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Programado para matar, por Eudes Quintino

Programado para matar

A população exige do poder público a prática de atos preventivos para a preservação da saúde, levando-se em consideração que é direito de todos e dever do Estado, conforme determinação constitucional.

domingo, 17 de agosto de 2014

Atualizado em 15 de agosto de 2014 14:52

Uma empresa britânica desenvolveu inédita tecnologia consistente em criar machos transgênicos do mosquito Aedes aegypti, com linhagem geneticamente modificada. A técnica visa produzir mosquitos machos com dois genes diferentes do mosquito original. As fêmeas que cruzarem com estes espécimes modificados gerarão filhotes que não atingirão a idade adulta e, consequentemente, pela projeção científica, será consideravelmente reduzida a população dos mosquitos transmissores da dengue. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTBio) aprovou a liberação comercial do mosquito transgênico, mas cabe ainda à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) emitir autorizações e registros para o uso em campanhas de saúde.

A intervenção do homem no mundo em que vive deve, primordialmente, com base não só no mérito científico, como também no imperativo moral, apresentar-se com intenção benfeitora para que todos os procedimentos sejam voltados para o seu bem e de tudo que o cerca, mantendo sempre um justo equilíbrio entre a ciência, a natureza e os benefícios propostos. "O mérito técnico ou instrumental, adverte Stepke, se refere a obter resultados desejados de modo concreto. O mérito científico faz alusão à expansão potencial do conhecimento que uma técnica ou tecnologia permite. O mérito social permite avaliar a justiça e a equidade das intervenções"1.

A população exige do poder público a prática de atos preventivos para a preservação da saúde, levando-se em consideração que é direito de todos e dever do Estado, conforme determinação constitucional. Daí que, para cumprimento de sua missão, o Estado disponibiliza vacinas para erradicação de doenças como o sarampo, paralisia infantil, gripe suína e outras. Porém, com relação à dengue há somente mobilização nacional para seu controle que, conforme se constata pelo número progressivo de vítimas, não atinge os objetivos propostos, em razão da própria omissão dos cidadãos.

Assim, nesta lacuna assistencial, verifica-se uma situação que coloca em risco a saúde do homem e exige, com a urgência necessária, a busca de soluções para combater a moléstia até então em ascendência. Lançar mão da criação de machos transgênicos, projeto que envolve organismos geneticamente modificados, parece ser uma proposta adequada com base na proporcionalidade e também no princípio da beneficência da Bioética, que recomenda o malum non facere e o primum non nocere para a proteção da vida e da saúde humana, animal e vegetal, além da observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente. A própria Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), permite tal iniciativa, desde que atendidos os requisitos legais estabelecidos. O importante é procurar fazer o bem, com uma fundamentação idônea e de aceitação e aprovação popular.

É indiscutível que toda pesquisa carrega uma carga de risco, justamente por buscar o aperfeiçoamento de um procedimento que tende a extirpar doença que coloque em risco coletivo a saúde humana. Pode até ocorrer um desequilíbrio ecológico ou até mesmo carregar um novo tipo de doença, apesar de terem sido realizados testes satisfatórios em região com alto quadro epidêmico da dengue. Mas é um risco a ser enfrentado. O dilema ético a ser discutido é que, com a Biologia sintética, os mosquitos deixam de ser originários de uma unidade geneticamente organizada e passam a ser produzidos artificialmente, até mesmo na sua capacidade de reprodução. Justifica-se, no caso, a produção de novas formas de seres vivos se o destinatário for a saúde do homem. A interferência tem cabimento sendo o homem a causa final.

Assim, a realidade que se apresenta recomenda a prática anunciada. Pode-se comparar, guardadas as proporções, mas em razão da urgência, com o quadro que afeta a África pelo surto do vírus ebola, febre hemorrágica que causa a morte. Os EUA testarão uma vacina experimental em humanos, que até então foi aplicada somente em macacos, sem a aprovação do FDA, mas com o placet do Comitê de Ética da Organização Mundial da Saúde, que concluiu "ser ético oferecer tratamentos - cuja eficácia ainda não foi demonstrada, assim como os efeitos colaterais - como potencial terapia ou de caráter preventivo".

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1Stepke, Fernando Lolas. Bioética e medicina - aspectos de uma relação. Tradução: Gilmar Saint Clair Ribeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 108.

2Jornal Folha de São Paulo, edição de 13 de agosto de 2014, A-10.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.




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