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Coisa julgada e sentença arbitral

A sentença arbitral de mérito, ainda que tenha caráter parcial, faz coisa julgada material.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Atualizado em 29 de julho de 2016 10:57

1. A coisa julgada material e decisão de mérito.

Coisa julgada material (auctoritas rei iudicatae) é a qualidade que torna imutável e indiscutível o comando que emerge da parte dispositiva da sentença de mérito não mais sujeita a recursos. Somente ocorre se e quando a sentença de mérito tiver sido alcançada pela preclusão, isto é, a coisa julgada formal é pressuposto para que ocorra a coisa julgada material, mas não o contrário.1

A coisa julgada material é um efeito especial da sentença transitada formalmente em julgado.2

A segurança jurídica, trazida pela coisa julgada material, é manifestação do estado democrático de direito (CF 1.º caput). Entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo segundo (justo possível), que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada material. Descumprir-se a coisa julgada é negar o próprio estado democrático de direito, fundamento da república brasileira.3

A lei não pode modificar a coisa julgada material (CF 5.º XXXVI). Da mesma forma, nem a CF pode ser modificada para alterar-se a coisa julgada material, porque essa imodificabilidade é direito constitucional fundamental, vale dizer, cláusula pétrea que não pode ser alterada por emenda constitucional do poder constituinte derivado (CF 1.º caput e 60 § 4.º). Igualmente, nem juiz nem o árbitro podem alterar a coisa julgada.4

Somente a lide (pretensão, pedido, mérito) é acorbertada pela coisa julgada material, que a torna imutável e indiscutível, tanto no processo em que foi proferida a sentença, quanto em processo futuro. Somente as sentenças de mérito são acobertadas pela autoridade da coisa julgada; as de extinção do processo sem resolução do mérito são atingidas apenas pela preclusão (coisa julgada formal).5

A coisa julgada material é instrumento de pacificação social.6

Nos termos do CPC 487, há resolução de mérito: quando o juiz acolher ou rejeitar o pedido do autor; quando réu reconhecer a procedência do pedido; quando as partes transigirem; quando o juiz pronunciar a decadência ou a prescrição; quando o autor renunciar ao direito sobre que se funda a ação.

O objeto da coisa julgada material é a sentença de mérito.

Verifica-se o julgamento do mérito quando o julgador profere sentença acolhendo ou rejeitando o pedido, pronunciando-se pela procedência ou improcedência da pretensão (lide, objeto, mérito, pedido, objeto litigioso - Streitgegenstand), isto é, sobre o bem da vida pretendido pela parte.7

São de mérito as sentenças de procedência e de improcedência de pretensões deduzidas em ações de conhecimento:

a) meramente declaratórias (positivas ou negativas);

b) condenatórias (inclusive as inibitórias);

c) constitutivas (positivas e negativas).

O acórdão do STJ (CF 105 I i - EC 45/04) que julga ação de homologação de sentença estrangeira (inclusive a arbitral), quer acolhendo (decisão constitutiva), quer rejeitando (decisão declaratória) a homologação, é de conhecimento, razão pela qual é de mérito e fica acobertado pela auctoritas rei iudicatae.8

Não são de mérito e, portanto, não fazem coisa julgada as sentenças de extinção do processo sem julgamento do mérito nas condições do CPC 485.

2. A sentença arbitral e a coisa julgada.

A sentença arbitral, como é aplicação do direito ao caso concreto por juiz não estatal, é manifestação de atividade jurisdicional. A consequência disso é que se reveste da autoridade da coisa julgada material.

Pela sentença arbitral o juiz não togado escolhido pelas partes decide toda a controvérsia formada entre elas, cuja decisão tem força de coisa julgada. Esta sentença é acobertada pela coisa julgada material e tem, portanto, plena executividade, não mais necessitando de homologação pelo órgão jurisdicional estatal, como o exigia o sistema arbitral já revogado entre nós.

Julgado o mérito da demanda submetida ao juízo arbitral, ocorre a coisa julgada material independentemente de homologação da sentença arbitral pelo juízo estatal, sendo vedado a este último examinar novamente o mérito da causa.

A parte não terá interesse processual em ajuizar, perante o juízo estatal, a mesma ação, já julgada pelo juízo arbitral. Neste caso, o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito, por falta de condição da ação interesse processual (CPC 485 VI).

A coisa julgada é o efeito inerente à sentença de mérito como ato jurisdicional. As sentenças arbitrais possuem essa característica, impedindo que os assuntos articulados possam ser objeto de novo julgamento por um tribunal, seja arbitral ou judicial.9

3. Efeitos e funções da coisa julgada material.

A sentença de mérito transitada em julgado, isto é, acobertada pela autoridade da coisa julgada, possui efeitos dentro e fora do processo onde foi prolatada e, também, efeitos que se projetam para fora desse mesmo processo.

Há, portanto, duas espécies básicas de efeitos da coisa julgada:

I - efeitos endoprocessuais:

a) tornar inimpugnável e indiscutível a sentença de mérito transitada em julgado, impedindo o julgador de redecidir a pretensão;

b) tornar obrigatório o comando que emerge da parte dispositiva da sentença;

II - efeitos extraprocessuais:

a) vincular as partes e o julgador de qualquer processo (salvo quanto à independência das responsabilidades civil e penal, nas circunstâncias determinadas pela lei: CC 935) que se lhe seguir;

b) impossibilidade de a lide (mérito, pretensão), já atingida pela auctoritas rei iudicatae, ser rediscutida em ação judicial (ou arbitral) posterior, o que implica a probiação de a mesma ação - com os elementos idênticos: partes, causa de pedir e pedido - ser reproposta. Neste último caso, constitui a finalidade mesma da coisa julgada material opor-se a que se profira nova decisão sobre a matéria, no caso de ter sido ajuizada uma segunda ação.10

A coisa julgada material, portanto, exerce funções positiva e negativa.

Tendo havido a formação da coisa julgada material sobre determinada decisão (uma sentença arbitral, v.g.) duas são as tarefas que surgem para o julgador, que tem de exercê-las ex officio:

a) fazer valer a obrigatoriedade da sentença (princípio da inevitabilidade da jurisdição), ou seja, fazer com que as partes e eventuais terceiros atingidos pela coisa julgada cumpram o comando emergente da setença acobertada pela auctoritas rei iudicatae (função positiva);

b) fazer valer a imutabilidade da sentença e a intangibilidade da coisa julgada, impedindo que a lide por ela acobertada seja rediscutida (função negativa). O juiz ou árbitro tem o dever de ofício de, a limina iudicii, indeferir a petição inicial que reproduz ação idêntica anterior, resolvida por sentença de mérito transitada em julgado.11

Tendo em vista a função jurisdicional do árbitro, esta nova ação que reproduz anterior já decidida com a autoridade da coisa julgada pode ser tanto judicial ou arbitral. Assim, seria inválido o compromisso arbitral cujo objeto versasse sobre questão de mérito já anteriormente decidido pelo juiz togado ou por outro órgão arbitral.12

4. A formação da coisa julgada material em sentença arbitral. Limites objetivos e subjetivos.

A sentença arbitral de mérito que não sofrer impugnação, seja através de pedido de correção de erro material ou esclarecimento sobre eventual omissão, dúvida ou contradição, no prazo legal (ou pela via recursal interna eventualmente prevista pelas partes ou constante nas regras institucionais a que estiverem vinculadas), transita em julgado, produzindo efeitos que devem ser respeitados dentro os seus limites subjetivos e objetivos.13

Observe-se que a ação judicial contra a sentença arbitral não tem de natureza de recurso. Referida ação não se destina a propiciar o reexame do mérito da decisão, que, como assinalado, é irrecorrível.14

Assim, depois de escoada a oportunidade para a integração da sentença através dos embargos de correção e esclarecimento, sobrevém sobre a sentença arbitral de mérito o fenômeno da coisa julgada material.

A coisa julgada material formada a partir da sentença arbitral também respeita os limites subjetivos e objetivos próprios deste fenômeno jurídico.

Significa dizer que a coisa julgada material da sentença arbitral de mérito atua dentro de certos limites objetivos e subjetivos.

Do ponto de vista objetivo, a coisa julgada material é limitada à matéria constante da parte dispositiva da sentença, desde que se tenha observado o princípio da congruência entre pedido e sentença igualmente aplicável no âmbito da jurisdição arbitral. Sentença que decidiu fora, acima ou abaixo do pedido (extra, ultra ou infra petita), nessa parte, não faz coisa julgada.15

Os limites subjetivos seguem o mesmo norte disposto para a coisa julgada formada na jurisdição estatal: a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros (CPC 506).

5. Conclusão.

A conclusão, portanto, é que a sentença arbitral de mérito, ainda que tenha caráter parcial, faz coisa julgada material.

Para que ocorra o fenômeno da coisa julgada torna-se necessário que a sentença arbitral tenha, como é natural, sido notificada às partes.16

Verificados os requisitos necessários, a sentença arbitral beneficia-se, pois, inteiramente do regime do caso julgado regulado ordinariamente a legislação processual civil, sendo suscetível de execução nos tribunais estaduais nos mesmos termos de uma sentença judicial.

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1 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, p. 56.

2 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, p. 56.

3 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, p. 56.

4 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, pp. 56/57.

5 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, p. 57.

6 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.1, p. 57.

7 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.4, pp. 58/59.

8 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.4, p. 59.

9 José F. Merino Merchán e José M. Chillón Medina. Tratado de Derecho Arbitral, 3. ed., Madrid: Thomson Civitas, 2006, n. 3539, p. 1730.

10 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 16. ed., São Paulo: RT, 2016, coment. 12 CPC 502, pp. 1293/1294.

11 Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante, 16. ed., São Paulo: RT, 2016, coment. 13 CPC 502, p. 1294.

12 Carlos Alberto Carmona. Arbitragem e Processo - um comentário à Lei n. 9.307/1996, 3. ed., São Paulo: Atlas, 2009, coment. LArb 1.º, n. 11, pp. 56/57.

13 Paulo Issamu Nagao. Do Controle Judicial da Sentença Arbitral, (Coleção MASC - coord. Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe), v. II, Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, pp. 248/249.

14 Paulo Issamu Nagao. Do Controle Judicial da Sentença Arbitral, (Coleção MASC - coord. Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe), v. II, Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, pp. 249/250.

15 Nelson Nery Junior. Princípios no Processo na Constituição Federal - processo civil, penal e administrativo, 11. ed., São Paulo: RT, 2012, n. 4.15, p. 66.

16 Manuel Pereira Barrocas. Manual de arbitragem, 2. Ed, Coimbra: Almedina, 2013, n. 541, p. 520.

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*João Carlos Zanon é doutorando pela PUC/SP, mestre em Direitos Difusos e coletivos pela PUC/SP e sócio do escritório Nery Advogados.



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