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Os efeitos da anulação de uma delação premiada

O Ministério Público, ao redigir os termos de delação, buscou resguardar-se de eventual nulidade futura para que as provas obtidas não fossem prejudicadas, de forma que ele possa continuar utilizando-se das provas entregues pelos delatores, mesmo após a rescisão dos termos de acordo.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Atualizado às 08:17

As capas dos jornais dessa semana trazem a possibilidade de anulação da maior delação premiada de todos os tempos.

Os colaboradores teriam mentido, omitido informações, devendo o acordo perder seus efeitos, considerando-se rescindido, como determina os Termos do Acordo de Colaboração Premiada firmado entre o Procurador-Geral da República e os famosos empresários.

Caso a delação seja efetivamente anulada, quais seriam os efeitos dessa anulação em relação às provas obtidas através do acordo?

Constam dos Termos de acordo as seguintes cláusulas:

"A prova obtida mediante o presente acordo será utilizada validamente para a instrução de inquéritos policiais, procedimentos administrativos criminais, medidas cautelares, ações penais, ações cíveis e de improbidade administrativa e inquéritos civis, podendo ser emprestada também aos: Ministérios Públicos dos Estados, à Receita Federal, à Procuradoria da Fazenda Nacional, ao Banco Central do Brasil, à Controladoria-geral da União, ao Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência - CADE e a outros órgãos, inclusive de países e entidades estrangeiras, para a instrução de procedimentos e ações fiscais, cíveis, administrativos, inclusive disciplinares, de responsabilidade bem como qualquer outro procedimento público de apuração dos fatos, mesmo que rescindido este acordo, salvo se essa rescisão se der por descumprimento desta avença por exclusiva responsabilidade do Ministério Público Federal."

E:

"Em caso de rescisão do acordo por sua responsabilidade exclusiva, o COLABORADOR perderá automaticamente direito aos benefícios que lhe forem concedidos em virtude da cooperação com o Ministério Público Federal, permanecendo hígidas e válidas todas as provas produzidas, inclusive depoimentos que houver prestado e documentos que houver apresentado, bem como válidos quaisquer valores pagos ou devidos a título de multa."

Percebe-se, portanto, que o Ministério Público, ao redigir os termos de delação, buscou resguardar-se de eventual nulidade futura para que as provas obtidas não fossem prejudicadas, de forma que ele possa continuar utilizando-se das provas entregues pelos delatores, mesmo após a rescisão dos termos de acordo.

Todavia, a utilização de tais provas encontrará dois obstáculos pela frente.

Primeiramente, com a rescisão dos termos da colaboração, os colaboradores dificilmente vão se apresentar em audiência de instrução processual para ratificar aquilo que apresentaram, eis que sem os benefícios do acordo não continuariam a confessar os crimes e entregar terceiros, já que sem o acordo não gozam mais de proteção, de modo que os depoimentos prestados durante o inquérito não seriam ratificados perante o juiz.

Segundo obstáculo, e ainda mais importante, é que tais cláusulas dos Termos de Delação são completamente ilegais, eis que flagrantemente contrárias à lei 12.850/13, mais conhecida como Lei das Organizações Criminosas, assim como ao Código de Processo Penal. Vale observar que as regras do direito de defesa de um acusado em Processo Penal são irrenunciáveis, de forma que não se pode alegar que as cláusulas valeriam porque eles as aceitaram.

A Lei das ORCRIM traz em seu artigo 4º, §10º, que as partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor.

Resta claro, portanto, a ilegalidade de tais cláusulas.

Não bastasse a proibição da utilização das provas autoincriminatórias em desfavor do colaborador, as provas também não podem ser utilizadas para incriminar os terceiros delatados, uma vez que o Supremo Tribunal Federal definiu a colaboração premiada como meio de obtenção de prova, assim como o são a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, a interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas ou o afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nas palavras do ministro Dias Toffoli, relator do HC 127.483/PR.

Dessa forma, ao anular uma colaboração premiada estar-se-á anulando um meio de obtenção de prova e, consequentemente, as provas obtidas por esse meio, quaisquer que sejam elas, de acordo com o artigo 157 do Código de Processo Penal, que estabelece que são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

Ora, não há discussão de que uma interceptação telefônica ilegal torne inadmissível as gravações obtidas por meio dela. Não havendo que se falar, igualmente, em validade das provas obtidas por meio de colaboração premiada anulada.

Estamos diante de cláusulas completamente ilegais que deveriam ter sido corrigidas antes da homologação dos termos de acordo, posto que se a homologação não adentra na discussão da verdade dos fatos delatados, deveria verificar a real legitimidade e regularidade do mesmo. Ao que tudo indica, não foi o que ocorreu.

Espero, caso a anulação se confirme, que o judiciário brasileiro respeite a lei e não abra mais uma das inúmeras exceções irregulares já verificadas em toda Operação Lava Jato.

E que toda essa bagunça de Procuradoria Geral, Supremo Tribunal Federal e delatores sirva, pelo menos, para que o Ministério Público passe a ter mais cuidado e atenção na celebração de novos acordos, e que o Judiciário comece a examinar verdadeiramente a legalidade, voluntariedade e regularidade dos termos antes de homologá-lo.

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*Murilo Marques é advogado sócio do escritório Carlos, Marques, Vieira e Davanso Advogados Associados. Especialista em Direito Penal Econômico e mestrando em Direito Público.


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