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O sentimento popular, o superego e o STF

Thiago Turbay Freiria

Em tintas fortes, o Supremo deve negar a chancela de receptáculo e profusor de sentimentos e anseios populares, sob pena de projetar prospectos autoritários, apartados da vinculação normativa estruturadas na Constituição.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Atualizado em 26 de setembro de 2019 16:48

O Supremo Tribunal Federal capitaneia em matéria penal uma legenda salvacionista, que corrói a legitimação Constitucional e sua higidez no plano social e na vida política.

A legitimação do tribunal se arvora, atualmente, numa fórmula clássica de fonte última da autoridade estatal, reforçando uma ultrapassada concepção piramidal do poder, vale dizer, o poder desce do vértice para a base.

Paira um programa idealista a par do desenvolvimento normativo, fazendo-se uso de argumentos silogísticos, objetivando a oxigenação da vida comunitária a partir de decisões judiciais, desnudando a matiz constitucional que opera e estabelece limites à interpretação.

Essencialmente, esse comportamento estampa um desvirtuamento institucional e, mais grave, realiza um poder pornográfico1. Não obstante, o exercício de um poder com desnivelamento da sua racionalidade induz um modelo performático, cuja orientação foge à vocação primária. É um negar a si, versado dentro de balizas ontológicas contraintuitivas, com uso excessivo da positividade política.

Nesse sentido, a conceituação, cunhada por Byung-Chul Han, de "pós-política" é perfeitamente justaposta. O advento da pós-política se equipara à despolitização, ao "partido sem cor"2. Nos seus dizeres: "A política é um agir estratégico. Já por causa disso lhe é própria uma esfera oculta [...]. Somente na teatrocracia é que a política aparece sem mistérios. Aqui a ação política dá espaço à mera encenação"3. A "teatrocacria", por sua vez, dá lugar à violência das necessidades sociais.

A questão não é meramente conceitual e encontra respaldo em manifestações recentes da corte constitucional. Em ilustração, a argumentação que triunfou ante a presunção de inocência desatou o entrave dialógico pelo "sentimento do povo"4. A premissa desnuda uma faceta que projeta no STF programas privativos e desencadeia um dispositivo propulsor de decisões meticulosamente forjadas por inspirações autoritárias.

Age, nomeadamente, como um agente moralizador, imbuindo-se de um modelo paternalista, conforme apontou Ingeborg Maus5, à luz do conceito psicanalítico. Esse papel condiciona uma "sociedade órfã", infantilizada e impotente frente à inconsciência da sua dependência institucional. Ingeborg Maus assim define: "Acompanha essa evolução uma representação da Justiça por parte da população que ganha contornos de veneração religiosa6".

A decisão judicial apoiada em um anseio popular contrasta com a própria densidade constitucional da norma objurgada7. Notadamente, a presunção de inocência não é mera "exortação moral"8, é matéria que propagada a força motriz normativa dos direitos fundamentais.

Ingeborg Maus traduz com perfeição o invólucro personalista que circunscreve a representação de 'teatrocrática' nas decisões judiciais: "Nessas representações se revela mais que em qualquer outro campo a atual tendência ao biografismo, que demonstra uma reação passiva da personalidade em face de uma sociedade dominada por mecanismos objetivos. O aspecto típico dessas biografias de juízes parece se configurar na ideia - que suscita algo como uma reedição dos antigos 'espelhos dos príncipes' - de que os pressupostos para uma decisão racional e justa residem exatamente na formação da personalidade de juízes9".

A ideia que se apresenta é de um mítico ordenador de um sistema superior ético e da consciência jurídica. Age como superego da comunidade, cuja centralização da consciência social na Justiça se arvora em uma oxidação do debate e dos contornos jurídicos que perfazem a ordem constitucional, eliminando discussões teóricas, por meio de silogismos subjuntivos.

Sem embargos, a crítica que se faz é de que a jurisdição constitucional, quando perfaz posição de instância maior da moral, bloqueia qualquer mecanismo de controle social, o que faz retroceder a sociedade e calcifica valores anti-democráticos.

À jurisdição penal constitucional não é salutar empreender o modelo de superego, o qual transmite a ideia de "portador da tradição"10 de valores e epifanias morais. A tarefa de imprimir expectativas e categorias imperativas não cabe ao tribunal. Os espaços de liberdades não podem ser comprimidos, transformando-os em produtos de decisões jurisdicionais.

Em tintas fortes, o Supremo deve negar a chancela de receptáculo e profusor de sentimentos e anseios populares, sob pena de projetar prospectos autoritários, apartados da vinculação normativa estruturadas na Constituição.

De volta ao prumo, cabe ao tribunal desnaturar representações judiciais tradicionalistas, invariavelmente autoritárias. Ao contrário daremos marcha à prática jurídica quase religiosa correspondente a uma veneração popular11, que se legitima de modo auto-referencial, como antídoto aos indesejados12, o qual não se pode administrar a dose.

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1 - Refiro-me ao conceito determinado por Byung-Chul Han em "Sociedade da Transparência" (2017, pg. 55), para quem o pornográfico é o sublime desnudado. Byung-Chul define a pornográfica como objeto sem forma, constituído a partir de um objetivo, sem rodeios.

2 - HAN, Byung-Chul. Sociedadade da Transparência / Byung-Chul Han ; trad. de Enio Paulo Gianchini. - Petrópolis, RJ : Vozes, 2017, pg. 22.

3 - Idem 2.

4 - HC 152.752/STF, julgado em 4 de abril de 2018.

5 - MAUS, Ingeborg. O Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na "sociedade órfã". Trad. Martônio Lima e Paulo Albuquerque. Revista Novos Estudos CEBRAP, nº 58, nov. de 2000, p. 186.

6 - Idem 5.

7 - Sustenta-se, aqui, o papel informador da presunção de inocência para toda a ordem constitucional, no tocante ao direito penal. Nesse sentido, extrai-se que a presunção de inocência atua como limite e critério condicionador das interpretações das normas (STC 109/1986, FJ. 1º).

8 - CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, pg. 184.

9 - Idem 5, pg. 185.

10 - Freud, Sigmund. A decomposição da Personalidade Psíquica. Frankfurt: Studienausgabe, V. 1, 1968, pg. 505.

11 - Idem 5, pg. 192.

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*Thiago Turbay Freiria é advogado formado pelo Instituto de Direito Público (IDP) e comunicação social pela UNESP, possui especialização em Governança e Compliance pela Universidade de Brasília (Unb).

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