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O incerto futuro das indicações geográficas no acordo de livre comércio em negociação entre o Mercosul e a União Europeia

A lista europeia foi publicada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, abrindo prazo para qualquer interessado manifestar-se, mas ainda não há dados oficiais sobre as potenciais objeções.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Atualizado em 11 de outubro de 2019 17:16

Em setembro deste ano, no calor da instabilidade econômica na Argentina e do processo eleitoral brasileiro, reiniciaram-se as rodadas de negociação do Acordo de Livre Comércio entre a União Européia e o Mercosul, em curso há quase vinte anos. Com a Venezuela suspensa do tratado desde 2016, Argentina, Paraguai e Uruguai acompanharam o Brasil nas tratativas com o bloco europeu.

No contexto destas negociações, o tema das indicações geográficas sempre foi um assunto sensível. Indicações geográficas são sinais distintivos (nomes, palavras, símbolos) usados para identificar a origem geográfica de produtos ou serviços provenientes de localidades que tenham se tornado prestigiadas ou conhecidas em relação a tal produto ou serviço; ou quando esta mesma origem geográfica seja determinante de uma característica ou qualidade de um produto ou serviço.

Tradicionalmente, indicações geográficas comportam duas categorias de sinais: as indicações de procedência, relativas regiões ou localidades cujos produtos ou serviços gozem de determinada reputação (como, por exemplo, chocolates suíços, perfumes franceses, cutelaria alemã, rendas nordestinas, entre outros) e as denominações de origem, referentes a regiões ou localidades cujos fatores geográficos (clima, latitude, altitude, composição de solo, umidade etc.) ou humanos (modo tradicional de produção, por exemplo) conferem certas qualidades e características intrínsecas aos produtos (Bordeaux, Champagne, Cognac etc.).

Dentre as indicações geográficas mais conhecidas, estão diversos produtos do continente europeu, berço do sistema legal de proteção a estes sinais distintivos agregadores de valor no comércio internacional. Basta mencionar as indicações geográficas de queijos, vinícolas, azeites, embutidos e tantos outros produtos alimentares de prestígio e valor diferenciados, desde o desenvolvimento do comércio transnacional e abertura de rotas no final do período medieval.

No Brasil, o fomento à cultura de indicações geográficas é bem mais recente. Apesar de sua enorme extensão territorial e da diversidade de ecossistemas, o Brasil não tinha, até o ano 2002, nenhum pedido de indicação geográfica para produtos ou serviços nacionais. O exemplo da APROVALE, associação dos produtores da região do Vale dos Vinhedos, apoiada pela EMBRAPA e por universidades federais, foi paradigmático. Hoje, Vale dos Vinhedos é uma denominação de origem para vinícolas, acompanhada por mais dez denominações de origem brasileiras (dentre elas, a região do cerrado mineiro, para cafés, litoral norte gaúcho para arroz, Costa Negra, para camarões da região do Baixo Acaraú, no Ceará) e cinquenta indicações de procedência nacionais (incluindo Alta Mogiana, para cafés; Paraty para aguardente; Vale dos Sinos, para couros; São João Del-Rey para estanhos; e Canastra, para queijos, dentre outras). No site do INPI, é possível acessar a lista das indicações de procedência concedidas e a lista das denominações de origem concedidas, bem como acompanhar o andamento dos pedidos.

No contexto do comércio internacional, os países europeus vêm pressionando as demais nações quanto à adequada proteção das indicações geográficas para impedir seu uso indiscriminado por produtores que não possuam vínculo com a região de origem. Os conflitos podem se tornar complexos, sobretudo, em função do uso destes sinais por imigrantes oriundos das regiões produtoras, instalados nos novos continentes, como a América e a Austrália, e, em alguns casos, transformando indicações geográficas como sinônimos de categorias de produtos. No Brasil, linguiça calabresa e queijo parmesão são exemplos de indicações geográficas que perderam sua distintividade para indicar produtos vindos das respectivas regiões italianas.

Para disciplinar estas questões, tratados multilaterais como o TRIPS (ADPIC, em português, para Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio) estabelecem regras que levam em consideração diversos critérios de solução, como a boa fé e a prolongação do uso do sinal no território que não corresponde à origem do produto. Além das regras de disciplina pelos acordos multilaterais, as partes podem solucionar seus conflitos de interesses por meio de acordos bilaterais diretos. No segmento vitivinícola, a União Europeia celebrou acordos bilaterais com países conhecidos como "novos produtores", como é o caso da Austrália e do Chile.

Estrategicamente, o Mercosul vincula a negociação de um possível acordo com a União Europeia sobre indicações geográficas à agenda de negociações para a facilitação das exportações de seus produtos agrícolas ao Velho Continente, face ao forte regime de subsídios acordados aos produtores locais europeus. O bloco latino vem demandando propostas mais atraentes da União Europeia para abrir a entrada de carne bovina, açúcar e etanol, produtos que ainda sofrem restrições de cotas e barreiras relevantes A Comissão europeia para o Livre Comércio, por sua vez, critica o foco dos países do Mercosul nas exportações à China e à Ásia, bem como o dito protecionismo industrial no segmento de produtos químicos.

Neste contexto, os blocos trocaram listas com as indicações geográficas que pretendem reconhecer e proteger diretamente. Da lista da UE constam 347 IGs contra apenas 200 na lista do Mercosul. Há, nessa discussão, questões delicadas a serem endereçadas, como as indicações geográficas que se tornaram uso comum no Brasil, tais como parmesão, gorgonzola, cava, brie, feta e parmigiano.

A lista europeia foi publicada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, abrindo prazo para qualquer interessado manifestar-se, mas ainda não há dados oficiais sobre as potenciais objeções.

À imprensa, Rodolfo Nin Novoa, chancelar do Uruguai, país que preside o Mercosul, afirmou que o bloco almeja fechar acordo de livre-comércio com a UE no primeiro trimestre de 2019, antes da mudança do Parlamento da União Europeia. Com a recente posse do novo governo do presidente Jair Bolsonaro, espera-se que seja definida uma agenda para este importante acordo.

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*Laetitia d'Hanens é sócia no Gusmão & Labrunie - Propriedade Intelectual.

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