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Julgamento Dilermando de Assis - Continuação do caso Euclides da Cunha

Um dos objetivos da defesa foi demonstrar que entre Dilermando e Euclides não havia nenhuma relação de dependência, nenhum vínculo que levasse à gratidão do militar pelo escritor.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Atualizado em 19 de outubro de 2016 10:19

Euclides da Cunha era portador de um temperamento explosivo, neurastênico de difícil adaptação aos seus deveres de homem casado com uma mulher jovem, plena de vida e sequiosa por atenção e afeto.

As suas preocupações estavam voltadas para a produção intelectual à interpretação do Brasil e de seu povo, em detrimento de suas obrigações como chefe de família e esposo.

Um fato ocorrido na juventude bem revela a impetuosidade e o voluntarismo de Euclides.

Como oficial do exército cultivava ideais republicanos e não se conformava com as imposições da Monarquia sobre o exército.

Quando da visita do Ministro da Guerra, Conselheiro Tomas Coelho, ao quartel no qual servia, Euclides ao invés de saúda-lo erguendo a sua espada, como todos os demais, atirou-a ao chão.

Após ser considerado portador de grave desequilíbrio mental, foi afastado do exército. Com a proclamação da República o cadete Euclides da Cunha foi reintegrado ao exército.

Foi grande a comoção provocada na sociedade pela morte de Euclides. Em um primeiro momento a imprensa divulgou o episódio como uma ação defensiva de Dilermando, contra a fúria do escritor, que sabia estar sendo traído.

A sua convicção baseava-se principalmente na ação deletéria das irmãs Ratto, que o insuflavam e instigavam à vingança de sua honra ultrajada, pela conduta da mulher e pela ingratidão de Dilermando, a quem abrigara por algum tempo em sua casa.

Dilermando, ao depor, procurou proteger Saninha negando o relacionamento amoroso, bem como afirmou que ela não estava na casa da Estrada Real, no dia dos fatos. Aproximava-se da casa com os filhos Sólon e Luiz.

Durante poucos dias, os jornais acreditaram na versão de Euclides. Logo mudaram de comportamento e passaram a atacá-lo e a considerar Saninha como uma mulher leviana e desprovida de escrúpulos.

Em um primeiro depoimento ela ateve-se a declarar uma relação de amizade quase maternal com Dilermando e Dinorah, em face da grande diferença de idade, dezessete anos.

No entanto, ao prestar novas declarações, desmentiu-se ao dizer que realmente fora amante de Dilermando de Assis. Disse estar contando a verdade, para que Euclides não passasse a idéia de ter agido desprovido de qualquer motivo, ao atentar contra a vida do militar, como se fosse um psicopata. Quis preservar, pelo menos sob esse aspecto, a imagem do marido segundo afirmou...

Suas declarações, no sentido de revelar o seu relacionamento amoroso, até então negado, no afã de mostrar que Euclides não agira como um insano e sim impelido pela situação por ela criada, provocaram uma reação favorável, por parte da imprensa.

Passou-se a enaltecer a dignidade e a generosidade de sua atitude, vítima, ela sim, de uma obsessiva paixão, por um homem bem mais jovem e que se valia desta condição para a explorar, inclusive financeiramente, segundo apregoavam os jornais.

Na obra "Matar para não Morrer", sobre a tragédia da Piedade, a autora Mary Del Priore abordou um interessante aspecto relacionado à confissão de Saninha e à condição da mulher no início do século.

Em seu livro, afirmou que na concepção da época, a mulher era um ser fraco e suscetível a assédios promissores, no sentido de viver um grande romance, especialmente em se tratando de mulheres em face de declínio físico e emocional. Talvez tal idéia tenha influenciado a sociedade da época.

Quanto a Dilermando o quadro retratado pela imprensa não o favorecia, pois refletia ou influenciava a opinião pública, que via no trágico episódio, a morte de um grande intelectual, festejado escritor e jornalista, que procurou refazer a sua honra vilipendiada, em razão do adultério cometido pela mulher, tendo como parceiro um militar muito mais jovem, tido como ambicioso e aproveitador.

Foi exatamente com esse quadro, que o grande advogado Evaristo de Moraes trabalhou na defesa de Dilermando de Assis. Relutou em assumir o caso, pois era admirador de Euclides da Cunha. No entanto, após uma entrevista com o acusado, sentiu-o seguro e sincero quando expôs a sua versão, comportamento que o levou a aceitar a sua defesa.

Um dos objetivos da defesa foi demonstrar que entre Dilermando e Euclides não havia nenhuma relação de dependência, nenhum vínculo que levasse à gratidão do militar pelo escritor. Ao contrário do divulgado pela imprensa, alimentada por um inquérito conduzido de forma parcial e tendenciosa, Dilermando demonstrou que durante todo o período em que esteve no Rio de Janeiro as suas despesas foram suportadas por ele com o soldo do exército.

Evaristo defendeu a tese da legítima defesa própria e do irmão Dinorah, que atingido por um tiro ficou paraplégico e veio a suicidar-se, depois de passar um período internado em um hospício.

O Conselho de Sentença, à época, composto por doze jurados, dividiu-se, seis jurados votaram pela condenação e seis pela absolvição. Em face do empate foi proclamada a absolvição do réu. Em um segundo julgamento, Dilermando voltou a ser absolvido desta feita por maioria de votos.

Passado algum tempo, Saninha casou-se com Dilermando. O casal teve vários filhos.

A trágica saga de Dilermando não se exauriu com a morte do autor dos "Sertões". Anos após, dentro de um cartório do Fórum da cidade do Rio de Janeiro, viu-se ele obrigado a reagir a uma agressão de Quidinho, um dos filhos de Euclides com Saninha, acabando por matá-lo.

"Crônica de Uma Tragédia Inesquecível" que reproduz o processo de Dilermando de Assis apresentado por Walnice Nogueira Galvão, tendo como consultor Domício Pacheco e Silva Neto; a biografia de Euclides da Cunha escrita por Roberto Ventura com organização de Mário César Carvalho e José Carvalho Barreto de Santana e "Anna de Assis, História de um Trágico Amor" e o já citado livro de Mary Del Priori são algumas das obras que tratam de um dos crimes mais reveladores das fragilidades, mazelas e distorções da condição humana, trazendo à baila fatos e situações que retratam sentimentos, emoções comportamentos e idéias dominantes em uma época determinada.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminal da Advocacia Mariz de Oliveira.


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