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Coceira pré-iluminista: a negação propositada da lei escrita

O direito positivo, os princípios constitucionais, as regras jurídicas vêm pinçadas sem análise sistemática, sem respeito à hermenêutica. Jogam-se alusões à lei nos textos e nas falas, como referências poéticas, a colorir com eufemismo o que não é correto, o que não tem justa razão.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Atualizado às 11:25

Fico com muita pena do estudante de Direito. Não bastasse a falta de vocação ao ensino jurídico de parcela dos professores de graduação, são os jovens contaminados pelas notícias, artigos e manifestações de autoridades públicas sem vínculo com a verdade dos fatos e com a aplicação da letra das leis.

Com a maior tranquilidade, dizem estes por aí, dentre outras inverdades jurídicas, que se pode conduzir o investigado de maneira coercitiva; algemar pés e mãos do preso por segurança dos funcionários públicos; e prender antes do trânsito em julgado.

Ao ouvir, ou ler, os supostos argumentos, encontro dados estatísticos, opiniões de cunho psicossocial e apelos à eficácia do sistema criminal.

O direito positivo, os princípios constitucionais, as regras jurídicas vêm pinçadas sem análise sistemática, sem respeito à hermenêutica. Jogam-se alusões à lei nos textos e nas falas, como referências poéticas, a colorir com eufemismo o que não é correto, o que não tem justa razão.

Não há pensamento dogmático sério a subsidiar tais atrocidades do Estado contra o indivíduo. Há ilusão, ardil intelectual de intérpretes, encharcados pela intenção doentia de punir a qualquer preço, mesmo que em sentido contrário à lei posta.

Com conhecimento histórico, o bom leitor poderia me redarguir que não há surpresa em existirem juristas à disposição dos perpetradores de arbítrios. E eu concordaria, lembrando do nazifascismo.

O que me assusta são certos juízes penais. Como conseguem ainda se machucar com a coceira do Ancien Régime, ao desconsiderarem de forma reiterada a lei? Como esquecem o pensamento iluminista a mostrar ao direito ocidental o papel do magistrado no tocante à legalidade? Como olvidam as consequências da Revolução Francesa àqueles magistrados, useiros e vezeiros em agir com excesso de poder, em contraposição à lei?

Um país pode mudar a Constituição. O povo pode pressionar pela reforma das leis. Já os funcionários públicos hão de cumpri-las, sob pena de reprimendas - de sanções penais, inclusive.

O pobre estudante de Direito não pode mais sofrer com a propaganda enganosa, ou com a poluição malcheirosa de ideias erradas em direito e processo penal.

Como apóstolos, os professores universitários precisam apontar as falsidades, as hipocrisias e o reacionarismo, tão ao gosto de uma classe média preconceituosa e dos meios de comunicação que a emulam, por desejo de escarnio e lucro.

Légalité! Mes Amis!

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*Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo é advogado, mestre e doutor em Direito Penal pela USP, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra. Advoga no escritório Moraes Pitombo Advogados.

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