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Notas sobre a ausência de responsabilidade civil da plataforma de cybermall em decorrência de vícios no produto ou serviço

O objetivo principal deste artigo é defender que as plataformas que aproximam compradores e vendedores não podem responder por problemas que se apresentem como inerentes à relação contratualmente firmada por aquelas partes.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Atualizado em 19 de fevereiro de 2019 15:55

O consumo de produtos e serviços on line é, sem dúvida alguma, uma das principais fotografias de nosso tempo, com um volume imenso de operações sendo realizadas diariamente.

Nesse contexto, o objetivo principal deste artigo é defender que as plataformas que aproximam compradores e vendedores não podem responder por problemas que se apresentem como inerentes à relação contratualmente firmada por aquelas partes. Não será objeto de exame o comércio por sites de venda direta (ambiente virtual criado pelo próprio vendedor) para negociar seus produtos/serviços.

Na atualidade, o papel dos provedores de internet mudou de fisionomia, e se tornaram um interlocutor tecnológico indispensável. O provedor foi inserido na tradicional relação direta vendedor/cliente e prestador de serviços/cliente, transformando-a numa relação multilateral.

Nas palavras de Christopher Reed1, o provedor de internet é geralmente um armazenador que está conectado o tempo todo com outros armazenadores e que presta serviços de acesso, além de outros serviços a seus assinantes.

Atentando à segmentação proposta por Marcel Leonardi2, temos a figura do provedor de backbone ou provedor de estrutura, provedor de acesso, provedor de correio eletrônico, provedor de hospedagem, provedor de conteúdo e provedor de informação. Trata-se de seis espécies de provedores oriundas do gênero provedor de serviços de internet.

Por sua vez, o Marco Civil da Internet procurou identificar apenas dois grandes grupos de provedores de internet: os de conexão à internet e os de aplicações de internet. Os provedores de conexão são os responsáveis pela conectividade à rede, ou seja, permitem o acesso à internet, sendo equiparados aos provedores de backbone. Já os provedores de aplicações são relacionados às demais espécies, atuando num ambiente mais abstrato da internet e oferecendo os mais variados serviços e conteúdo, como, por exemplo, informação, hospedagem, correio eletrônico, pesquisa e muitos outros ainda a serem criados.

Frederico Meinberg Ceroy3, a seu turno, apresenta a classificação dos provedores de aplicação aos olhos do Marco Civil da Internet, nos seguintes termos: "é um termo que descreve qualquer empresa, organização ou pessoa natural que, de forma profissional ou amadora, forneça um conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet, não importando se os objetivos são econômicos".

O referido autor, portanto, traz à tona, ainda que não de forma literal, o disposto no art. 5º, inc. VII, do Marco Civil da Internet, mesmo este não conceituando expressamente cada espécie de provedor:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:

VII - aplicações de internet: o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.

No que concerne especificamente às plataformas de comércio eletrônico, espécie de provedor de aplicação de internet4, essas oferecem um espaço a terceiros para que anunciem produtos ou serviços a serem vendidos aos outros usuários de seu site. Isto é, as plataformas atuam como um verdadeiro shopping center virtual, um marketplace ou cybermall.

Segundo a referida legislação, o âmbito da responsabilidade das tais plataformas de comércio eletrônico foi assim definido:

Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei.

Ainda, em relação ao conteúdo gerado por terceiros nas plataformas, o legislador assim definiu:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

Insta elucidar que, conforme asseverado pela ministra Nancy Andrighi em importante julgado da terceira turma do STJ, REsp 1.501.603/RN, é frequente que provedores ofereçam mais de uma modalidade de serviço de internet, sendo que tal diferenciação é indispensável à correta atribuição de responsabilidade referente a cada serviço prestado. Além disso, destaca a complexidade elevada acerca da discussão da responsabilidade civil dos provedores de aplicações, pois não se debate uma ofensa diretamente causada pelo provedor, mas sim, por terceiros usuários das funcionalidades por ele fornecidas.

Observe-se uma vez mais que o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente, nos termos da lei, por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiro se, após ordem judicial específica, não tomar providências no âmbito e nos limites técnicos de seu serviço.

Pois bem. Para sedimentar a atividade desenvolvida pelas plataformas de comércio eletrônico, cumpre transcrever trecho de outro julgado proferido pelo STJ:

"O serviço de intermediação virtual de venda e compra de produtos caracteriza uma espécie do gênero provedoria de conteúdo, pois não há edição, organização ou qualquer outra forma de gerenciamento das informações relativas às mercadorias inseridas pelos usuários" (STJ, REsp 1.383.354/SP, min. rel. NANCY ANDRIGHI, terceira turma, DJe 26/9/13).

Noutras palavras, o âmbito e os limites técnicos do serviço da plataforma de comércio eletrônico se restringem à disponibilização de um ambiente virtual para terceiros interessados comprarem e venderem produtos e ou serviços.

Nesse passo, ao disponibilizar o espaço virtual para que vendedores anunciem, sem, contudo, possuir qualquer espécie de ingerência sobre o conteúdo, não pode a plataforma ser responsabilizada pela ocorrência de problemas entre o comprador e o vendedor, haja vista que não interfere naquilo que foi pactuado entre tais figuras, preservando-se a natureza participativa da rede, princípio também contido no artigo 3º, VII, do Marco Civil da Internet.

Nesse ínterim, invocando-se o diálogo das fontes normativas, ainda que a relação entre a plataforma e seus usuários seja consumerista, resta claro que a empresa, enquanto plataforma eletrônica, tem sua atividade regulada por lei específica, qual seja, a lei 12.965/14, e esta, por sua vez, rege que a responsabilização da plataforma virtual se dará de forma subjetiva.

Por essa ótica, e se contrapondo à aplicação da responsabilidade objetiva aos provedores, explana Erica Barbagalo:

"Entendemos que as atividades desenvolvidas pelos provedores de serviços na Internet não são atividades de risco por sua própria natureza, não implicam em riscos para direitos de terceiros maior que os riscos de qualquer atividade comercial. E interpretar a norma no sentido de que qualquer dano deve ser indenizado, independentemente do elemento culpa, pelo simples fato de ser desenvolvida uma atividade, seria, definitivamente, onerar os que praticam atividades produtivas regularmente e, consequentemente, atravancar o desenvolvimento5.6"

Ora, situação análoga às plataformas de cybermall acontece com os provedores de aplicações de busca na internet, onde o STJ já entendeu, desde 2012, que tais provedores de pesquisa: (i) não respondem pelo conteúdo do resultado das buscas realizadas por seus usuários, pois não realizam qualquer intermediação entre consumidor e vendedor; (ii) não podem ser obrigados a exercer um controle prévio do conteúdo dos resultados das buscas feitas por cada usuário; e (iii) não podem ser obrigados a eliminar de seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tudo conforme REsp 1.316.921/RJ, terceira turma, julgado em 26/6/12, DJe 29/6/12.

Observe-se, outrossim, no julgamento do REsp 1.444.008/RS, de relatoria da ministra NANCY ANDRIGUI, ocorrido no dia 25/10/16, que o STJ entendeu que há "uma situação muito distinta quando o prestador de buscas de produtos se limita a apresentar ao consumidor o resultado da busca, de acordo com os argumentos de pesquisa fornecidos por ele próprio, sem participar da interação virtual que aperfeiçoará o contrato eletrônico".

A relatora finaliza seu brilhante entendimento argumentando que, "ao se abster de participar da interação que levará à formação do contrato eletrônico entre consumidor e o vendedor do produto propriamente dito, não há como lhe imputar responsabilidade por qualquer vício da mercadoria ou inadimplemento contratual", não incidindo, portanto, os art. 3º e 7º do Código de Defesa do Consumidor, "devido à impossibilidade de considerá-la participante na cadeira do fornecimento do produto à recorrida, sequer como fornecedor equipado".

É imperioso destacar, ademais, que a aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que determina que a responsabilidade objetiva decorre de atividade habitualmente desenvolvida e, por sua natureza, oferece risco para os direitos de outrem, não pode ser realizada de modo indistinto, mas, conforme julgamento do REsp 1.067.738/GO, 3ª Turma, de relatoria do min. Sidnei Beneti, "a natureza da atividade é que irá determinar sua maior propensão à ocorrência de acidentes. O risco que dá margem à responsabilidade objetiva não é aquele habitual, inerente a qualquer atividade. Exige-se a exposição a um risco excepcional, próprio de atividades com elevado potencial ofensivo".

Com base nesse entendimento é que surgiu o enunciado 38 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do CJF, que afirma que a responsabilidade objetiva resta configurada "quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade".

Trazendo essa regra para a análise em tela, não se pode considerar um dano moral e ou material vinculado à relação travada entre comprador e vendedor como um risco inerente à atividade das plataformas online, pois estas apenas disponibilizam o ambiente para quem tiver interesse, e nada além disso, uma vez que não rastreiam o conteúdo ali exposto, tampouco participam efetivamente das compras e vendas realizadas, muito menos podem garantir a qualidade de um determinado serviço e ou produto.

Conclui-se então que, não havendo qualquer ingerência do provedor de internet no conteúdo da prestação a ser entregue por vendedores e prestadores de serviço, não se apresenta legítimo entender como razoável a exigência de que a plataforma garanta e por isso responda por vício e/ou fato de produtos ou serviços ofertados por terceiros, usuários do site, razão pela qual não poderá a plataforma ser responsabilizada civilmente, nem por danos materiais nem por danos morais, pelas operações realizadas por esses terceiros.

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1 REED, Christopher. Internet Law: Law In Context, Text and Materials, Cambridge University Press: 2004, p.29.

2 LEONARDI, Marcel. Responsabilidade Civil dos Provedores de Serviços de Internet. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 19-30.

3 CEROY, Frederico Meinberg. Questões fundamentais de Direito Digital no Juízo Cível. Publicado em 23/1/15.

4 O STJ, no acórdão do REsp 1.383.354/SP, foi além e definiu que as plataformas de comércio eletrônico caracterizariam uma espécie do gênero provedoria de conteúdo.

5 BARBAGALO, Erica Brandini. Aspectos da responsabilidade civil dos provedores de serviços da Internet. In Ronaldo Lemos e Ivo Waisberg, Conflitos sobre nomes de domínio. São Paulo: RT, 2003, p. 361.

6 Confira-se também a jurisprudência do TJSP sobre o tema: Apelação 1005049-34.2016.8.26.0005, Relatora Maria Cláudia Bedotti, 36 Câmara de Direito Privado, DJe 19/4/18; Apelação 0025473-86.2012.8.26.0577, relator Edgard Rosa, 25ª Câmara de Direito Privado, julgado em 21/9/17, DJe 27/9/17; Apelação 1029856-32.2013.8.26.0100, Relator AZUMA NISHI, 25ª Câmara de Direito Privado, julgado em 19/5/16, DJe 24/5/16; Apelação 4001433-03.2013.8.26.0038, 27ª Câmara Extraordinária de Direito Privado, Rel. Desembargador MILTON CARVALHO, DJe em 2/5/17.

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*Danielle de Azevedo Cardoso é advogada do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia. Integrante do Clube dos Seguradores da Bahia. Bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Master of Business Administration - MBA em Direito do Seguro e Resseguro concluído pela Escola Superior Nacional de Seguros - ESNS.

*Umberto Lucas de Oliveira Filho é advogado do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia. Certificado em Privacy & Data Protection Foundation e em Privacy & Data Protection Essentials pela EXIN. Integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/BA. Associado à AB2L - Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs. Pós-Graduando em Direito Digital pelo CERS. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco e em Direito Ambiental pela Universidade Federal da Bahia.

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