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O federalismo e o

O federalismo e o "discurso de domingo" no Supremo Tribunal Federal

A situação mais grave de desrespeito ao federalismo na jurisprudência consiste no exame das competências legislativas de cada ente.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Atualizado em 29 de janeiro de 2013 12:01

O princípio federativo, inscrito logo no art. 1º da Constituição Federal, foi alçado à condição de cláusula pétrea pelo legislador constituinte, de modo que sequer será objeto de deliberação pelo Congresso Nacional a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado. Trata-se, desse modo, de um postulado de altíssima relevância, que prevê e garante a autonomia da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, além de estabelecer uma relação de paridade entre eles.

Infelizmente, contudo, essa indiscutível realidade normativa não tem recebido o adequado tratamento pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio ministro Gilmar Mendes, em momento de importante reflexão, salientou que a ideia federativa, no Brasil, é um "discurso de domingo". Segundo aquele magistrado, falamos em favor da Federação aos domingos e trabalhamos contra ela durante a semana.

Nesse contexto, a Suprema Corte brasileira, no exame de diversas questões, tem firmando um posicionamento claramente contrário ao princípio federativo, restringindo-o demasiadamente e prestigiando de forma indevida a União Federal em detrimento dos Estados, Municípios e do Distrito Federal.

Em recente decisão, o Supremo reconheceu a competência legislativa da União Federal para dispor sobre o piso nacional dos professores da educação básica. Com isso, admitiu que simplesmente se impusesse, de forma indiscriminada, a todos os Estados e ao Distrito Federal, uma determinada remuneração mínima a ser paga aos seus professores. E, a partir desse entendimento, deixou completamente de lado a ideia de autonomia de cada um dos entes federados. O custo de vida local, as dificuldades orçamentárias, os problemas econômicos, a necessidade de alocação de recursos em outros setores da educação, tudo isso foi desconsiderado em benefício da outorga de competência normativa à União Federal, que determinará um piso único para vinte e sete entes federados com realidades completamente diversas.

Em outro pronunciamento, a Suprema Corte brasileira admitiu a validade de dispositivos do Código Tributário Nacional e da lei de execuções fiscais (ambas normas federais) que estabelecem a precedência dos créditos fiscais da União sobre os dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Normas com tal conteúdo e a própria decisão que lhes confere suporte são claramente contrárias à ideia de Federação, sobretudo na perspectiva de igualdade que deve pautar as relações entre os entes que a integram. Como se admitir, em um País que se qualifica como uma República Federativa, que um dos componentes do Estado Federado tenha tamanho privilégio em relação aos demais? Uma situação normativa dessa natureza, protegida pela jurisprudência do Supremo, constitui a própria negação ao princípio federativo, tão cuidadosamente positivado no Texto Constitucional.

Talvez a situação mais grave de desrespeito ao federalismo na jurisprudência da Suprema Corte brasileira consista no exame das competências legislativas de cada ente federado. Nesse ponto específico, é incrivelmente ampla a outorga de atribuições normativas à União, uma vez mais em detrimento dos demais entes, sobretudo os Estados e o Distrito Federal.

Cumpre enfatizar, a tal respeito, que o Texto Constitucional brasileiro seguiu a linha da Constituição norte-americana, cuja Décima Quarta Emenda prevê a ideia de enumerated powers. Nesse sentido, os temas que se inserem na competência legislativa da União são aqueles expressamente previstos na Constituição. Todo o resto recai no âmbito de atribuições dos Estados e, no Brasil, também dos Municípios. A Constituição brasileira, diferentemente de sua congênere nos Estados Unidos, ainda foi bastante generosa com a União, firmando um rol de competências privativas extremamente amplo e impedindo os demais entes de legislarem sobre um grande número de temas. Basicamente, tudo aquilo que seja mais relevante e transcenda o interesse local, como relações trabalhistas, direito processual, direito penal, direito de família, contratos, etc., é da competência da União. Quanto ao resto, vale a regra da generalidade, reconhecendo-se a atribuição da União para tratar de temas gerais, enquanto aos Estados, Distrito Federal e Municípios é dado normatizar questões específicas de interesse local.

Não bastasse a amplíssima competência normativa outorgada pela Carta Constitucional à União, o Supremo Tribunal Federal tem sido extremamente rigoroso quando do exame de normas estaduais e distritais que tratam dos mais variados temas. Em diversos julgamentos, a Corte tem declarado a inconstitucionalidade de leis emanadas dos Estados e do Distrito Federal ao fundamento de que teriam elas invadido a competência da União para tratar da matéria posta na norma.

Eis alguns exemplos que podem extraídos de várias decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. O Distrito Federal não pode legislar sobre informações que devem ser discriminadas nas contas telefônicas, sobre critérios de outorga de diplomas de conclusão de nível médio nas escolas locais, sobre a gratuidade de pontos adicionais de TV por Assinatura ou sobre a disponibilização, para os consumidores, de informações sobre juros e rendimentos de aplicações financeiras. Este mesmo ente federado não pode editar um Decreto restringindo a participação, em licitações públicas, de empresas que discriminem na contratação de sua mão-de-obra. O Rio Grande do Sul não pode instituir, no âmbito da administração pública local, a aquisição preferencial de softwares livres. Este mesmo Estado também não pode definir o conceito de pesca artesanal. O Amapá, Santa Catarina, Distrito Federal, Rio Grande do Norte e São Paulo não podem legislar a respeito da proibição de cobrança de assinatura básica pelas companhias telefônicas.

Percebe-se, pelos variados exemplos acima trazidos, que o Supremo Tribunal Federal tem retirado do âmbito de competência normativa dos Estados e do Distrito Federal, e entregado à União Federal, matérias que são claramente de interesse local e que foram legitimamente outorgadas, pelo legislador constituinte, aos Estados, ao Distrito Federal ou até mesmo aos Municípios. Em muitos casos, a simples existência de uma lei federal sobre o tema serve de justificativa para reconhecer-se que compete à União legislar sobre ele. Não se verificam, de outro lado, decisões declarando a inconstitucionalidade de normas federais pela usurpação da competência dos demais entes federados. É como se o Texto Constitucional tivesse dado carta branca ao legislador federal para tratar do que bem entendesse, à revelia das competências outorgadas aos entes locais.

Claro está, nesse contexto, que a ideia de Federação não tem recebido o tratamento apropriado pela Corte Constitucional brasileira. Já é tempo de o Supremo Tribunal Federal deixar de lado o discurso dominical e prestigiar um dos mais importantes princípios da Constituição da República.

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* Marcelo Cama Proença Fernandes é doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), é Procurador do Distrito Federal e integrante do escritório Proença Fernandes Advogados

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