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O foro especial

Muitos países possuem o instituto do foro privilegiado, mas em nenhum há tantas autoridades, quanto as contempladas no Brasil, com essa prerrogativa. Calcula-se que mais de 20 mil pessoas possuem o direito de serem processadas por tribunais em função do cargo que ocupam.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Atualizado às 07:50

A denominação que perdurou no direito brasileiro foi a de "foro privilegiado", apesar de a doutrina e jurisprudência usarem a expressão "foro especial por prerrogativa de função". É um mecanismo processual que altera a competência penal sobre ações contra autoridades públicas enumeradas na CF e outras leis. Mais claramente, a ação penal intentada contra o presidente da República, senador, deputado, magistrado, ministros e outros, será julgada por tribunais, diferentemente do que ocorre, quando a ação penal é contra o cidadão comum, que tem o juiz, para instruir e julgar.

 

Muitos países possuem o instituto do foro privilegiado, mas em nenhum há tantas autoridades, quanto as contempladas no Brasil, com essa prerrogativa. Calcula-se que mais de 20 mil pessoas possuem o direito de serem processadas por tribunais em função do cargo que ocupam.

 

A CF separa a prerrogativa para crimes comuns, aqueles previstos no CP e nas leis extravagantes, e os crimes de responsabilidade, aqueles praticados por funcionários públicos e agente políticos, como exemplo os prefeitos e juízes. A matéria cível, uma ação de despejo, por exemplo, não tem foro especial e é julgada pelo juiz de 1ª instância.

 

Para esclarecer melhor, vamos a um exemplo da prática de um delito comum: o cidadão que comete um crime de estupro, em Manaus, é julgado pelo juiz criminal da capital do Amazonas; se, entretanto, esse mesmo delito for praticado por um deputado federal, no mesmo local, a lei estabelece competência do STF, em Brasília, que terá, entre outras dificuldades, a apuração das provas na cidade de Manaus.

 

Os julgamentos por colegiados, os tribunais, são sempre mais lentos, principalmente quando se tratar de ações originárias, aquelas que são ajuizadas no Tribunal; a tendência desses crimes praticados por autoridades com o foro especial, em virtude da função, é permanecer nos gabinetes dos desembargadores ou ministros até que ocorra a prescrição.

 

Pesquisas realizadas pela AMB, intitulada Diagnóstico do Problema da Impunidade e possíveis soluções propostas pela AMB, constataram o seguinte sobre as ações penais contra detentores de foro especial: no STF, entre 15/12/1988 e 15/06/2007, tramitaram 130 processos criminais contra autoridades com o foro especial e, nesse período, ninguém foi condenado; dos 130 processos, 52 ainda tramitam na Corte e o restante, 78, resultaram em absolvição, prescrição, ou remetidos para a 1ª instância, porque o favorecido perdeu ou deixou o cargo. No STJ, entre 23/05/1989 e 06/06/2007, foram iniciadas 483 ações criminais e apenas 05 terminaram com condenações, 81 ainda tramitam e o restante teve julgamento de absolvição, de prescrição ou remetidas ao STF ou ainda aguardam autorização das Assembleias Legislativas para prosseguir.

 

O mensalão mostrou o grande inconveniente do foro especial; foi enorme a surpresa, quando se obteve condenações de políticos, cenário incomum na Justiça brasileira. Todavia, o STF ficou praticamente absorvida com a instrução e julgamento desses processos. A simples participação de deputados federais, no rol de réus, modificou a competência para a Corte, que não foi preparada para processar e julgar esse tipo de ação no campo criminal.

 

O instituto remonta à primeira Constituição, promulgada em 1824, que conferia ao Senado imperial "conhecer dos delictos individuaes, commetidos pelos Membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado e Senadores; e dos delictos dos Deputados durante o periodo da Legislatura". A pessoa do Imperador era "inviolável e sagrada".

 

A Constituição de 1891 conferia ao Senado competência para julgar os membros do STF, nos crimes de responsabilidade; o STF era competente para processar e julgar os juízes federais, o presidente da República e os ministros de Estado tanto nos crimes comuns, quanto nos crimes de responsabilidade. As Constituições que se seguiram, mantiveram o foro especial. A CF de 1988 aumentou consideravelmente o número de autoridades sujeitas ao foro privilegiado.

 

Nos tempos iniciais era pequeno o número de pessoas, que, no exercício da função pública, gozava do foro especial. Os prefeitos, por exemplo, antes da CF/88, eram processados no local do crime e passaram a responder perante os Tribunais de Justiça.

 

O foro especial, na forma como está na Constituição, é arcaico e viola o princípio da igualdade e da isonomia, também contemplados na CF. Todavia, esse preceito visa proteger o mandato público não a pessoa que exerce certas funções no Estado. O entendimento é o de que a autoridade pública deve ser julgada por tribunais superiores que desfrutam de maior independência.

 

A garantia de igualdade entre os cidadãos só estará assegurada se todos forem julgados pelo juiz natural, sem qualquer privilégio, originado da posição que ocupa na administração pública, em todos os níveis.

 

Tramita no Senado Federal PEC que retira o foro especial de muitos políticos, inclusive do próprio presidente da República, no cometimento de crimes comuns. Ministros e desembargadores deverão ser julgados pela Justiça comum, de acordo com o Projeto de Emenda. Membros do Congresso Nacional poderão ser presos, se condenados em 2º grau, diferentemente do que acontece hoje, que são julgados pelo STF.

 

Pela Proposta, é retirada dos Tribunais estaduais a competência para processar e julgar juízes estaduais, promotores e procuradores de Justiça, quando cometerem crimes comuns. Todavia, nos crimes de responsabilidade, essas autoridades continuarão a ser julgadas pelos Tribunais dos Estados.

 

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*Antonio Pessoa Cardoso é desembargador aposentado e advogado do escritório Pessoa Cardoso Advogados.

 

 

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