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O conflito de quase todo calouro: boas-vindas!

A verdade é absolutamente variável, tendo por base a alteração dos critérios que a fundamente. Se não fosse assim, a linguística não seria nossa ferramenta, vez que é através dela que se cria fundamentos para decidir e argumentos para sustentar.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Atualizado em 14 de outubro de 2019 17:55

Quase todo graduando em Direito fatalmente se perguntará em algum momento da sua vida acadêmica: Afinal, Direito é ciência, arte ou técnica? O que significa compor um corpo de estudantes de direito?

Na verdade, após alguma reflexão o número de questões e a complexidade destas aumentam porque os primeiros anos do curso, para aqueles não afetos ao pensamento cientifico, parecem ser intermináveis.

O ingresso no curso de Direito não compreende que este ramo das ciências sociais aplicadas se sujeita a compreensão de que o Direito é ciência e técnica, simultaneamente.

Portanto, falar em Direito é bem menos que falar em ciências jurídicas, apesar de esta ser um desdobramento daquele.

Ciências jurídicas é o conjunto de conhecimentos sistematizados, concatenados e ramificados que pretende descrever, explicar a realidade (qualificando fatos cotidianos como fatos jurídicos, impondo às relações humanas o status de relações jurídicas) e propor formas de solucionar crises jurídicas e, por fim, ordenar a sociedade.

De maneira alguma, no universo das ciências jurídicas descrevem-se leis observadas. O movimento é contrário, ao que, por exemplo, Newton fez. Nas ciências jurídicas prescrevem-se normas (estas não são sinônimos de lei) aptas e bastantes à propiciar a paz social, a criar parâmetros mínimos de convivência entre indivíduos, e, em grau mais elevado, promover o controle social.

Evoluindo no curso o graduando perceberá que o Direito é também técnica, em outras palavras, estrutura métodos (processos, procedimentos) para prescrever normas e garantir sua incidência no mundo da vida. A aplicação da técnica conduz a resultados (prevenir e corrigir crises e gerir relações jurídicas).

Neste sentido, a ciência e a técnica Jurídicas poderiam ser representadas por asas de um grande avião, já que o trabalho simultâneo de ambas garante estabilidade, segurança e resultado.

Daí porque pensar no Direito como ciência e técnica é possibilitar ao profissional (que é o jurista) fazer do seu escritório/gabinete/sala de aula um grande laboratório e fazer do seu caso, da sua hipótese um objeto.

Outra questão muito importante que surge quando desta reflexão diz respeito ao método e ao instrumento.

Se a matemática é essencial para as ciências exatas, vez que é o instrumento que comunica os saberes produzidos e/ou observados, para o Direito a linguagem é indispensável.

A linguagem tem o condão de não só comunicar os saberes produzidos e/ou observados e/ou criados tem como atributo o simbolismo. É que pelas estruturas linguísticas traz-se a existência coisas que inexistem no mundo real.

A linguagem faz com que o intangível tome forma, que o abstrato se torne concreto. Não é assim? Basta pensar nos institutos, princípios, etc., etc... pessoa jurídica, empresa, dignidade da pessoa humana, contrato, obrigação, entre outros.

Não é demais dizer que a linguagem se expressa no mundo da vida por signos registrados, por sons e por gestos. Ela nada mais é que uma ferramenta para expressar realidades (criadas ou existentes).

Mais conflitos tomarão conta do calouro do curso de Direito, talvez sejam, entre outros:

1 - compreender que o eventual envolvimento do agente (cientista, "o jurista") com o objeto não macula a cientificidade do estudo ao ponto de torna-lo descartável. Porque sendo complexa a realidade (se é que não poderíamos dizer realidades), somente se faz ciência a partir de pequenos recortes. Além do mais, a dialética certamente, dará conta de corrigir vícios e imprecisões.

2 - compreender que a possibilidade de variação de resultados quando da replicação de experimentos não rompe com a cientificidade do Direito, ao contrário gera insegurança jurídica, que, ressalte-se, vem sendo superada por várias técnicas; a saber: súmulas vinculantes, ações constitucionais com efeitos erga omnes, repercussão geral, recursos repetitivos, etc.

3 - e, por fim, compreender que no Direito a ideia de postulados (verdades que se concretizam em decorrência da sua comprovabilidade, irrefutabilidade e infalibilidade)não é um critério apto a conferir cientificidade ao Direito (tanto é que a relativização da coisa julgada é objeto de estudo de uma forte corrente acadêmica, sem esquecer-se da ação rescisória). Isto porque o Direito modernizou-se no tempo admitindo, portanto, que as verdades são construídas, porque múltiplos são os referenciais. Logo, a verdade é absolutamente variável, tendo por base a alteração dos critérios que a fundamente.

Se não fosse assim, a linguística não seria nossa ferramenta, vez que é através dela que se cria fundamentos para decidir e argumentos para sustentar.

Superada a primeira fase do caminho, possivelmente, os "profissionais do Direito" concluirão que serão perpetuamente alunos, doutores e, sobretudo, incrédulos.

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*Virgínia P. A. Torre é advogada e sócia da VAT-CONSULTORIA, especialista em Contencioso Cível com expertise em direito securitário, graduada pela PUC-MG, pós-graduada pela UFF, em Direito da Administração Pública, pela FUMEC - Direito e Processo do Trabalho e, pela Anhanguera, em Direito Processual Civil.

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