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Como uma série da Netflix se tornou centro da nova onda de discussões políticas

"O Mecanismo", de José Padilha, traz uma narrativa sobre o início da operação lava jato e reacende rivalidade política no Brasil.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Atualizado em 27 de março de 2018 09:45

"O inimigo agora é outro", já dizia o subtítulo de Tropa de elite 2, longa dirigido por José Padilha que contava a história de um comandante do Bope, sua relação com as milícias e mazelas do Rio de Janeiro, que ao final escalona a discussão até a esplanada dos ministérios. Não é de se estranhar, então, que a nova série dirigida por Padilha comece exatamente de onde a narrativa anterior parou: a responsabilidade da capital do país na onda de crime e violência. Esse é o contexto de "O Mecanismo", série da Netflix em 8 capítulos, baseada livremente no livro: "O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil", de Vladimir Neto.

Críticas televisivas à parte, "O Mecanismo" se tornou centro das atenções midiáticas ao provocar a reação da ex-presidente afastada Dilma Rousseff, e de braços midiáticos da esquerda do Brasil, que consideraram a obra subversiva e um instrumento político da oposição, tendo sido iniciada uma onda de protestos que culminou na criação de uma hashtag #cancelanetflix, apoiando que se cancele a assinatura da plataforma de streaming digital por não se concordar com a visão do diretor. E foi reaberta a discussão polarizada entre a esquerda e a direita no país.

É de causar espanto essa reação tão opressora, que historicamente não condiz com o discurso de liberdade de expressão que os setores que se dizem ofendidos geralmente pregam, sendo tal prática de boicote a uma obra declaradamente de ficção usualmente associada ao período da ditadura militar no Brasil, que se valia da censura como instrumento de controle, sendo que tal prática nem sempre dá certo, como o famoso caso da igreja católica incentivando o boicote da obra cinematográfica de Godard, "Je vous salue, Marie", que inclusive chegou a ser proibida no Brasil pelo então presidente José Sarney. Tal proibição nada mais fez do que aumentar a procura e a curiosidade sobre o filme. Tentou-se apagar o fogo com combustível.

Combustível esse que coloca a Netflix sobre os holofotes do país. Diversificando seu catálogo de forma autoral pelos últimos anos, e investindo em conteúdo original de vários de seus países consumidores, a Netflix tem em "O Mecanismo" a sua terceira série autoral brasileira, sendo que nenhuma das anteriores chegou próximo do Hype alcançado pela obra em discussão. E vale frisar: quem assiste ao seriado consegue notar muitas críticas bilaterais expressas ou implícitas, deixando claro que o governo atual não se difere dos anteriores, que o dinheiro de propina que alimentava um governo de situação também alimentou o governo de oposição, e que o maior órgão do judiciário nacional é pautado pelos mesmos interesses e partidarismos do executivo ou do legislativo, tendo sido cunhada uma cena de difícil digestão, especialmente em face dos últimos acontecimentos: réus comemorando na cadeia e gritando "foi pro supremo".

Fica claro que a cisão partidária, que separou em dois o Brasil, estava somente em recesso, o que indica uma eleição presidencial extremamente tensa e controvertida, com a impossível missão de união de um país dividido que parece ansiar por uma guerra civil. É, de fato o inimigo agora é outro, no caso a própria sociedade civil que tem sua fundação abalada e suas convicções evisceradas por uma peça de ficção (ou não).

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*Benedito Villela é advogado e professor da ESA.

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