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Calamandrei e a tutela satisfativa no processo penal: a impossibilidade "a priori" do afastamento de Aécio Neves

À luz da distinção proposta, a suspensão dos efeitos do mandato não se enquadra fielmente em nenhum dos arquétipos. A retirada dos efeitos do mandato, em vez da desconstituição do cargo, não torna o provimento cautelar.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Atualizado às 13:49

Inexiste tutela satisfativa no processo penal. Isso já seria suficiente para impedir o afastamento de Aécio Neves (PSDB/MG) do mandato. A bem da verdade, a discussão do tema tem se limitado à obrigatoriedade ou não do crivo parlamentar à decisão do STF. O Ministro Marco Aurélio Mello cogita inclusive levar a plenário o julgamento da ADI 5526/DF, de sua relatoria, em que se visa conferir interpretação conforme aos arts. 312 e 319 do CPP, estendendo a imunidade parlamentar (art. 53, § 2º, CF) a medidas cautelares diversas da prisão. A rigor, porém: o descabimento da medida de afastamento do mandato decorre da natureza satisfativa do provimento, e não guarda relação com o julgamento da ADI 5526/DF.

A doutrina acentua a distinção entre tutela cautelar e satisfativa no paralelismo respectivo: temporariedade/provisoriedade. Calamandrei1 aponta a diferença substancial entre as tutelas: temporário é, simplesmente, aquilo que não dura para sempre, aquilo que, independentemente da superveniência de outro evento, tem por si mesmo duração limitada; provisório é, por sua vez, o que se estabelece para durar até quando não sobrevenha um evento sucessivo, em vista e na espera do qual o estado de provisoriedade permanece no ínterim. O exemplo de Lopes da Costa2é elucidativo: enquanto os andaimes de construção são temporários (cautelares), pois ficam apenas até a conclusão do prédio (instrumentalidade), a barraca do homem dos sertões é provisória (satisfativa), e permanece até melhor habitação.

À luz da distinção proposta, a suspensão dos efeitos do mandato não se enquadra fielmente em nenhum dos arquétipos. A retirada dos efeitos do mandato, em vez da desconstituição do cargo, não torna o provimento cautelar. Não há propriamente satisfação, pois se antecipam efeitos consequentes da sentença. Afinal, a jurisprudência atual do STF condiciona a perda do mandato, em caso de condenação criminal transitada em julgado, à deliberação parlamentar (Cf. AP 396 QO/RO, rel. Min. Carmen Lúcia). Construiu-se barraca mais bela (no rigorismo da faculdade do juízo kantiana3) que o prédio arquitetado, caricatura que se pode denominar de superantecipação dos efeitos da tutela.

No âmbito penal é impossível a tutela satisfativa antes da sentença. Apenas para ficar com um exemplo, a tese da prescrição virtual, que propugnava antecipar a própria absolvição diante da pena concreta vislumbrada, não foi admitida pelo STJ (Enunciado 438 da Súmula da Corte). A antecipação absolutória visava antecipar futuro certo e previsível, e foi rechaça pela Corte. A suspensão do mandato, por sua vez, antecipa efeitos sequer possíveis ao provimento final. A inconsistência impede a admissão de duas proposições normativas contrárias, pelo menos no âmbito da Ciência do Direito. Enfim, a lógica do razoável é incapaz de justificar tal estado de coisas: a proibição de antecipar o possível, facultando a satisfação imediata do impossível.

Mesmo um autor como Carl Schmitt4, o jurista do Terceiro Reich, desabonaria a solução de tirar Aécio Neves do mandato. Para o teórico da exceção, diante de norma explícita, pouco importa ser positivista, jusnaturalista ou enquadrar-se em qualquer outro modismo. Aplica-se puerilmente a conseqüência ao suposto. Na normalidade inexiste raciocínio jurídico, senão dedutivo do tipo ''se...,então...''. Só no vazio normativo é possível a sinapse jurídica. Dito de outro modo: apenas o estado de exceção possibilita a existência do jurista.

Arguto, Schmitt não defendeu a tese de que o vazio normativo possibilitaria o arbítrio do julgador. Seria defender o regime ditatorial franca e abertamente, revelando segredo incompatível com a arte da dominação do povo. Defendeu o institucionalismo-voluntarista, um contraponto ao idealismo lógico-sistemático e o realismo puro e simples, proclamando que o decisionismo ampare-se ao menos no raciocínio institucional. No caso de Aécio, pelo respeito ao instituto eminentemente jurídico das cautelares.

Nem tudo se resolve pela Constituição Federal, nem tudo são palavras. Devemos cultivar nosso jardim, como diria Cândido (obra com o mesmo nome de Voltaire) ao otimista e metafísico Pangloss, diante da contingência dos produtos da natureza.

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1 CALAMANDREI, Piero. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares. Campinas: Servanda, 2000, p 25-26.

2 COSTA, Alfredo Araújo Lopes da. Medidas preventivas: medidas preparatórias, medidas de conservação. São Paulo: Sugestões Literárias, 1966, p. 10.

3 Se o belo é o ideal da decisão judicial final e perfeita, o tipo de caracterização que exagera no objeto representado denomina-se caricatura, e no sujeito, genialidade, onde a natureza parece afastar-se das relações habituais de uma faculdade mental em benefício de uma única. Senso poético em todo incompatível com a racionalidade burocrática inerente ao julgador. Para mais, confira-se: KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Petrópolis: Vozes, 2016, p. 131.

4 SCHMITT, Carl. On the three types of juristic thought. Westport, Conn. : Praeger Publishers, 2004, p. 47.

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*João Paulo Rodrigues de Castro é Defensor Público Federal em Cuiabá.

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