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O problema do ´´revenge porn´´ e a proteção das vítimas: análise sob a ótica processual

Fernanda Kac

A discussão sobre a proteção das vítimas assume contornos ainda mais graves, quando as estatísticas envolvendo toda a sorte de violência contra a mulher - como estupro, violência doméstica e feminicídio (assassinato de mulheres por sua condição de gênero) - não param de crescer.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Atualizado em 27 de outubro de 2017 14:59

Chama-se revenge porn, ou pornografia de vingança, o ato ilícito em que um indivíduo divulgue fotos, vídeos ou outros conteúdos íntimos de outra pessoa, sem o seu consentimento, em situação onde exista certa expectativa de privacidade, costumeiramente em virtude de prévia relação afetiva.

Esse tipo de conduta geralmente ocorre após o fim de um relacionamento amoroso, quando um dos envolvidos, inconformado com o término da relação, expõe cenas íntimas de seu antigo parceiro, como forma de vingança.

Atos como esses são praticados principalmente através de aplicativos de internet, de sorte que hoje, milhares de pessoas - mulheres, em sua maioria esmagadora - são vítimas do delito e veem seu nome, imagem e reputação abalados em seus círculos sociais. Se por um lado, o ato de compartilhar o conteúdo íntimo é de rápida e simples execução, por outro, os danos que causa são vastos e, muitas vezes, infelizmente irreversíveis.

Importante mencionar que o acesso ao material normalmente decorre da relação de confiança estabelecida com a vítima, seja através do envio espontâneo dos chamados ''nudes'' ou da gravação de vídeos do casal, seja através da filmagem ou fotografia da vítima - de forma escondida - sem que ela tenha conhecimento.

Os efeitos desse tipo de conduta nefasta são tão devastadores que algumas das vítimas chegam a cometer suicídio, como no caso de uma mulher de 31 anos que chocou a Itália no ano passado1 , como resultado da insuportável vergonha e abalo psicológico que as vítimas sentem, aliada à ausência de punição dos responsáveis pelo vazamento do conteúdo íntimo.

Pensando neste assunto e na necessidade de proteger a vítima que busca seus direitos perante o Poder Judiciário, em setembro deste ano, foi aprovado na Califórnia um Projeto de Lei que altera seu Código Civil2 , para resguardar a privacidade de pessoas que tenham sido vítimas do chamado ''revenge porn''. Graças a essa inovação legislativa, vítimas deste tipo de ilícito podem ajuizar ações judiciais na Califórnia visando indenização em face do divulgador do conteúdo, e/ou retirada do material ilícito da internet, sob um pseudônimo, isto é, sem ter que divulgar seu verdadeiro nome, ou suas características individuais.

Para tanto, a lei sugeriu a utilização dos pseudônimos ''John Doe'', ''Jane Doe'' ou simplesmente ''Doe'' e determinou que o autor ou autora, ao ajuizar a demanda, preencha um formulário - confidencial e não encartado aos autos - com seus dados pessoais, para que se identifique com seu nome e outros dados que permitam sua individualização, além de declarar na peça inaugural que a ação é baseada no artigo 1708.85 do Código Civil (aqui em análise).

De acordo com a lei, todo e qualquer ato judicial, seja manifestação do autor ou do réu, decisões proferidas por magistrados ou até mesmo a sentença do júri, deverá ser redigido de forma a excluir ''características identificadoras'' ou ''identificadores eletrônicos'' de seu teor, como forma de resguardar o nome da vítima da revelação pública, tudo sob pena de responsabilização exclusiva da parte que redigir o texto do ato judicial.

A aprovação do Projeto de Lei representa mais um avanço no combate à pornografia de vingança e na proteção das vítimas de seus devastadores efeitos, principalmente se considerarmos que, no sistema do common law, as ações judiciais são referidas com base no nome das partes (e.g. Apple v. F.B.I.) e, em virtude dessa lei, o nome da vítima será resguardado de forma a garantir o seu acesso ao Judiciário sem a penalização de mais exposição além da já sofrida.

No Brasil, não há qualquer sistema parecido com essa inovação legislativa norte americana. Em verdade, o artigo 319, II, do Código de Processo Civil3 determina que a parte indique diversos dados pessoais do autor e do réu e, quando não atendido, deve ser emendada, por determinação do juízo, sob pena de indeferimento da inicial.

Extrai-se de nossa norma processual que a ausência de dados pessoais somente é admitida quando possível a citação do réu, nada mencionando sobre o autor da ação .

A lei foi redigida de forma a garantir as bases de uma perfeita relação processual, sem levar em consideração eventual necessidade de preservar a privacidade e intimidade do autor desse tipo de ação4.

Sob o enfoque dos princípios do contraditório e da ampla defesa (artigo 5, LV da Constituição Federal), a identificação do autor da ação é importante para que o réu saiba de quem e do que está se defendendo. Entretanto, não haveria empecilhos para que os dados sobre a identificação da vítima de alguma forma fossem restringidos, sem prejuízo dos elementos necessários ao devido processo legal.

Assim, em nosso sistema processual, a única providência que pode ser adotada atualmente para a preservação da intimidade das partes é a tramitação do feito em segredo de justiça, na forma do artigo 189, III, da Legislação Adjetiva, o que não nos parece suficiente.

Sendo a matéria de extrema sensibilidade e havendo a necessidade de se evitar a extensão do dano experimentado pela parte com a exposição também do embate judicial, a simples decretação de segredo de justiça pode se mostrar insatisfatória para a vítima.

Até porque, por mais que sejam omitidos os nomes das partes, basta que conste seu nome no corpo de decisão ou sentença judicial, que diversos buscadores atualmente disponíveis na rede indexarão o material permitindo que qualquer um ache o processo se realizar a busca pelo nome da vítima na internet.

A discussão sobre a proteção das vítimas assume contornos ainda mais graves, quando as estatísticas envolvendo toda a sorte de violência contra a mulher - como estupro, violência doméstica e feminicídio (assassinato de mulheres por sua condição de gênero) - não param de crescer.

Assim, a aprovação deste Projeto de Lei pelos americanos é uma boa oportunidade para repensarmos nossa lógica processual frente aos novos desafios digitais, que reclamam cada vez mais a proteção das vítimas que batem às portas do Judiciário em busca de reparação de danos e não de maior exposição.

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1 Tiziana Cantone: a italiana que teve a vida destruída por vídeos virais de sexo

2 California Gov. Jerry Brown signs privacy, anti-spying bills

3 Art. 319. A petição inicial indicará: (...)II - os nomes, os prenomes, o estado civil, a existência de união estável, a profissão, o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, o endereço eletrônico, o domicílio e a residência do autor e do réu;

4 § 2o A petição inicial não será indeferida se, a despeito da falta de informações a que se refere o inciso II, for possível a citação do réu.

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*Fernanda Kac é advogada sênior do escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados. Especialista em Direito Processual Civil. Pós-graduada em Direito Processual Civil. Membro da AASP.





*Renato Gomes de Mattos Malafaia é advogado especializado em Direito Digital no escritório Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados, pós-graduado em Direito e Tecnologia da Informação. Membro do Comitê de Estudos em Compliance Digital da LEC - Legal, Ethics and Compliance e da Comissão Permanente de Estudos de Tecnologia e Informação do IASP.


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