas, Graciliano e Oswald, Pessoa e Vinicius, Darci e G. Dias, Lisboa e Vieira, Glauber e Fellini, Puzo e Coppola, só conferindo o quanto muitos deles teriam se inspirado nesse Maranhão velho adormecido de futuros, rodeado de porteiras.

No quintal enorme da casa do sertão, os galos cantam sem compromissos com as horas, jumentos relincham britanicamente como se carregassem nos pulmões, cada um, um chip com a cadência horária do big-bem. Não e não. Os chineses não levarão os meus jumentos.

Há sempre, também, a pavorosa noticia sobre os patos que morrem afogados, o jacaré solto pelo Estado traçando tudo, as verbas da educação e da saúde, também as galinhas nos quintais e sobre um camaleão infanticida que despreza creches e devora ovos nos ninhos.

Contei sobre o cameleão ao Lula e ele me sugeriu que camaleão novinho dá um bom frito. E camaleão velho? Não achei prudente indagar.

Tenho uma vaga lembrança de na infância no sertão ter comido frito de cameleão, não sei se novo ou velho.

Uma vez o doutor Francisco Viveiros, pai do nosso outro grande poeta, também maior, o Chico Maranhão, nos serviu à mesa um ensopado delicioso e só depois nos disse, a nós outros, Murilão inclusive, amigos do seu filho, que não era muçum. Era cobra cascavel e nos mostrou o couro da distinta espichado ao sol no quintal.

Saramago falou que a gente habita mesmo é a memória, o vasto mundo pelo qual viajamos e moramos.

Fico vendo essa fila de navios que parece não andar nunca e me volto imaginando a outra fila, sempre invisível, que volta e meia, ao andar, açambarca da vida de entre nós pessoas tão geniais e queridas como um Millôr e um Chico Anísio e nos pune com essa demora em levar os maleficentes, os majoritários em maus exemplos.

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* Edson Vidigal é ex-presidente do STJ e professor de Direito na UFMA






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