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Por que uma reforma constitucional via lei ordinária: o que tens a esconder?

A proposta de política pública contra a corrupção e "anticrime", apresentada pelo Ministério da Justiça, traz, apenas e tão só, o aumento da repressão penal e a retirada de garantias constitucionais conquistadas ao longo de décadas de debates.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Atualizado às 08:11

O tema "Segurança Pública" será muito debatido nos próximos dias, justamente pelo conteúdo do projeto de alteração legislativa proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal. É preciso destacar que o aumento dos crimes violentos nos impõe a noção de que as instituições responsáveis pelo enfrentamento da questão não estão suficientemente preparadas e, mais ainda, o debate ganha força no momento delicado de acirramento ideológico.

O referido projeto de alteração legislativa traz diversas novidades penais, processuais penais e de execução penal, como a alteração dos critérios à propositura dos embargos infringentes, o maior rigor no cumprimento de penas, em especial no cumprimento de pena (definitiva ou provisória) pela prática de crimes hediondos, a antecipação do julgamento pelo Tribunal do Júri a partir da decisão de pronúncia, dentre outras medidas de duvidosa constitucionalidade. Ademais, há outras situações, no mínimo, curiosas as quais merecem maior atenção, contudo, basta mencioná-las e refletir um pouco para tentar entender as peripécias argumentativas trazidas pelo projeto. São, pelo menos, cinco situações: i) alteração do texto Constitucional via legislação ordinária, no momento em que altera o Código de Processo Penal e determina que o Tribunal de Apelação, diante da condenação, execute a pena e, em casos excepcionais, suspenda aquela execução, isto é, "revoga" a Constituição Federal no ponto específico da presunção de inocência, instituindo a culpa como regra e a inocência como exceção; ii) nominar, em texto de lei (Lei de Lavagem de Capitais) organizações criminosas existentes no Brasil, isto é, o "Primeiro Comando da Capital", o "Comando Vermelho", a "Família do Norte", o "Terceiro Comando Puro", o "Amigo dos Amigos", e as "Milícias", em um evidente acidente traumático epistemológico; iii) possibilidade de acordos entre o Ministério Público e os réus como alternativa ao processo penal, inspirado no modelo americano do plea bargain, num sistema "negocial" pleno de possibilidades de acusações abusivas; iv) gravações de áudio e vídeo das conversas íntimas entre presos e seus familiares, amigos e, inclusive, com seus advogados e, por fim; v) a criação de uma excludente de ilicitude "excepcional" (aqui há uma espécie de "pleonasmo vicioso", já que a excludente de ilicitude é uma exceção), isto é, o projeto cria uma "nova" espécie de legítima defesa, ao permitir que o agente policial ou de segurança pública, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previna injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem ou ainda para prevenir agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. A "aparente" desnecessária inovação, cumpre um papel importante: cria, com esta legislação penal do ódio, a autorização para matar os indesejados. É a criação, no Estado Democrático de Direito, de nossos "homo sacers".

O questionamento a se fazer é: diante de uma proposta de alteração legislativa tão esdrúxula, criminosa e ausente o mínimo conteúdo constitucional, qual o motivo de sua apresentação? Será uma jogada política, meticulosamente conspirada para, diante de eventual derrota no Congresso Nacional, o atual Ministro de Justiça capitalizar simpatia eleitoral e votos com a população ensandecida por sede de punição? Por outro lado, em eventual vitória no Congresso Nacional, o Ministro da Justiça será guindado ao posto de Herói Nacional pelo enfrentamento ao crime organizado, à corrupção no Poder Público e à impunidade? Importante perceber que, em quaisquer das duas situações, o Ministro da Justiça sai fortalecido, em especial porque joga o jogo político sozinho, de forma autônoma. Aparece na mídia na defesa da democracia, da moral e da justiça.

A proposta de política pública contra a corrupção e "anticrime", apresentada pelo Ministério da Justiça, traz, apenas e tão só, o aumento da repressão penal e a retirada de garantias constitucionais conquistadas ao longo de décadas de debates, as quais desaparecem numa canetada nesta aventura política protagonizada pelo Ministro da Justiça, representam retrocessos civilizatórios que se fundamentam nos princípios de Direitos Humanos reconhecidos no plano internacional por meio de inúmeros documentos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, as Convenções internacionais no plano do sistema interamericano, europeu e da ONU. Tais propostas apenas têm efeito publicitário expressando o senso comum punitivista. Não é uma proposta séria, no sentido de se esperar alguma alteração (para melhor) nos níveis de segurança e diminuição da violência no Brasil. O Projeto Autoritário se consolida no momento que se percebe a ausência de qualquer debate público sobre a proposta apresentada. Pelas palavras do Ministro da Justiça é possível perceber o culto à autoridade intelectual, personificada por ele mesmo, a exclusividade do domínio da verdade e o desprezo arrogante à comunidade científica.

Isso é só o começo. A característica mais marcante da irracionalidade do sistema de segurança pública nacional está fincada em sua estrutura organizacional prevista na Constituição Federal de 1988, a qual não conseguiu estabelecer competências aos entes federativos de forma suficiente para gerar autonomia e responsabilidades, isto porque, por exemplo, concentrou os poderes nas mãos das polícias estaduais, atribuindo pouca competência à União e aos Municípios - com a prerrogativa de constituir Guardas municipais. Este ponto (as competências dos entes federados) o projeto de lei apresentado não contempla, o que é lamentável, pois não existe proposta de Segurança Pública séria quando se ignora as estruturas de poder. Qual o motivo? Ora! Isso mexe num lugar que o Ministro não quer tocar. É evidente que o combate à corrupção, o endurecimento de penas e o aumento do encarceramento não são suficientes para estancar o aumento da criminalidade violenta, mormente porque não faz o enfrentamento das questões estruturais, como, por exemplo, o funcionamento das polícias e as competências dos Estados e Municípios na questão da segurança pública.

Para enfrentar esta disputa, é necessário afirmar um programa de reformas com ampla participação da sociedade civil, tendo como norte a adoção de políticas no campo da segurança pública, as quais, necessariamente, devem incluir debates sobre: i) a retomada de propostas de policiamento comunitário; ii) políticas de redução de danos para muitos tipos de comportamentos; iii) a desmilitarização das polícias; iv) a ampliação do esclarecimento dos crimes violentos, em especial contra a vida; v) fim dos autos de resistência; vi) mudanças substanciais na atual lei de drogas; vii) o fortalecimento e legitimação dos mecanismos institucionais de mediação de conflitos alternativos à prisão.

Estes debates não foram enfrentados pelo projeto apresentado pelo Ministério da Justiça, certamente porque o objetivo não é melhorar a segurança pública.

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*Sergio Graziano é advogado em Santa Catarina, doutor em Direito pela PUC-RJ e pós-doutor em Ciências Criminais pela PUC-RS.

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