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Admirável mundo novo, por Luis Felipe Salomão

Admirável mundo novo

Na trincheira do contencioso judicial, o Juiz é responsável direto pela aplicação correta da lei, pela segurança jurídica e pelo restabelecimento da paz social, abalada pelo conflito.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Atualizado às 09:29

O título remete ao livro referência, escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932, que narra a história de uma sociedade futurista, em que seus habitantes passam por um pré-condicionamento biológico e psicológico para que vivam em harmonia com as leis sociais e com um sistema de castas. A história se passa em Londres no ano 2540 (632 DF- "Depois de Ford" - no livro), o romance antecipa desenvolvimentos em tecnologia reprodutiva, hipnopedia, manipulação psicológica e distopia, que se combinam para mudar profundamente a sociedade.

É, pois, neste mundo novo que parece extremamente relevante uma reflexão sobre o momento atual do Poder Judiciário, sobre o rumo até aqui, e - claro - as estradas a serem percorridas.

Lembrei-me da escultura retratando a imagem do Deus romano Jano, que chama a atenção no Museu do Vaticano. Destronado, Jano passou a ser dotado de rara prudência, permitindo que visse sempre o passado e o futuro diante de seus olhos, motivo pelo qual é representado com duas caras voltadas em sentidos inversos. O mês de janeiro (januarius), ao qual o rei Numa deu o seu nome, era consagrado a Jano. Deus romano das mudanças e transições, Jano é o Deus dos "inícios, das decisões e escolhas". Mas é também o Deus da paz, da reflexão, assim acreditavam os antigos.

Não foi por acaso que escolhemos este início de ano de 2019 para trazer a público a Pesquisa "Quem somos: a magistratura que queremos", após quase um ano de trabalho profícuo envolvendo juízes e sociólogos. A equipe dos Professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho e Marcelo Balmann Burgos é praticamente a mesma da pesquisa anterior - "O perfil do Magistrado brasileiro" -, apresentada há mais de duas décadas. Naquela época, como juiz substituto, participei com entusiasmo da elaboração dos questionários, e acompanhei com vibração cada descoberta sobre o avanço da pesquisa. Agora, a partir do convite do Presidente da AMB, Juiz Jayme Martins de Oliveira Neto, tive a honra de coordenar o grupo de magistrados, constituídos pelos colegas Durval Rezende Filho Marcia Hollanda, Michelini Jatobá e Renata Gil.

Na verdade, desde o pós guerra (1945), o mundo vem experimentando o que se denomina de judicialização da vida, talvez uma reação à barbárie do conflito e às atrocidades ali cometidas contra os direitos fundamentais. A resposta da humanidade foi buscar soluções às contendas de maneira civilizada.1

No Brasil, a judicialização foi ainda mais acentuada diante da Constituição analítica de 1988 - em que se buscou a inserção de direitos após a retomada da democracia -, em um cenário de ausência de políticas públicas e privadas efetivas para soluções extrajudiciais de conflitos. Na maioria dos países desenvolvidos, as políticas de arbitragem, mediação e outras formas adequadas de resolução de conflitos já ocorriam há bastante tempo.

Na minha trajetória profissional de mais de 30 anos, talvez este seja o momento mais difícil para o Judiciário. É o poder garantidor dos direitos individuais, ao mesmo tempo em que é aquele que tem que aplicar as penalidades para as pessoas que se distanciam do cumprimento da lei. O ideal de que a lei deve atingir a todos, como pressuposto do regime democrático.

Essa tensão está nítida na quadra atual, neste milênio da pósmodernidade e das relações liquidas2. Um tema mais do que frequente é o do ativismo, a pauta é a autocontenção judicial ou a escolha de um modo proativo de interpretar as leis (e a Constituição), especialmente com o surgimento nos trópicos do que se denominou neoconstitucionalismo.

Ao comentar sobre Justiça e Democracia, Antoine Garapon3, com uma incrível antevisão da história, em um livro de 1996, aborda alguns temas recorrentes no atual momento: a) a República compreendida pelo Direito; b) a desnacionalização do direito e a nova cena da democracia; c) a tentação populista do poder inédito dos juízes; d) os processos instruídos pelos médias e a lógica do espetáculo.

Na trincheira do contencioso judicial, o Juiz é responsável direto pela aplicação correta da lei, pela segurança jurídica e pelo restabelecimento da paz social, abalada pelo conflito.

A pesquisa "Quem Somos: a magistratura que queremos", para além da visão puramente censitária, procurou aprofundar os temas centrais.

Assim é que buscou entender as causas, para os magistrados, do emperramento da prestação jurisdicional. Indagou sobre as premissas utilizadas para a fundamentação das decisões judiciais e tentou colocar a descoberto o que os juízes pensam sobre a relação do Judiciário com os demais Poderes, com a Sociedade e com a Democracia. Tratou de ritos e símbolos das audiências e indagou sobre as formas de controle interno. Mergulhou fundo na rotina profissional do juiz para entender suas angústias e fragilidades.

A pesquisa que ora se apresenta é uma ferramenta importante, pretende fornecer subsídios dos Juízes Brasileiros para elaboração e implementação de políticas públicas no âmbito do sistema Justiça.

É um contributo com base científica que certamente será objeto do escrutínio criterioso daqueles que buscam o aperfeiçoamento da democracia em nosso país.

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1 Impressiona a precisa reflexão de Cappelletti: "Não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (podemos usar a ambiciosa palavra: civilização?) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, bem como de conflitos ou conflituosidades de massa (em matéria de trabalho, de relação de classes sociais, entre religiões, etc.)" - CAPPELLETTI, Mauro. Formações Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil. In: Revista de Processo. V. 2, n. 5, p. 128-159. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar 1977, p. 130.

2 "Modernidade líquida", Bauman,Zygmunt - 2000, Zahar Editora.

3 "O Guardador de Promessas - Justiça e Democracia", versão portuguesa, Instituto Piaget, 1996.

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*Luis Felipe Salomão é ministro do STJ.


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