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A validade da autodeclaração no âmbito da gratuidade de Justiça

Presunções baseadas em autodeclaração não devem prosperar no ordenamento. Este requisito traz incertezas e insegurança jurídica, além de fomentar fraudes e iniquidades.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 13:18

I - Introdução

Ao ensejo da recente alteração veiculada pela reforma trabalhista no tocante à concessão da gratuidade no âmbito da Justiça obreira, torna-se imperioso apresentar uma abordagem desafiadora sobre esta questão, pautada especialmente na hermenêutica constitucional.

É inegável que a possibilidade de ajuizamento de ação judicial sem o pagamento de quaisquer despesas, sobretudo em um país com severas desigualdades econômicas e sociais, vai ao encontro do efetivo exercício da cidadania. Permitir o acesso à Justiça aos indivíduos que não dispõem de recursos financeiros edifica os alicerces do Estado social.

Celebrando o acesso à Justiça a todo cidadão, independentemente de sua capacidade financeira, como um direito fundamental, emerge um ponto ao qual não é dada a devida relevância acadêmica: quem seriam os legítimos beneficiários da garantia constitucional de ir a juízo sem custos e sem ônus em caso de sucumbência? Como aferir a impossibilidade de arcar com estes custos inerentes ao processo judicial?

II - As disposições sobre o tema na história constitucional brasileira

Sobre o tema, imperioso constatar a alteração da regra constitucional quanto à concessão da gratuidade de Justiça ao longo da Constituições brasileiras. Nesta esteira, releva notar a similitude entre as previsões pretéritas em contraponto ao novo comando que surge com a atual lei fundamental, especificamente em relação ao poder delegado ao legislador ordinário.

A Constituição de 1934 inaugurou os fundamentos constitucionais da assistência judiciária gratuita no Brasil. Com o advento desta previsão constitucional, tirante a Constituição de 1937, todas as demais leis fundamentais trouxeram disposições sobre o tema.

Por sua inegável relevância histórica, vale transcrever o item 32, do art. 113, da carta política de 1934: "32) A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária, criando, para esse efeito, órgãos especiais assegurando a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.".

Como já registrado, a Constituição de 1937 foi silente no tocante à assistência judiciária. tal previsão retorna ao patamar constitucional com a Carta Magna de 1946, com um aspecto marcadamente distinto da previsão anterior, vide o preconizado no item 45, do art. 141, da aludida Constituição "o Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.".

A nova característica do texto constitucional é seguida nos preceitos das Constituições de 1967 e sua emenda modificativa 1, de 19691. O § 322, do art. 150, da CF/67 e o §323, do art. 153, da CF/69, com idêntica redação, apresentam a mesma essência e intento do comando inserto na lei fundamental de 1946.

Assim, nota-se que os dispositivos constitucionais que dispuseram sobre o acesso sem custas ao Poder Judiciário, a partir da CF/46 delegaram à lei infraconstitucional a regulamentação dos beneficiários desta garantia. Caberia a lei definir plenamente o modo de concessão da assistência judiciária, versando, inclusive, sobre os necessitados aos quais o texto constitucional vigente à época fazia alusão.

Da mera análise da sucessão temporal dos dispositivos constitucionais sobre o tema, depreende-se a manifesta intenção do Poder Constituinte originário de delegar ao legislador ordinário a parametrização integral desta garantia.

Com o advento da CF/88, surgem grandes avanços no tocante ao acesso à Justiça para os economicamente desfavorecidos. O atual texto constitucional incrementou esta garantia ao prever como dever estatal, para além da assistência judiciária, a prestação de assistência jurídica integral e gratuita4. Este novo enunciado é mais abrangente, abarcando atos judiciais e extrajudiciais, inclusive aconselhamentos e assessoramentos jurídicos.

Por outro lado, a nova regra se apresentou marcadamente distinta das anteriores também quanto à delegação legislativa referente à parametrização dos beneficiários deste direito fundamental. A nova redação constitucional não prevê que os requisitos à concessão da assistência jurídicas sejam regulamentados integralmente por lei ordinária. A expressão "na forma da lei" foi suprimida do texto, após reiteradas previsões neste sentido.

O hodierno dispositivo constitucional é claro e direto ao instituir que assistência será prestada aos que demonstrarem insuficiência de recursos. Em outras palavras, pela simples leitura deste comando normativo, extrai-se a existência de um requisito constitucionalmente previsto, qual seja, a comprovação da carência econômica. Outros requisitos, bem como o modo para a análise e deferimento deste direito, permaneceram sob a égide da legislação infraconstitucional.

III - A legislação infraconstitucional

No plano infraconstitucional, coube a lei 1.060/50 o grande protagonismo em matéria de gratuidade de Justiça na ordem jurídica pátria. Também conhecida como lei de assistência judiciária, esta legislação disciplinou o tema desde sua vigência, na ordem constitucional de 1946, permanecendo em vigor até o presente momento, com alterações à sua redação original.

Volvendo ao núcleo do trabalho ora apresentado, a modificação introduzida pela lei 7.510/86 à lei 1.060/505 apresentou profundo impacto nas relações processuais ao prever o gozo deste benefício mediante auto declaração do requerente. O art. 4º da lei 1.060/50, com a redação trazida pela lei 7.510/86, inovou ao excluir o ônus da parte solicitante de apresentar indícios relativos à sua insuficiência financeira6.

Surgiu no ordenamento, portanto, uma presunção relativa de insuficiência de recursos mediante simples afirmação. Este dispositivo legal, com a redação de 1986, foi revogado pelo CPC de 2015.

Com o advento do atual CPC, emergiram novas regras sobre a matéria na ordem jurídica nacional. A novel legislação, inclusive, afasta importantes dispositivos da lei 1.060/50.

Se por um lado o CPC/15 avançou no que tange à adequação de seus dispositivos à denominação da garantia prevista e a positivação de práticas e entendimentos já consolidados nesta área, por outro foi discreto ao não parametrizar pressupostos objetivos para o deferimento da gratuidade de Justiça.

Neste particular, o atual legislador manteve a essência do regido na lei 1.060/50, mesmo revogando seu art. 4º7, que içava a simples afirmação da parte requerente ao patamar de presunção relativa de hipossuficiência. O art. 99, §º 3º8, do CPC/15 é ainda mais literal que o dispositivo anterior, sobretudo por ressaltar que a alegação do solicitante será presumida como verdadeira. Esta presunção atine aos pedidos formulados por pessoas físicas, não sendo aplicável aos pedidos de pessoas jurídicas.

IV - A comprovação de insuficiência de recursos e a autodeclaração

Apresentados os dispositivos vigentes e pretéritos acerca do tema, emergem as indagações (i) a mera declaração é o meio apto a atender ao requisito constitucional insculpido no inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88? (ii) a autodeclaração tem densidade para comprovar a carência financeira do requerente? Não nos parece.

Partindo-se dos métodos clássicos de interpretação normativa, pode-se construir o arcabouço hermenêutico a inviabilizar a aceitação da força presuntiva da autodeclaração.

Em primeiro lugar, o enunciado do inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88, de forma direta e irrefutável, determina que o candidato ao benefício em exame comprove sua insuficiência de recursos. Mesmo com a perda de prestígio da interpretação literal no meio jurídico, especialmente quanto aos dispositivos constitucionais, não se pode simplesmente negar relevância à expressão "que comprovarem insuficiência de recursos", contida no dispositivo constitucional supra referido.

A boa hermenêutica prescreve inexistir palavras desnecessárias nos textos normativos, notadamente nas Constituições. Cada expressão tem um valor, um significado, um objetivo proposto pelo Poder Constituinte ou pelo legislador ordinário. O limite e o ponto de partida do intérprete deve ser a redação da norma. Extrapolar os limites das decisões da Assembleia Constituinte ou do parlamento, sem um substancioso fundamento interpretativo, vai de encontro ao princípio democrático.

Cotejando-se os métodos histórico e teleológico, torna-se imperioso rememorar os dispositivos sobre o tema nas Constituições brasileiras de 1946, 1967 e 1969. Nestes textos constitucionais, houve clara intenção do constituinte em delegar a total regulamentação desta garantia fundamental ao legislador ordinário. Os enunciados normativos presentes nestas Constituições não continham nenhuma parametrização, ao reverso, permitiram que conceitos, legitimados e outras questões fossem regidas "na forma da lei".

O Poder Constituinte Originário de 1988, cioso da delegação legislativa das Constituições anteriores, preferiu retirar a expressão "na forma da lei" do dispositivo e estabelecer de antemão o requisito constitucional da comprovação de insuficiência de recursos. Cabe ao ato normativo infraconstitucional criar os parâmetros objetivos para o cumprimento deste pressuposto. Esta é a finalidade do comando normativo contido no inciso LXXIV, do art. 5º, da CF/88, caso contrário não seria alterada a redação utilizada em três Leis Fundamentais seguidas.

Por derradeiro, compulsando-se o art. 5º, da CF/88 e tendo em vista a ideia de unidade e harmonia de suas previsões, releva notar a redação dos incisos LXXVI9 e LXXVII10 em contraste à do LXXIV11, objeto deste trabalho. Os três preceitos tratam indiretamente de requisitos para a obtenção de prestações gratuitas por aqueles que assim necessitem. Enquanto nos incisos LXXVI e LXXVII, a definição dos requisitos para a isenção de despesas é elucidada "na forma da lei", no inciso LXXIV tal isenção pressupõe a comprovação de insuficiência de recursos.

Logo, interpretando-se sistematicamente a CF/88, onde o todo normativo não é apenas a soma de várias partes independentes entre si, infere-se existir um requisito constitucional para a obtenção da assistência jurídica integral e gratuita, qual seja, a demonstração de carência financeira. Por outro lado, no tocante à gratuidade da certidão de nascimento e de óbito, bem como dos atos necessários ao exercício da cidadania, a lei tem discricionariedade para fixar os parâmetros.

A propósito, não apresenta boa técnica interpretativa, data maxima venia, o fundamento de que a autodeclaração simplifica o deferimento desta garantia fundamental. A pretendida simplificação pode ser substituída por critérios objetivos, tais como análise da declaração de imposto de renda da pessoa física, como já utilizada comumente na prática forense12.

Finalmente, presunções baseadas em autodeclaração não devem prosperar no ordenamento. Este requisito traz incertezas e insegurança jurídica, além de fomentar fraudes e iniquidades.

VI - Conclusão

Negar presunção à autodeclaração não fere núcleo essencial deste direito fundamental. Ao contrário, o atual texto constitucional, sob todos os prismas interpretativos, está em dissonância à possibilidade de autodeclaração por exigir a demonstração de insuficiência de recursos em seu art. 5º, LXXIV.

O hodierno dispositivo constitucional é deliberadamente claro e objetivo. No mesmo sentido, houve manifesta intenção do Poder Constituinte originário de alterar a tradição normativa sobre o tema presente nas Constituições anteriores, seja pelo exame teleológico e histórico, seja pelo exame sistemático. Ao ensejo, a aplicação de uma lei inconstitucional representa afastar a supremacia da Constituição.

Portanto, a comprovação de insuficiência de recursos é uma exigência indelével da CF/88, um requisito fundamental, sob todas as perspectivas, para a concessão da gratuidade de Justiça. Assim, não há interpretação possível a compatibilizar a presunção insculpida no art. 99, § 3º, do CPC/15 com a exigência do art. 5º, LXXIV, da CF/88.

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1 Que embora formalmente seja uma emenda, materialmente fundou uma nova ordem constitucional.

2 "§ 32. Será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei.".

3 "§ 32. Será concedida assistência jurídica aos necessitados, na forma da lei.".

4 "Art. 5º (...)

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;".

5 "Art. 4º A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.

§ 1º Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.".

6 A redação original deste dispositivo assim preconizava: "Art. 4º A parte, que pretender gozar os benefícios da assistência judiciária, requererá ao Juiz competente lhes conceda, mencionando, na petição, o rendimento ou vencimento que percebe e os encargos próprios e os da família.".

7 Com a redação dada pela lei 7.510/86.

8 "Art. 99. O pedido de gratuidade da Justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.

(...)

§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural."

9 LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei: (sem grifos no original)

a) o registro civil de nascimento;

b) a certidão de óbito;

10 LXXVII - são gratuitas as ações de "habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania; (sem grifos no original)

11 LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; (sem grifos no original)

12 O enunciado 38, do FONAJEF (Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais) prevê de modo semelhante: "A qualquer momento poderá ser feito o exame de pedido de gratuidade com os critérios da lei 1.060/50. Para fins da lei 10.259/01, presume-se necessitada a parte que perceber renda até o valor do limite de isenção do imposto de renda."

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*Felipe Pavan Ramos é advogado da União, especialista em Advocacia Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, e mestre em Direito Público pela Universidade Nova de Lisboa.

 

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