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Distratos e os novos rumos da jurisprudência

Rosangela Gazdovich e Nathalia Lopes

Em meio à euforia da facilidade do distrato os Tribunais parecem começar a caminhar para um entendimento mais equilibrado e mais fiel às regras em vigor.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Atualizado às 07:39

A judicialização em massa dos pleitos pelo desfazimento imotivado de compromisso de compra e venda de unidades comercializadas na planta (os chamados "distratos") contribuiu intensamente para causar prejuízos às incorporadoras e desacelerar a construção civil. Isso porque, ao longo da crise dos últimos anos, os distratos se avolumaram à medida em que o Poder Judiciário, de forma bastante permissiva, passou a dar razão aos adquirentes que, sem razão justificável e até mesmo nos casos de sua inadimplência, desejassem o rompimento do vínculo contratual.

Foram inúmeras as decisões dos Tribunais que privilegiaram o interesse individual dos adquirentes, independentemente das razões sustentadas e dos efeitos jurídicos e econômicos ao empreendimento, em detrimento dos interesses da coletividade de adquirentes que pretendessem continuar com seus contratos e da saúde financeira e capacidade econômica das empresas do setor imobiliário.

O entendimento jurisprudencial até então predominante, sumulado pelo TJ/SP (Súmulas 01 a 03) e pelo STJ (Súmula 543), passou a ser pela possibilidade, praticamente sem critérios, de extinção do vínculo contratual, com restituição imediata de parte dos valores pagos pelo adquirente desistente (podendo chegar a 90%), em parcela única.

A vantagem para o adquirente é óbvia, pois a devolução dos valores pagos passou a independer da análise do escopo da aquisição (se para fins residenciais ou de investimento), e, ainda, do motivo da desistência (se por falta de condições econômicas para o cumprimento das obrigações, intenção de comprar outro imóvel ou por mera conveniência de mudança de investimentos).

Dessa forma, a jurisprudência, em exame menos aprofundado dos casos e dos impactos negativos ao setor imobiliário e fundamentada exclusivamente no CDC, passou a permitir a possibilidade de rompimento do vínculo do compromisso de compra e venda. Nos piores cenários, há decisões que determinam a devolução dos valores corrigidos monetariamente e acrescidos de juros desde a citação, fazendo com que o desistente receba em devolução, da incorporadora adimplente com todas suas obrigações, valor muito superior ao que pagou. Em outras palavras, a permissividade dos Tribunais transformou o descumprimento contratual em bom negócio, desincentivando o adimplemento das obrigações.

Curiosamente, a legislação consumerista não traz essa possibilidade de desistência imotivada e, conforme a legislação vigente, o compromisso é irretratável, e por isso, sem direito de desistência imotivada e unilateral de qualquer das partes. Vale lembrar que a irretratabilidade é construção legislativa em prol principalmente do adquirente, já que confere a ele direito real de aquisição e adjudicação compulsória do imóvel prometido, independentemente de registro em matrícula.

No entanto, em meio à euforia da facilidade do distrato e diante de uma profusão de evidentes pleitos abusivos e, por vezes, gananciosos por parte dos adquirentes, os Tribunais parecem começar a caminhar para um entendimento mais equilibrado e mais fiel às regras em vigor. Essa mudança decorre da percepção do desequilíbrio de um sistema em que os bens são produzidos também com o concurso financeiro dos adquirentes e que, ao privilegiar o desistente, ameaça-se os cumpridores das obrigações. Ademais, as decisões que determinam a devolução de parcelas aos desistentes antes de concluídas as obras violam o patrimônio de afetação das incorporações, instituído pela lei 10.931/04, justamente para proteger os adquirentes que têm a justa expectativa de receberam seus imóveis.

Nessa linha de análise mais aprofundada da questão, em decisões recentes, verifica-se um maior rigor do Poder Judiciário para as hipóteses que podem ensejar o distrato, normalmente para casos de pleito deduzido por adquirente inadimplente; por adquirente investidor, que comprou mais de uma unidade no mesmo empreendimento; por adquirente de unidades autônomas comerciais ou hoteleiras; ou ainda por adquirentes meramente insatisfeitos ou arrependidos.

É nesse sentido que se destaca o acórdão do TJ/RJ, proferido na AC 0066013-17.2016.8.19.0001, que deu provimento ao recurso da incorporadora para julgar improcedente o pedido de rescisão de adquirente inadimplente que pretendia comprar unidade residencial. O acórdão unânime aborda de forma bastante didática o histórico, a relevância e os efeitos da irretratabilidade do compromisso, esclarecendo que a desistência unilateral provoca prejudicial desequilíbrio entre as partes contratantes. Em fundamentação, o relator se vale da isonomia e do equilíbrio contratual como meios para garantir a irretratabilidade em benefício de ambas as partes contratantes, característica esta decorrente da lei e que vem sendo constantemente esquecida pelos julgadores.

Para os casos de adquirente que se equipara ao investidor, o TJ/SP proferiu recentemente acórdãos (a saber: AC 1116739-74.2016.8.26.0100 e AC 1003676-90.2015.8.26.0590) nos quais considera que a rescisão de tais compromissos deve aplicar as disposições previstas em contratos, inclusive o percentual de restituição, se houver. Além disso, o Tribunal paulista pondera que o número elevado dos pedidos de distratos pode provocar graves prejuízos econômicos para as empresas, agravando a crise econômica pela qual passa o País.

No que diz respeito ao distrato de contratos para aquisição de unidades autônomas comerciais, o Tribunal paulista afastou a aplicação do CDC, diferenciando a aquisição de salas comerciais e quartos de hotel dos demais casos, hipóteses estas em que os adquirentes manifestamente adquiriram as unidades tendo em vista sua possibilidade de exploração econômica, inexistindo, pois, relação de consumo a ser tutelada pelo CDC. Assim, esperava o adquirente rescindir os contratos, em razão de seu arrependimento, mas, acabou por ver sua pretensão impedida, pois, como dito acima, essa prática é vedada em contrato de caráter irretratável, em que não há cláusula expressa que autorize o direito de arrependimento (AC 1021894-87.2015.8.26.0002).

No caso da Ap. 1110740-43.2016.8.26.0100, em que se analisava o pleito por distrato de aquisição de quarto de hotel, embora o Tribunal tenha afastado a aplicação da cláusula de irretratabilidade, prevaleceu o quanto previsto em contrato, já que também, nesse caso, afastada a aplicação do CDC.

Essa mudança de postura na busca pelo reequilíbrio das regras a serem aplicadas nos distratos é vista também no recente julgamento da AC 1113058-33.2015.8.26.0100, pelo Tribunal paulista, em que, em ação movida pelo MP, este Tribunal entendeu que a retenção pela incorporadora do percentual de 30% do valor pago, em caso de rescisão contratual por culpa do comprador, não se mostra abusiva, tampouco excessiva, justificando que "o equilíbrio do negócio deve estar presente, inclusive por ocasião do desfazimento, quando as partes retornam ao statu quo primitivo". O acórdão frisa a necessidade de se observar cada caso, mesmo que se esteja diante de relação consumerista.

Apesar do teor de tais julgados, a jurisprudência ainda é muito condescendente com os pleitos individuais, ignorando que a lei não dá guarida à desistência imotivada e os efeitos danosos da massificação do rompimento unilateral do vínculo contratual, consistentes em graves prejuízos ao setor imobiliário, retração do mercado e da oferta de moradias e mesmo da oferta de empregos.

Contudo, os julgados apresentados acima indicam que o Poder Judiciário começa a dar sinais de que percebeu não ser (ao menos não deveria ser) a porta para o exercício do direito de arrependimento, em afronta à lei civil, e, o pior, para obtenção de valores vantajosos, individualmente considerados, em detrimento da coletividade de adquirentes adimplentes, da segurança jurídica, da legislação em vigor, e dos efeitos econômicos deletérios por eles gerados.

É preciso ainda fazer menção ao fato de que, o setor imobiliário tem também parcela de culpa nessa percepção jurisprudencial tardia do desequilíbrio. Muitas vezes a defesa processual da empresa e do empreendimento é feita de forma genérica, sem demonstrar as características do caso concreto e sem apontar, por exemplo, a indevida violação ao patrimônio de afetação. A demonstração das situações específicas, feita em uma defesa criteriosa, permite ao julgador separar casos em que o autor é um adquirente da casa própria que ficou desempregado de um comprador capaz de cumprir o contrato, mas que perdeu interesse no imóvel.

Espera-se, assim, que o amadurecimento dos debates e, consequentemente, das decisões proferidas em tais casos, passe a obstar o pleito abusivo e por vezes oportunistas de adquirentes que pretendem imotivadamente rescindir suas obrigações contratuais, a partir de novas decisões que equilibrem o direito das partes, adquirente e empresa. Lembrando sempre que para o próprio desenvolvimento das sociedades, a preservação dos vínculos contratuais e obrigacionais deve ser a regra, sem prejuízo de que se possa analisar situações excepcionais em que se permita a rescisão, mas nunca o contrário.

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*Rosangela Gazdovich é coordenadora do Departamento de Contencioso Imobiliário Repetitivo do Bicalho e Mollica Advogados, mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e professora de pós-graduação do Centro Universitário Estácio Radial de São Paulo.

*Nathalia Lopes é advogada do Bicalho e Mollica Advogados.

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