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Fosfoetanolamina, a droga do câncer, por Eudes Quintino

Fosfoetanolamina, a droga do câncer

O homem, em determinados momentos, apega-se a crenças e a todo tipo de esperança que possa proporcionar a cura de uma grave doença.

domingo, 25 de outubro de 2015

Atualizado em 23 de outubro de 2015 13:12

O laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), campus de São Carlos, produziu uma substância que foi inicialmente divulgada boca a boca, mas com o engrossamento das informações, ganhou as redes sociais que se encarregaram de alardear os benefícios para a cura de diversos tipos de cânceres. Indiscutivelmente, para aqueles que vivem os problemas da doença e sempre se agarram a uma esperança de cura, a procura intensificou e a limitada produção não tinha como atender os interessados.

Diante da dificuldade, várias ações judiciais foram intentadas com a finalidade de obrigar a Instituição a produzir a fosfoetanolamina sintética e entregá-la gratuitamente à população que a reclamava, contando até mesmo com decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo e do próprio Supremo Tribunal Federal, prolatada essa pelo ministro Edson Fachin.

Referida substância, que não pode ser rotulada como remédio, foi severamente contestada por não ter sido submetida aos protocolos científicos e nem mesmo testada em humanos para avaliar sua eficácia, de acordo com o regramento imposto pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Não se pretende aqui discutir se a substância experimental traz benefícios ou não para os humanos. A intenção é justamente demonstrar que a notícia de um fato que envolve interesse geral, inicialmente com repercussão restrita, atingindo somente um número reduzido de doentes, pode ganhar corpo e como uma bolha cresce de forma avassaladora, provocando, em consequência, o convencimento de grande parte da população que passou a acreditar na cura da indesejável moléstia.

Não só as pessoas. A própria Justiça, abraçando a bandeira e a convicção popular, no âmbito de sua discricionariedade e contrariando as normas técnicas a respeito da homologação de medicamentos, assim como a opinio communis doctorum, passou a expedir ordens judiciais para a fabricação continuada da substância experimental.

O argumento do convencimento judicial residiu na possibilidade de proporcionar ao doente um ganho que fosse satisfatório à sua saúde, uma vez que várias tentativas terapêuticas ou invasivas foram realizadas, sem qualquer sucesso. Assim, a intenção da Justiça era a de conceder a chance de obtenção do medicamento, talvez a última, em razão da reiterada manifestação popular. Muitas vezes o reclamo popular fala mais alto do que as regras elementares.

Pode-se comparar, guardadas as proporções, mas em razão da urgência, com o quadro que afetou a África quando do surto do vírus ebola, febre hemorrágica que causa a morte. Os EUA testaram uma vacina experimental em humanos, que até então tinha sido aplicada somente em macacos, sem a aprovação do FDA, mas com o placet do Comitê de Ética da Organização Mundial da Saúde, que concluiu "ser ético oferecer tratamentos - cuja eficácia ainda não foi demonstrada, assim como os efeitos colaterais - como potencial terapia ou de caráter preventivo"1.

A medicina procura integrar seus conhecimentos científicos e tecnológicos a serviço do paciente, porém em razão da própria incerteza que a cerca, por maior que tenha sido seu avanço e conquistas, ainda não conseguiu vencer muitas doenças, frustrando de certa forma a humanidade.

Assim, se for apresentada determinada droga, como resultado de pesquisa de uma Instituição de referência, como é o caso, inevitavelmente chamará a atenção da população, principalmente quando acompanhada de resultados satisfatórios relatados por pacientes oncológicos. E a população passa a agir de forma apressada e até mesmo desnorteada para dela fazer uso, não se importando com ausência de estudos clínicos com a chancela da ANVISA, que comprovem eventual benefício e até mesmo malefício.

O paciente não pode ser considerado como resultado somente de alterações físico-químicas que norteiam seus parâmetros somáticos, até então desvendados. Conjugam-se também os aspectos psicossociais, que produzem muitas vezes ações mais benéficas. O homem, em determinados momentos, apega-se a crenças e a todo tipo de esperança que possa proporcionar a cura de uma grave doença. Diz o médico italiano Bobbio, com a segurança que lhe é peculiar, que "se alguém se cura confiando em medicinas alternativas, argumenta-se que o resultado depende da sugestão ou do efeito placebo que, não esqueçamos, também influencia grande parte dos nossos sucessos"2.

É interessante relembrar nesta oportunidade o caso mundialmente conhecido envolvendo José Meister, criança de nove anos, que foi mordida catorze vezes por um cão com a doença de raiva, que provocava a morte, fato acontecido no ano de 1885. A mãe suplicou a Louis Pasteur, químico, que tinha desenvolvido uma vacina antirrábica, porém só a testou em animais e sabia do perigo em utilizá-la em humanos. Além do que não era médico e não tinha autorização para ministrar a droga. Porém, em razão da urgência, arriscou e o paciente recebeu a primeira das 12 injeções antirraiva, vindo a sobreviver. Assim foi descoberta a vacina, porta de entrada para a medicina moderna.

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1 Jornal Folha de São Paulo, edição de 13 de agosto de 2014, A-10.

2 Bobbio, Marco. O doente imaginado: os riscos de uma medicina sem limites. Tradução Mônica Gonçalves. São Paulo: Bamboo Editorial, 2014, p. 236.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, Reitor da Unorp/São José do Rio Preto.






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