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A disforia de gênero e as relações de trabalho

Não se pode frustrar a esperança de uma vida digna do trabalhador e de uma carreira bem-sucedida, pois já basta aos transgêneros o enfrentamento das dificuldades naturais que decorrem da condição referida, que, não raras vezes, começa no próprio meio familiar.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Atualizado em 4 de setembro de 2017 10:04

Tema que veio a lume fortemente nos últimos dias, em razão de enredo de novela que está em exibição na televisão brasileira, é o da disforia de gênero, tratada também por transgeneridade, ou ainda, impropriamente, por transexualismo.

A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID - 10), define essa condição como o "...desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado." (CID 10 - F64, F64.0 - Organização Mundial de Saúde).

Incorreta, porém, a "patologização" da disforia de gênero.

Não se trata de doença mental, nem de transtorno ou de distúrbio psíquico, como incorretamente alguns insistem em apontar, mas sim, de mera condição humana, comprovadamente identificada no meio científico como ocorrência biológica. Essa condição é tão fortemente natural e impositiva e tão grande é o choque com as convenções sociais tradicionais sobre a identificação de gêneros, que causa no indivíduo séria "disforia" (termo que se contrapõem a "euforia"), caracterizada por grande tristeza, angústia, mal-estar e deslocamento social.

Tal estado, em última análise, decorre principalmente da dificuldade de o indivíduo convencer a sociedade e a família quanto à naturalidade do sentimento de rejeição biológica ao próprio corpo e quanto ao desejo de parecer, tanto quanto possível, com integrante de outro sexo.

É claro que a "mudança de sexo" é biologicamente impossível. Porém, intervenções médicas para a redesignação de sexo, ou a apresentação do indivíduo com as características físicas do sexo diferente ao de nascimento, por opção deste e como solução amenizadora, não devem causar repulsa nem discriminação, muito menos no ambiente de trabalho. Ao contrário, o fato deve potencializar a compreensão e a atenção dos gestores, com o esforço sincero para a sua inclusão no meio social e do trabalho.

Daí a necessidade de aconselhamento e acompanhamento psicológico desse trabalhador ou trabalhadora, que mais decorre da "doença social" da incompreensão de terceiros e familiares, que pela própria condição de transgeneridade.

Não há, portanto, que se pensar em "cura" ou de soluções padronizadas, atribuindo incorretamente ao trabalhador ou à trabalhadora a "culpa" por não buscar essas soluções. O fato requer, primeiramente a aceitação e a compreensão da sociedade e dos que detém os meios de produção e os postos de trabalho, como primeiro passo para melhoria da vida desses indivíduos, pois bastaria à sociedade a simples compreensão de que há seres humanos que nascem com essa condição de forma natural, biológica, para que o sofrimento daqueles fosse significativamente amenizado ou até mesmo inexistente.

O empregador de considerar, como já se disse, que a disforia de gênero não é uma doença psíquica, já que as consequências negativas sofridas pela pessoa transgênera decorrem de causas externas, fora do ambiente médico-psíquico. Com efeito, são os atos de incompreensão da sociedade e de recusa quanto a essa realidade biológica os maiores fatores desencadeadores do sentimento adverso e do sofrimento do indivíduo transgênero.

Muito menos contribuem para essa discussão as absurdas e inconsequentes manifestações transfóbicas no ambiente de trabalho que, sem dúvida, decorrem da ignorância sobre o tema.

Aliás, todo aquele que tem responsabilidade social deveria se debruçar sobre a matéria. Afinal, estamos no século XXI e o acesso a novos conhecimentos científicos são fartos e estão à disposição na rede mundial, ao alcance de nosso simples teclar. Por isso não se pode simplesmente fingir-se de ignorante para "acompanhar a manada", distribuindo "likes" nas redes sociais em manifestações transfóbicas feitas sem a menor informação científica a respeito.

Por isso, o mundo do trabalho e das relações trabalhistas não podem tangenciar essa importante questão. Não apenas pelo simples respeito ao trabalhador, independentemente de seu gênero, mas também porque é preciso lembrar que mentes brilhantes e criativas, bem como profissionais altamente qualificados, estarão também dentre os transgêneros. Por outro lado, não se pode frustrar a esperança de uma vida digna do trabalhador e de uma carreira bem-sucedida, pois já basta aos transgêneros o enfrentamento das dificuldades naturais que decorrem da condição referida, que, não raras vezes, começa no próprio meio familiar.

Por isso, as organizações empresariais sérias devem se preparar para o acolhimento dessa parcela de trabalhadores e trabalhadoras de forma madura, racional e humana, orientando gestores e demais colaboradores para essa realidade, a fim de evitar tratamentos discriminatórios e possíveis consequências no campo do dano extrapatrimonial, em caso de violação de direitos desses indivíduos.

Esse preparo de gestores, para essa nova realidade, deve concorrer com a fixação objetiva e clara de uma política interna ética e correta, onde a não discriminação e o prestígio à igualdade de tratamento e de oportunidades também aos transgêneros, seja o caminho a ser seguido de forma madura e civilizada.

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*Marco Antonio Aparecido de Lima é advogado e sócio do escritório Lima & Londero Advogados.

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