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O direito à intimidade, Eudes Quintino

O direito à intimidade

A intimidade, na concepção jurídica, trata-se de um campo discreto frequentado unicamente pelo interessado.

domingo, 29 de abril de 2018

Atualizado em 27 de abril de 2018 11:42

O Direito, como é sabido, é fruto de um sistema jurídico devidamente regulamentado e assentado em princípios e regras que vão se aperfeiçoando com o passar do tempo, com a finalidade precípua de atender não só as necessidades individuais como as coletivas do cidadão.

Assim, o Estado, devidamente legitimado, pode legislar a respeito das situações que gravitam no mundo exterior das pessoas, como, por exemplo, a lei que disciplina a interceptação telefônica, mas, jamais, em qualquer hipótese, ditar regras a respeito do seu pensamento interior. Trata-se de um campo indevassável, que permite única e exclusivamente o acesso do titular do direito.

O que se entende, nesta linha de pensamento, por direito à intimidade?

A Constituição de 1988, dentre vários direitos alargados e tutelados, abrigou em seu texto a proteção à intimidade do cidadão, assim descrita no inciso X do artigo 5º: "São invioláveis a intimidade, a vida privada , a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Em que pese a diversidade conceitual desses termos, pode-se deduzir que todos compõem uma esfera de proteção do indivíduo. A privacidade parece ser a mais ampla proteção, o limite da esfera protetiva, uma vez que se mostra como uma margem que o indivíduo dispõe para filtrar o que deseja tornar público a todos. Isto é, a pessoa detém um conjunto de informações, imagens, vídeos, atitudes suas que somente a ela cabe decidir se as demais pessoas possam a elas ter acesso. Uma vez acessadas, sem a permissão do titular, tem-se a violação da privacidade.

Já a vida privada compõe a relação do titular com um pequeno grupo de pessoas, normalmente familiar, muito embora nada impeça que sejam amigos próximos também. Já é possível perceber uma maior proteção, vez que se adentra à esfera protetiva da personalidade do titular.

Por fim, tem-se a intimidade, que se configura como o núcleo da esfera de proteção. Pode ser conceituada como o direito de estar só - the right to be alone, proteção consagrada nos EUA para assegurar a peace of mind. Nela, verifica-se um conjunto de informações que apenas seu titular traz consigo. Não se pode esquecer, todavia, que esses três institutos possuem a proteção de nosso ordenamento jurídico, devendo o intérprete se valer da intensidade da violação para determinar a ocorrência de dano.

A intimidade, na concepção jurídica, trata-se de um campo discreto frequentado unicamente pelo interessado. É o espaço em que vai encontrar consigo mesmo, sem qualquer acesso à curiosidade privada. Neste reino pode desfilar tudo que é mais precioso para a pessoa, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado.

Pode-se dizer até que, na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, nenhum dispositivo, ferramenta ou aplicativo será capaz de captar o que circula neste espaço reservado, de uso exclusivo de seu titular. Seria, também, numa breve comparação com o Direito, o foro privilegiado em que a competência para acusar e julgar cabe a uma única pessoa, já que no interior do homem é que habita a sua verdade, de acordo com Santo Agostinho.

A expressão peace of mind, que compõe a estrutura do estar só do direito americano, retrata fidedignamente a figura do homem que se afasta temporariamente do convívio com os demais e se recolhe ao seu castelo (my castle is my temple), local onde irá encontrar sua paz e o equilíbrio para desfrutar tudo que lhe for conveniente. Ali se sentirá o rei, o bedel e o juiz e pela sua lei será obrigado a ser feliz, segundo entoa a canção popular.

Pode-se falar até mesmo na aplicação do principium individuationis, que prega o predomínio da vontade do indivíduo, pois, ao recolher-se internamente, após fazer as escavações necessárias em busca de si mesmo, encontra a percepção da dimensão e da riqueza de sua singularidade, que jamais será desvendada pelo mundo exterior. "Assim, conforme conclui Alfieri, o indivíduo aprende, em um primeiro momento, a sua qualidade individual, a essência fundamental do seu ser consciente de si mesmo, e sente fluir no seu íntimo a amplitude de uma esfera interior"1. E, por incrível que pareça, como sói acontecer, em antagonismo inconsequente, o indivíduo abre mão de desfrutar o prazer de seu interior para se desnudar diante de uma rede social.

Costa Jr, com a precisão que lhe é peculiar, definiu a intimidade como sendo "a necessidade de encontrar na solidão aquela paz e aquele equilíbrio, continuamente comprometidos pelo ritmo da vida moderna, de manter-se a pessoa, querendo, isolada, subtraída ao alarde e à publicidade, fechada na sua intimidade, resguardada da curiosidade dos olhares e dos ouvidos ávidos".2

Este enunciado, por si só, deixa a entender que, no espaço reservado com exclusividade para o indivíduo, numa constante atividade solitária, nenhuma norma terá acesso, pois encerra um mundo puramente individualista, sem qualquer relação exterior envolvendo interesses políticos ou sociais. Faz lembrar o pensamento de Clarice Lispector: "Viver em sociedade é um desafio porque às vezes ficamos presos a determinadas normas que nos obrigam a seguir regras limitadoras do nosso ser ou do nosso não-ser... Quero dizer com isso que nós temos, no mínimo, duas personalidades: a objetiva, que todos ao nosso redor conhece; e a subjetiva... Em alguns momentos, esta se mostra tão misteriosa que se perguntarmos - Quem somos? Não saberemos dizer ao certo!!!."

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1 Alfieri, Francesco. Pessoa humana e singularidade em Edith Stein. Organização e tradução de Clio Tricarico. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2014, p. 83

2 Costa Jr., Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1970, p. 8.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado e reitor da Unorp.


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