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O ISS - Ou as ignorâncias do alcaide

A municipalidade de São Paulo, após anos de incertezas e erros jurídicos, resolveu consolidar seus erros numa súmula de jurisprudência administrativa relativa ao ISS e incidência sobre a atividade das sociedades uniprofissionais.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Atualizado em 21 de setembro de 2012 15:01

Sem querer plagiar Paulo Setúbal (As Maluquices do Imperador), é importante salientar que a Municipalidade de São Paulo, após anos de incertezas e erros jurídicos, resolveu consolidar seus erros numa "súmula de jurisprudência administrativa relativa ao ISS e incidência sobre a atividade das sociedades uniprofissionais", conforme processo n. 2010-0.118.499-4, Secretaria de Finanças, publicada na pág. 7. Cidade. Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOSP) de 31/12/2010, verbis:

"2010-0.118.499-4 - SECRETARIA MUNICIPAL DE FINANÇAS - Súmulas de jurisprudência Administrativa relativas ao ISS e incidência sobre a atividade das Sociedades Uniprofissionais. -Homologação - Em face dos elementos que instruem o presente, em especial as manifestações da Assessoria Jurídico-Consultiva da Procuradoria Geral do Município (fls. 352/360) e do senhor Procurador Geral do Município (fls.361 e 379), e aprovação do senhor Secretário Municipal de Negócios Jurídicos (fls. 371/372), HOMOLOGO, com fulcro no artigo 12, § 1º do Decreto Municipal 27.321/88, as seguintes súmulas de jurisprudência administrativa, que versam acerca da incidência do Imposto Sobre Serviços relativos às atividades das Sociedades Uniprofissionais, impondo a sua observância a todos os órgãos da Administração Municipal centralizada: 1 -"O benefício do regime especial de recolhimento do ISS, previsto pelo artigo 9º, parágrafo terceiro, do Decreto-lei 406/68, com previsão na legislação municipal, no artigo 15, inciso II c/c parágrafo primeiro, da lei 13.701/2003, somente é aplicado ás sociedades uniprofissionais, constituídas por profissionais que atuem pessoalmente na prestação do serviço, e respondam de forma ilimitada"; 2 -"As sociedades uniprofissionais não poderão ter mais de uma atividade profissional como objeto da prestação de serviço no contrato social"; 3 -"Sociedade constituída por sócios de uma categoria profissional e sócio comerciante, por quotas de responsabilidade limitada, não pode ser enquadrada como sociedade uniprofissional, para efeito da aplicação do regime especial de recolhimento do ISS"; 4 -"As sociedades civis por quota de responsabilidade não gozam do tratamento tributário de regime especial de recolhimento do ISS, previsto no parágrafo terceiro, do artigo 9º, do Decreto 406/68 e artigo 15, parágrafo primeiro, lei 13.701/03"; 5 -"As sociedades civis, para efeito do tratamento privilegiado previsto no regime especial de recolhimento do ISS, devem: ser constituídas, exclusivamente, por sócios habilitados para a mesma atividade profissional e respectivo exercício; ter por objeto a prestação de serviço inserido nos subitens previsto no inciso II, do artigo 15, da lei 13.701/03; com responsabilidade ilimitada pessoal e sem caráter empresarial"; 6 -"As sociedades civis de advogados gozam do beneficio do tratamento tributário diferenciado previsto no artigo 9º, parágrafo terceiro, do Decreto-lei 406/68, vez que são necessariamente uniprofissionais, não podem possuir natureza mercantil, sendo pessoal a responsabilidade dos profissionais nela associados, nos termos dos artigos 15 a 17, da lei Federal 8.904/94 -Estatuto da Advocacia"; 7 -"Os desenquadramentos do regime especial de recolhimento do ISS realizados pela Administração Tributária deverão ser precedidos de regular processo administrativo tributário, observado o princípio do contraditório, constando todos os elementos que comprovem o serviço especializado praticado pela sociedade e sua organização; não bastando à análise do contrato social e declaração cadastral".

A publicação dessa súmula ou súmulas tem a inegável utilidade de permitir aos menos leigos mostrar seus erros e incongruências.

Quanto ao nº 3, que trata de sócio profissional e sócio comerciante, em sociedade por quotas de responsabilidade limitada, é óbvio que não se enquadra, por não ser uniprofissional.

Quanto ao item 4, que se refere a sociedades civis por quotas de responsabilidade, seja isso o que for, é importante assinalar que, após o Código Civil de 2002, as sociedades civis passaram a chamar-se sociedades simples, reguladas nos arts. 997 e segs. do novel Código Civil. As sociedades simples, bem como todas as demais sociedades de pessoas (empresárias ou não empresárias), são todas sociedades por quotas (já as sociedades anônimas são sociedades por ações).

Todas as sociedades por quotas, inclusive as sociedades de advogados, constituem-se em sociedades por quotas de responsabilidade. Veja-se o exato teor da lei:

"Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará:

[...]

IV - a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la;"

"Art. 998. Nos trinta dias subsequentes à sua constituição, a sociedade deverá requerer a inscrição do contrato social no Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede."

"Art. 1.007. Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas."

Essa regra vale para todas as sociedades de pessoas (que seguem o modelo da sociedade simples - antiga sociedade civil) inclusive para as sociedades de advogados, que são sociedades simples, sujeitas ao modelo estabelecido nos arts. 997 e segs. do Código Civil. Portanto, o teor do item 4 é insubsistente, face ao expresso texto do item 6 que se segue.

Assim, o teor do item 5 também é incongruente, face ao disposto no art. 966, § único do Código Civil:

"Art. 966. [...]

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa"

Em brilhante Acórdão, datado de 31/1/2008 (Apelação 724.080-5/1-00 - voto 10704), o Des. Silva Russo destacou:

"Assim é, porque os serviços oftalmológicos aos quais se dedica a autora, mencionados no seu contrato social (fls 13) e referidos na informação de fls 54 da própria apelante, dada a especialidade, só podem ser realizados pessoalmente pelos sócios da firma, ou profissionais com especialização equivalente - médicos - e, pois, sob sua responsabilidade pessoal, daí o cabimento da aplicação da regra especial (art. 9º, §§1º e 3º, do Decreto-lei 406/68), que se destina exatamente a essas situações, ou seja, sociedades em que os serviços são prestados sempre sob a responsabilidade dos profissionais da respectiva especialidade, ainda que se trate de pequena empresa - uma clínica oftalmológica - pois que aqui, de empresa de grande porte não se está a falar.

A constatação indicada à fls. 54 revela, na verdade, que as auxiliares fazem - efetivamente, como é usual - a preparação do paciente para a consulta, ou exame, os quais, além dos diagnósticos e prescrições só podem ser realizados pelos médicos habilitados, dada a natureza dos serviços prestados e sob a responsabilidade deles, pelos respectivos resultados, nada indicando eventual usurpação de funções, o que, em princípio, seria uma infração ética, irrelevante para fins tributários, sem prejuízo de uma melhor apuração, em sede própria, para outras finalidades."

Assim é que a remissão no item 6 ao art. 17 do Estatuto da Advocacia não faz diferir a sociedade de advogados de outras sociedades profissionais reguladas por leis próprias, como os médicos, engenheiros, contadores, agentes da propriedade industrial, economistas e tantos outros que se submetem a normas idênticas ou similares à do art. 17 da lei 8.906/94, que dispõe que "além da sociedade, o sócio responde subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que possa incorrer."

É de se estranhar tanta ignorância por parte da Municipalidade e seus órgãos (como o Secretário Municipal de Negócios Jurídicos). Estariam de boa-fé?

Permito-me transcrever aqui o final de artigo que publiquei na Revista de Direito Mercantil 151/2, p. 12:

Se todo o acima exposto é tão claro como parece, por que o poder público interpreta a lei de maneira canhestra e, é óbvio, em seu benefício?

Lembro-me que um assessor do então Presidente Jânio Quadros havia lhe dito que a instituição de certo empréstimo compulsório era ilegal. A resposta do Presidente foi no sentido de que a prática demonstrava que apenas pequena porcentagem dos contribuintes iria a Juízo e os demais pagariam sem discutir.

Assim, a título de encerramento deste ensaio, quero transcrever trechos de artigo publicado em O Estado de São Paulo de 9/1/2010 pelo lúcido advogado Onofre Carlos de Arruda Sampaio:

"O que temos presenciado, inúmeras vezes, são partes em processos administrativos, cíveis e criminais, terem de chegar até o Supremo Tribunal Federal para conseguir que lhes seja devolvido o respeito aos seus direitos e garantias individuais, negados por autoridades pressurosas em fazer justiça a seu modo e vezo, sem observância das devidas cautelas, que a Constituição e as leis exigem e pelas quais os magistrados devem zelar. (...)

O que há para temer é o sempre suspeito excesso persecutório, aquele que desborda e precisa que os direitos e garantias individuais sejam reduzidos para poder se consumar. (...)

Quando se trata de assegurar direitos e garantias individuais não há, nem pode haver, zelo que seja excessivo, pois é exatamente nas situações em que qualquer cidadão se vê na contingência de ter de enfrentar o uso abusivo da poderosa máquina do Estado que esses direitos e garantias individuais assumem a sua relevância plena".

No entanto, a conclusão final que se impõe consiste na constatação da completa ignorância do direito de empresa (como nos primórdios do Código Comercial Napoleônico), talvez pela notória falta de professores de direito comercial nas Faculdades de Direito, ou pelo fato de o Código Civil de 2002 ainda não ter sido completamente deglutido pelo Poder Público.

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*Newton Silveira é sócio do escritório Newton Silveira, Wilson Silveira e Associados Advogados











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