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A maturidade do mercado brasileiro de valores mobiliários

Marcelo Godke Veiga

Notícias recentes anunciam termos alcançado certa maturidade em nosso mercado de valores mobiliários. De fato, com a decisão de a Renner tornar pulverizado o seu controle acionário, parece ter-se iniciado uma nova era em nosso mercado de capitais.

sexta-feira, 10 de março de 2006

Atualizado em 9 de março de 2006 10:43


A maturidade do mercado brasileiro de valores mobiliários


Marcelo Godke Veiga*

Notícias recentes anunciam termos alcançado certa maturidade em nosso mercado de valores mobiliários. De fato, com a decisão de a Renner tornar pulverizado o seu controle acionário, parece ter-se iniciado uma nova era em nosso mercado de capitais. Espera-se que, assim, esta tendência continue de maneira a desenvolver o chamado "market for corporate control" em operações que não sejam as meramente privadas, como se tem observado até então. A Embraer dá indícios de que trilhará o mesmo caminho, o que pode ser muito benéfico.

O controle acionário das empresas, mesmo as de capital aberto, é normalmente adquirido "privadamente"1, ou seja, sem as chamadas "tomadas hostis" tão vistas no mercado norte-americano. No Brasil tais operações de tomada hostil são dificilmente vistas, principalmente pela falta de pulverização do controle acionário das empresas.

Não se defende, aqui, a adoção pura e simples do modelo utilizado nos Estados Unidos. Mero "transplante" de um sistema utilizado em um país em outro pode até mesmo ser mais prejudicial do que benéfico. No entanto, por um lado, parece-nos que o desenvolvimento do mercado de capitais nos Estados Unidos permite a captação de enormes volumes de recursos a juros mais baixos do que os praticados por instituições financeiras em geral. Isso pode ser benéfico tanto para as empresas como para o desenvolvimento econômico em geral.

Por outro lado, as empresas americanas de capital aberto (com controle acionário disperso em um grande número de pequenos investidores) são constantemente monitoradas pelo mercado. Este monitoramente faz que as empresas busquem resultados cada vez melhores, caso contrário o valor de suas ações poderá cair, o que as torna alvo fácil em uma tomada hostil. Em tese, tal dispersão acionária leva as empresas a terem melhores resultados econômicos em geral2.

Lembre-se que, com a tomada hostil de uma empresa, principalmente nos moldes norte-americanos, uma das primeiras tarefas dos novos controladores é a de providenciar a troca do time de administradores, com a utilização dos instrumentos de governança corporativa disponíveis na legislação em vigor. Por isso, o "market for corporate control" de empresas de capital aberto pode servir como um ótimo incentivo para que os administradores evitem resultados medíocres ou negativos nas empresas que gerenciam.

Se esta tendência - que começa a ser delineada em nosso mercado de capitais - se concretizar, várias questões deverão ser suscitadas em nosso direito. Isso foi o que ocorreu nos Estados Unidos.

Durante a década de 80 nos Estados Unidos houve intensa atividade de tomadas hostis, motivada principalmente pelo aquecido mercado de "junk bonds", ou "high yield bonds" que, em grande parte, financiaram tais operações. Com dinheiro disponível, as tomadas hostis foram extremamente caras, de uma banda, mas transferiram bastante riqueza aos acionistas, de outra banda.

Esta intensa atividade serviu como campo fértil para que dispositivos jurídicos fossem criados, na tentativa de dificultar as tomadas hostis e para gerar riqueza para os acionistas. Advogados atuantes no mercado de capitais desenvolveram alguns dispositivos societários que se tornaram famosos, tais como os "poison pills", os "shark repellents", os "dead hand poison pills", "white knights"3. Uma vez colocados em prática, tais dispositivos normalmente tornam mais caras, para os adquirentes, as operações de tomada hostil (mas geram mais riqueza para os acionistas). Como via de regra, os referidos dispositivos não impediam as tomadas pura e simplesmente, mas forçavam os adquirentes oferecer mais dinheiro aos acionistas, ou então passar a negociar a compra. De qualquer forma, efetuada a operação, o que normalmente ocorria era certa transferência de riqueza aos acionistas (maior do que nos casos em que se decidiu por não concluir a operação de compra).

Vários destes dispositivos acabaram por ser discutidos em juízo, principalmente na Court of Chancery, do estado americano de Delaware4.

Além dos mecanismos acima mencionados, as empresas que passaram por processo de tomada hostil também utilizaram como forma de defesa alguns outros, bastante criativos. Com efeito, em um célebre caso houve o resgate de ações da própria empresa, mas com a exclusão de um dos acionistas (justamente o que tentava a tomada hostil)5.

Da mesma forma que os tribunais americanos - notadamente a Court of Chancery, do pequeno estado de Delaware - definiram o que seria legal ou ilegal como forma instrumento de defesa em uma tomada hostil, delineou-se muito do que é aplicado corriqueiramente pelos especialistas em finanças empresariais. Em um caso clássico e muito estudado nas faculdades de direito nos Estados Unidos, a referida Corte decidiu que se há mais de um possível adquirente para a compra das ações de uma empresa, as negociações não podem ser terminadas com ambas até que se chegue à maior oferta, caso contrário os administradores podem estar descumprindo seus deveres fiduciários em relação aos acionistas da empresa6.

Vários outros casos poderiam, ainda, ser citados para demonstrar que as cortes norte-americanas tiveram importante papel na delineação das estratégias utilizadas nas tomadas hostis daquele mercado. Note-se, no entanto, que um dos motivos de a Court of Chancery ser uma das mais solicitadas é, justamente, a sua especialização em direito societário e do mercado de capitais. Seus juízes são notoriamente conhecedores do assunto, com vasta e comprovada experiência. Por outro lado, muitos desses juízes possuem formação em economia e finanças e são profundos conhecedores dos meandros do mercado de capitais. É bastante difícil encontrar uma decisão que não leve em conta os possíveis efeitos econômicos aos acionistas e à população em geral7.

A questão a ser perguntada agora é: Está o Brasil preparado para o início do seu "market for corporate control" de empresas de capital aberto e controle acionário disperso? Um mercado que começa a demonstrar maturidade em suas operações, em algum momento, passará por situações em que deverá demonstrar o mesmo amadurecimento para resolver conflitos que possam surgir entre acionistas majoritários, minoritários e administradores. Tais conflitos podem incluir também aqueles que ainda não são acionistas, mas almejem fazer uma tomada hostil.

Nossa legislação, por exemplo, já regulamenta as ofertas públicas para aquisição de ações, nos moldes da Williams Act. De fato, a Lei das Sociedades Anônimas, nos artigos 254-A e 257, trata deste assunto, bem como a Instrução 361 da CVM8. Mas, uma vez criado este "market for coporate control" para empresas de capital aberto e de controle acionário disperso, torna-se provável que operações como as vistas nos EUA na década de 80 venham a ocorrer em nosso mercado.

O que, no entanto, irá demonstrar nossa maturidade será o posicionamento e a seriedade que os juízes deverão demonstrar ao decidir os casos trazidos ao judiciário. É fato notório que há muita reclamação sobre os problemas enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro. Mas, se isso é verdade aqui, também pode ser verdade em qualquer lugar do mundo.

As soluções existem e podem ser alcançadas. O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, talvez até por prever que possamos estar nos aproximando de uma nova "era" em nosso mercado de capitais, já se adiantou e criou Varas especializadas em Direito Empresarial. A Bovespa, como grande incentivadora do desenvolvimento do nosso mercado acionário, criou a chamada Câmara de Arbitragem para o Mercado, e tornou obrigatória a sua utilização para que sejam dirimidas disputas para determinadas empresas nela listadas, por meio de instrumentos contratuais e de auto-regulamentação.

O que não deve ser feito é nos acanharmos, pois esta é uma enorme e bem vinda oportunidade para que possamos atingir maiores níveis de desenvolvimento, incentivando o crescimento econômico por meio do nosso mercado de capitais.

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1 Mesmo que as ações sejam negociadas em bolsa, não são, via de regra, utilizadas tomada hostis para se chegar ao controle acionário de uma empresa.

2 Não se pode esquecer, no entanto, que este monitoramento constante e a busca por resultados imediatos levou a práticas pouco éticas e até mesmo ilícitas, ocasionando uma série de escândalos corporativos nos Estados Unidos. O exemplo clássico e provavelmente o mais citado é aquele protagonizado pela empresa norte-americana Enron, o qual envolveu a criação de uma complexa estrutura de sociedades de propósito específico, a permitir a possível a utilização de expedientes de legalidade duvidosa, com capacidade de esconder dívidas assumidas pela empresa.

3 Em 1968 já havia sido aprovado o Williams Act, que regulamenta as ofertas públicas para aquisição de ações. Tal instrumento, no entanto, serviu mais como um "disclosure statute" do que propriamente um instrumento para defesa contra tomadas hostis.

4 Alguns dos casos acabaram se tornando tão celebres, que viraram filmes, tal como o da aquisição da RJR Nabisco.

5 Unocal Corp. v. Mesa Petroleum Co. 493 A.2d 946 (Del. 1985). Neste caso, o conselho de administração resolveu fazer o resgate das ações da empresa após decidir que a oferta feita pela Mesa Petroleum não era adequada. Este caso ficou célebre pois confirmou a "business judgment rule", na qual uma decisão negocial sadia não pode ser substituída pela vontade de um juiz.

6 Revlon, Inc. v. MacAndrews & Forbes Holdings, Inc. 506 A.2d 173 (Del. 1986). Neste caso, a Court of Chancery decidiu que os conselheiros descumpriram seus deveres fiduciários ao assinar um "no-shop agreement", o qual proibia a negociação com outros possíveis compradores e, de fato, havia um terceiro interessado em adquirir as ações da Revlon, mas as negociações estariam impedidas por conta do referido acordo. Segundo a decisão da Corte, o que deveria ter sido feito pelos conselheiros era a busca do comprador disposto a pagar mais.

7 Também é comumente mencionado que um outro motivo de se normalmente escolher a Court of Chancery (além de sua notória especialização), seria a sua celeridade. Em questão de alguns meses é possível um caso ter sido julgado em primeira e segunda instância, e esta rapidez pode ser extremamente positiva em uma atividade na qual o "timing" é tão essencial quanto a operação em si.

8 Não se pretende, neste artigo, analisar tais instrumentos jurídicos de regulamentação.
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*Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados









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