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Restrições às artes e o insopitável mundo moderno

Quanto mais impossível alcançar com a mão o insopitável mundo moderno, mais se enxerga um dedicado braço duro e mão pesada, e sabidamente autoritária, àquilo que se consegue conter.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Atualizado em 26 de setembro de 2019 16:53

Quem lida com as artes tem denunciado frequentemente a existência de um crescente cerco legislativo em torno de performances, exposições, e demais manifestações artísticas, em geral. Quem advoga na área tem apontado, com preocupação, possível retrocesso advindo do excesso de regulações que avançam sobre o tema.

Para o leitor que não lida com a área nem nela advoga, um contundente exemplo do cenário que se avizinha é a repercussão acerca da recente e famigerada exposição "Queermuseu-cartografias da diferença na arte brasileira", alvo de duras críticas de grupos com visão mais conservadora, abrindo-se um debate amplo sobre o tema da liberdade de manifestação artística nos tempos atuais.

Fica no ar que grupos conservadores e nosso Estado, em exacerbado paternalismo, parecem querer saber mais do que os próprios pais como deve ser cuidado um filho. Fica a impressão de que se está retornando a uma sombra de passado censório.

Não acredito nisto.

Não por crer na ausência de paternalismo do Estado, menos ainda por crer que não haja crescente visão maniqueísta em importantes setores da sociedade civil, ou por deixar de notar que se resvala, vira e mexe, em atos de conteúdo censório.

Não acredito apenas que isso seja novidade, que tenha um dia deixado de existir para que, somente agora, o assunto tenha ganhado o status de preocupante.

Luiz Tatit, em estudo sobre a canção dos anos sessenta para o setenta, escreve: "a exclusão, na verdade, estava no ar, como fruto da mentalidade maniqueísta do momento que impedia a apreciação desinteressada dos artistas e de suas obras. A tela ideológica cegava a crítica (tanto a leiga como a profissional), impondo-lhe um olhar prevenido, às vezes preconceituoso, e desorientava os próprios artistas na condução de suas carreiras."1

A mim me parece que o texto acima poderia ser utilizado hoje, ontem, e amanhã, para retratar a visão com que o Estado e setores da sociedade abordam (não só) as artes no Brasil.

Quem se chocará com a afirmação de que o Estado brasileiro, suas leis, e, claro, o próprio brasileiro, são, em diversos momentos, autoritários? Quem duvidará de que uma das expressões de autoritarismo é a visão dedicada ao cuidado paternalista? Qual será a surpresa de se dizer que paternalismo e autoritarismo dividem no lugar de somar, excluem no lugar de assimilar, e impõem uma visão binária, compartimentada, maniqueísta de mundo?

Tatit contextualizou o que citei acima no momento exato em que o maniqueísmo trazido pelas canções de protesto fazia brotar o gesto assimilador do tropicalismo, que tudo deglutia, tudo absorvia. (TATIT, P.211)

Creio que o enredo atual seja o mesmo, o gesto tropicalista, no entanto, falta.

Não há mais quem se arrisque a dizer o que pensa e a enfrentar as visões obtusas. Se há algo de novo no ar é esse temor.

Além do temor, há também a novidade de ser, no cenário atual, total e absoluta a impossibilidade de se restringir conteúdos, sobremaneira, em razão da sua inevitável difusão pela internet.

E tal fato traz um ar quase anedótico às tentativas perpetradas pelo Estado e por setores da sociedade civil.

Afinal, o cidadão passa quase 24 horas por dia na frente de uma tela de computador ou celular, com todo o conteúdo mais devastador possível à sua frente, sem que isso tire o sono dos vigilantes, mas, quando aquele cidadão vai ao cinema, museu etc, o Estado entende por bem sair a campo para proteger os desprotegidos.

Quanto mais impossível alcançar com a mão o insopitável mundo moderno, mais se enxerga um dedicado braço duro e mão pesada, e sabidamente autoritária, àquilo que se consegue conter. Ou seja, como não se pode impedir o que não se enxerga, tornar-se intolerante ao máximo com o que se enxerga passa a ser a solução encontrada.

Parece a mim ilógico. Parece mais, parece hipócrita.

Mas paro com os adjetivos, já os trouxe em abundância. Melhor será cobrar de todos nós, carrascos e vítimas, causa e efeito do Estado brasileiro e seus setores, uma atitude substantiva, e, para tal, recobro o mencionado gesto do Tropicalismo, da assimilação dos opostos, dos diferentes, como uma reação formativa de um Estado mais justo, dialógico, democrático.

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1 TATIT, L. O Século da Canção. São Paulo: Ateliê, 2004.
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*André Marsiglia Santos é advogado do escritório Lourival J. Santos - Advogados.

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