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Aluga-se útero

É preciso regulamentar o procedimento de maternidade substitutiva.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Atualizado em 22 de agosto de 2012 14:42

Há pouco tempo, quando se falava em "barriga de aluguel", compreendendo aqui a maternidade substitutiva, parecia que se tratava de mais uma das ficções científicas relatadas no Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O leitor entendia o procedimento proposto, tinha lá suas dúvidas e jamais imaginaria que a proposta fosse superar a barreira da realidade. Assim, num caminhar acelerado, o homem se esforça para acompanhar o ritmo alucinante das pesquisas envolvendo seres humanos e constata que tudo aquilo que era utópico, como num passe de mágica, desata os nós das dúvidas e desbasta um novo caminho para a humanidade.

A evolução da engenharia genética e os progressos científicos na área da reprodução humana têm solucionado satisfatoriamente o problema da infertilidade, criando várias formas de procriação assistida, com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos. As técnicas de procriação assistida, através da inseminação artificial e fecundação in vitro, culminando com a gestação de substituição, conhecida como "barriga de aluguel", trazem grande esperança para os casais que pretendem a procriação, mas não atingem pela via natural.

Explicando melhor, a inseminação artificial compreende o procedimento de transferência do sêmen do cônjuge, companheiro ou outro doador para o aparelho genital feminino. A fertilização in vitro compreende a manipulação do material procriativo masculino e feminino, com a consequente transferência intrauterina dos embriões.

Desta forma, o casal pode se valer dos próprios gametas ou de doados por terceiros para atingir o projeto parental, além da doação temporária de útero. O problema, apesar de relevante socialmente, caminha por terreno ainda movediço e comporta várias discussões jurídicas, médicas, éticas e religiosas.

A reprodução assistida, em razão de sua implantação à fórceps, carece de legislação ordinária para estabelecer todos os pressupostos e requisitos exigidos. Isto porque a legislação sempre sucede a pesquisa e irá se posicionar somente quando a experiência for bem sucedida e receber a aprovação para ser utilizada na sociedade. Mesmo assim, o Código Civil Brasileiro, em vigor a partir de 2002, em iniciativa exemplar, ensaiou os primeiros passos na regulamentação das inseminações e fecundações homóloga e heteróloga (art. 1597).

Supletivamente, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução nº 1957/2010 sobre a gestação de substituição (doação temporária de útero) e permite o procedimento desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Assim, obrigatoriamente, as doadoras temporárias devem pertencer à família da doadora genética até o segundo grau de parentesco (mãe, irmã, prima), justamente para afastar qualquer tentativa de comércio e lucro. Ausente o vínculo de parentesco, exige-se a autorização do Conselho Regional de Medicina.

Daí que, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, no âmbito da atribuição que lhe foi conferida pela Resolução citada do CFM, vem permitindo a cessão temporária de útero entre não parentes para gestar bebês, desde que haja recomendação médica para tanto e que ausente qualquer suspeita de comércio entre os envolvidos.

Nem sempre é possível contar com parentes que estejam dispostos ou até mesmo que tenham condições de saúde para praticar a gestação de substituição e alojar os embriões que serão transferidos. E é até mesmo difícil de acreditar que qualquer outra mulher, mesmo movida pelo mais puro altruísmo, faça a cessão de seu útero gratuitamente.

O órgão deliberativo médico não tem competência legal e muito menos legitimidade para exigir qualquer outra medida, além de se ver impedido de realizar investigação para apurar se foi atendida a espontaneidade que move a doação. Na reprodução assistida, a mulher não parente que gestará o bebê é indicada pelos pais interessados no procedimento e, sem qualquer dúvida, na entrevista necessária com o profissional responsável, não se ventilará nada a respeito de eventual aluguel de útero. Desta forma, abre-se uma fenda permissiva para a prática de atos de comércio, acobertados pela própria Resolução.

A doação de órgãos e tecidos no Brasil, a título comparativo, regulamentada pela lei 9.434/97, determina que a doação inter vivos será sempre gratuita, proibida qualquer iniciativa comercial, conforme também determina o § 4º do artigo 199 da Constituição Federal. No caso da cessão de útero sem qualquer ônus deve-se aplicar o § 7º do artigo 226 da mesma Carta, quando determina que o planejamento familiar é livre decisão do casal e o Estado deverá proporcionar recursos científicos para o exercício desse direito para aqueles que não conseguem atingir a procriação.

Daí que há premente necessidade de se regulamentar o procedimento de maternidade substitutiva, estabelecendo todos os requisitos exigidos e, com relevo, o cumprimento rigoroso da gratuidade da medida. Se assim não for, de acordo com o andar da carruagem, veremos anúncios em jornais e revistas com os seguintes dizeres: Aluga-se útero: mulher casada, boa parideira, com o sigilo necessário. Tratar direto com a proprietária. Depois virão as agências especializadas, cooperativas, consórcios e assim por diante. É o ingresso na Fábrica de Robôs, preconizado pelo tcheco Karel Tchápek, que com muito humor discutiu o aspecto ético e até mesmo indiscriminado da biotecnociência e biotecnologia.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde e é reitor da Unorp





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