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Meio ambiente X propriedade

A propriedade e a proteção ambiental, ao contrário do que se costuma propagar, aparentemente antagônicas, andam juntas, estão num mesmo plano jurídico, numa mesma ideia, ou sentido.

terça-feira, 5 de junho de 2018

Atualizado em 23 de setembro de 2019 17:13

Por conta do regime militar que se instalou no país (1964-1985), a Constituição Federal de 1988 foi promulgada somente após longo debate na sociedade, em prol da democracia. Realmente, a labuta esteve presente nos diversos setores da coletividade, universidades, públicas e privadas, professores e alunos, alguns órgãos de imprensa, políticos, artistas etc. É possível que tenha havido 'certa comoção social', visando ao restabelecimento da ordem jurídica.

Naturalmente, a maior parte dos anseios populares acabou sendo atendida, na elaboração dos trabalhos que redundaram na Constituição Federal. Apesar disso, muitos desejos do povo, incorporados à Constituição, tornaram-se obsoletos; outros, letras amorfas, mortas.

Sob certo aspecto, essa situação pode ser considerada normal, corriqueira, em virtude das mudanças sociais, da evolução - ou involução - da sociedade, em dado momento histórico. As concepções sociais modificam-se, ao longo do tempo, e aquilo que fora dado como corrente no meio social pode tornar-se inócuo, inconsistente e até mesmo ficar sem sentido, noutra época.

Sem embargo, 'todas' as normas constitucionais têm eficácia jurídica, pois visam atender, como primeira razão, a vontade popular. Logo, podem surgir 'conflitos' entre elas, por assim dizer, uma verdadeira 'colisão de normas' constitucionais.

Essa tensão [ou colisão] das normas constitucionais ocorre em muitos casos; neste momento, desejo destacar o meio ambiente em contraste [aparente] ao desenvolvimento econômico, o qual está ligado à livre iniciativa, à propriedade privada, ao patrimônio dos cidadãos. A opção, casuística, ocorre porque se comemora a semana internacional do meio ambiente (1º a 5 de junho).

Num primeiro momento, quiçá o mais importante, o Estado exerce 'poder de polícia' nos bens e nas pessoas, situados em seu território; são leis, atos e fatos administrativos tendo por objeto o tráfego de pessoas e o trânsito de veículos; a cidade e seu entorno; o ambiente etc.

No poder de polícia, há mera 'conformação do direito', isto é, singela 'configuração jurídica' da liberdade e propriedade das pessoas [Renato Alessi; Celso Antônio Bandeira de Mello]. As normas edilícias, as licenças ambientais e de construção são exemplos dessa atividade tipicamente estatal.

Todavia, em outras situações, o Estado 'intervém' na propriedade das pessoas, não para configurá-la aos ditames constitucionais e legais; vai além, pois há efetiva intervenção estatal, tais a desapropriação, a requisição [forçada] de bens e a servidão [administrativa, a exemplo do tombamento]. Nessas hipóteses, ocorre o denominado 'domínio eminente' do Estado, o qual advém, historicamente, da soberania estatal [Basavilbaso].

Num ou n'outro caso, as normas constitucionais de proteção ao ambiente proliferam, sendo despiciendo enumerá-las; além de constar em 'princípio geral expresso', no qual o 'Estado e a sociedade' tem o 'dever de proteger o ambiente' (art.225), há vários artigos, de natureza singular (porém, não de menor envergadura), os quais indicam, sem rebuços, a importância dada pelo Texto Constitucional à sadia qualidade de vida (art.5º, "caput").

Considera-se, pois, o ambiente, um 'direito difuso', espraiado por toda a sociedade (lei 8.078/90); inalienável e indivisível, irreprochável, constitui patrimônio público, ou melhor, 'patrimônio social'. Pertence a todos, indistintamente.

De outra parte, a Constituição garante a propriedade (e sua função social, quando cabível: art.5º, "caput"; XII e XXIII); bem assim a livre iniciativa, a livre concorrência e o desenvolvimento econômico, que são elementos ou configurações típicas do 'regime capitalista', exercido à medida dos ditames de justiça social, para garantir a todos existência digna (art.170, "caput").

Sem embargo, a atividade econômica deve observar alguns princípios, dentre os quais, além da propriedade privada e da livre concorrência, a defesa do consumidor e do 'meio ambiente'. (art.170, "caput").

Como 'todas' as normas constitucionais detêm eficácia, as duas ordens de casos (normas ambientais X normas de proteção à propriedades) devem ser conformadas, colmatadas, alinhadas, segundo 'critério de razoabilidade', [sempre] tendo em vista os 'princípios e regras do sistema jurídico', que lhes confira a 'tonalidade e os limites jurídicos', sem prejuízo das necessidades sociais.

Assim, a propriedade e a proteção ambiental, ao contrário do que se costuma propagar, aparentemente antagônicas, andam juntas, estão num mesmo plano jurídico, numa mesma ideia, ou sentido; qualquer extrapolação, excesso, ou desvio de finalidade, poderá levar à nulidade da lei ou do ato administrativo viciado, com os consectários legais, ou seja, indenizações às pessoas prejudicadas, ou correções das atividades supostamente ilícitas.

Daí porque: (a) se a norma jurídica impõe prevalência descabida, desmedida, da propriedade privada, em prejuízo ao ambiente, haverá inconstitucionalidade, em virtude dos malefícios proporcionados ao patrimônio social; (b) se a norma ambiental aniquilar, inviabilizar, total ou parcialmente, de maneira indevida, a propriedade privada, do mesmo modo, haverá inconstitucionalidade, devido a ofensa à garantia da propriedade (art.5º, CF).

Numa derradeira hipótese, não menos importante, (c) se o Estado, ao atuar de forma lícita, nos termos da Constituição e das leis, com finalidade de proteger o ambiente (ou outros valores de interesse público), inviabilizar, ou aniquilar, total, ou parcialmente, a propriedade de outrem, deverá indenizá-lo.

Trata-se do princípio da 'distribuição das cargas públicas' - uma pessoa ou um grupo de pessoas não pode suportar o ônus de beneficiar toda coletividade; precisa ser 'recompensada' pelo Direito, mediante ampla indenização. É um critério de justiça, de equilíbrio, de proteção aos cidadãos, por meio do qual evita-se o enriquecimento sem causa, propiciado por ação do próprio Estado.

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*Heraldo Garcia Vitta, advogado e consultor jurídico. Juiz federal aposentado. Mestre e doutor em Direito do Estado. Professor de Direito.

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