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O judiciário, o nepotismo e a justiça

O Conselho Nacional de Justiça decidiu que é inconstitucional a nomeação de parentes de juízes para cargos de confiança ou de função gratificada mantidos pelos tribunais brasileiros. Considerou que tal conduta viola o princípio da moralidade administrativa por se tratar de nepotismo, assinalando o prazo de noventa dias para que se procedessem as exonerações.

sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Atualizado em 16 de novembro de 2005 08:25


O judiciário, o nepotismo e a justiça


Sérgio Roxo da Fonseca*


O Conselho Nacional de Justiça decidiu que é inconstitucional a nomeação de parentes de juízes para cargos de confiança ou de função gratificada mantidos pelos tribunais brasileiros. Considerou que tal conduta viola o princípio da moralidade administrativa por se tratar de nepotismo, assinalando o prazo de noventa dias para que se procedessem as exonerações.


A imprensa noticiou que vinte e sete corregedores da Justiça, reunidos em Maceió, em 11.11.2005, repudiaram a decisão do CNJ. Sustentam que o reconhecimento de nepotismo na nomeação de parentes para cargo de confiança depende de definição legal. Estão cheios de razão.


Se considerada a elevada composição do Conselho, como as importantes questões a ele atinentes, conclui-se que o nepotismo é uma grave doença do Judiciário. Não é. Hoje em dia são incomuns os casos registrados. Ainda quando fossem muitos, essas nomeações não espelham nepotismo. Não há lei que defina a nomeação para cargos de confiança como nepotismo. Basta ver as nomeações de parentes realizadas pelo Governador Franco Montoro e pelo Presidente Fernando Henrique. A decisão, sobre atingir inconvenientemente a imagem de todo o Judiciário, infelizmente foge dos limites do sistema constitucional.


Há três funções estatais: a função legislativa, a jurisdicional e a administrativa. Da função legislativa surge o direito novo, dado que ninguém é obrigado a submeter-se a uma ordem que não tenha raiz numa lei. Pela função jurisdicional, o Estado revela qual é o direito que se aplica ao caso concreto conflituoso. Aquilo que nem é função legislativa e nem jurisdicional, por exclusão, é função administrativa, segundo a lição do argentino Gordillo.


Os membros do CNJ não têm poder legiferante porque não são titulares de representação popular já que não foram eleitos pelo povo para tanto. Por razões semelhantes não são magistrados porque não têm competência jurisdicional. Logo o CNJ é órgão administrativo. É bem verdade que nesses tempos bicudos, os Conselhos deixaram de aconselhar e passaram a mandar a torto e a direito. Exemplos de Conselhos legislando e julgando infelizmente multiplicam-se demonstrando a fragilidade do sistema constitucional. Mas é necessário opor resistência.


O Judiciário organiza-se por coordenação, não existindo nele qualquer espécie de subordinação. Um juiz em início de carreira não está subordinado a nenhum outro, nem mesmo ao presidente do Supremo Tribunal Federal.


Ao contrário, a Administração pública estrutura-se por critérios hierárquicos, âmbito no qual o superior tem o poder de expedir ordens para o subordinado cumprir.


Se o CNJ é um órgão administrativo tem ele o poder de expedir ordens para que seus subordinados as executem. Daí se deduz que se o CNJ tem o poder para dar ordens administrativas para o Judiciário executar é porque se tornou superior hierárquico da Magistratura. O fato de a Constituição outorgar-lhe competência para assinalar prazo para o cumprimento de suas ordens, demonstra que o sistema ruiu porque o CNJ é um órgão administrativo e o Judiciário é um poder.


Sabe-se que duas são as principais áreas administrativas do Judiciário. Uma trata de seus serviços internos. Outra se refere à jurisdição voluntária, que não se trata de função jurisdicional, mas, sim, de administração de interesses individuais. Se o CNJ tem poder para expedir ordens administrativas, indaga-se, pode interferir na nomeação e promoção de juízes ou nas decisões proferidas em sede de jurisdição voluntária?


A perplexidade não reside apenas aí. Infelizmente vai mais longe.


O presidente do Supremo Tribunal Federal é o presidente do CNJ. Na qualidade de presidente do CNJ controla administrativamente o Supremo. Na qualidade de presidente do Supremo é controlado pelo CNJ. O órgão controlador é controlado pelo órgão por ele controlado.


O mesmo problema surgirá quando alguém propuser uma ação para discutir a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de uma decisão do CNJ. A ação deverá ser ajuizada perante o Judiciário. Se for assim, o CNJ, que controla o Judiciário e o submete às suas ordens, é, por sua vez, controlado pelo Judiciário que também o submete às suas ordens. Tal receita não pode dar certo. Qual é a independência do juiz de Patrocínio Paulista ou de Patis de Alferes, sabedores que a Administração põe e dispõe sobre a nomeação de juízes? E que até mesmo pode interferir em processos judicialiformes? Estes desaforos à lógica já ocorreram no passado recente com grandes perdas para o mundo jurídico. Vamos insistir?


O CNJ tem o dever de trabalhar pela autonomia do Judiciário, no entanto, o seu corregedor tem o estranho poder de requisitar juízes. "Requisitar" significa convocar subordinado para cumprir tarefa diversa de sua função habitual. A afirmação contém um absurdo. Juízes não podem ser requisitados. Por ninguém. Eles gozam de inamovibilidade de cargo e função. É flagrantemente inconstitucional a Constituição ao atribuir poderes bizarros para alguém requisitar juízes. Ela mesma proíbe a conduta !


Se a ordem dada pelo CNJ para exoneração dos parentes dos magistrados valer um dedal de mel coado, a Administração, dentro do sistema, passa a ser órgão hierarquicamente superior da Magistratura, retirando do Judiciário a qualidade de poder soberano da República, ao delírio do sistema constitucional em vigor.
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*Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo, professor das Faculdades de Direito da UNESP e do COC e advogado.





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