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O termo "violência obstétrica"

O direito à vida ou à saúde foi erigido à categoria de primeira geração e cabe ao Estado estabelecer sistemas protetivos para sua defesa.

domingo, 19 de maio de 2019

Atualizado em 16 de maio de 2019 12:47

O Ministério da Saúde, por sua Secretaria de Atenção à Saúde, proferiu despacho datado em 3/5/2019, em que exterioriza seu posicionamento com relação ao termo "violência obstétrica", esclarecendo que "tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério", propugnando, consequentemente, pela abolição de seu uso.

Referido termo, no entanto, foi introduzido em documento emitido pela Organização Mundial de Saúde e já se encontra consolidado na terminologia médico-jurídica do Brasil, compreendendo, em sentido amplo, todas as violações aos direitos fundamentais das mulheres, desde o atendimento obstétrico até o puerpério.

Tanto é que o Ministério Público Federal, em resposta ao já mencionado despacho, expediu a recomendação 29/19, dirigida ao Ministério da Saúde, para que se abstenha de praticar qualquer ação voltada à abolição da expressão "violência obstétrica", adiantando que já instaurou inquérito civil em São Paulo (1.34.001.007752/2013-81), com a intenção de colher denúncias apresentadas por mulheres durante o atendimento obstétrico, praticadas por profissionais da saúde, tanto da esfera pública como privada.

O termo combatido, desta forma, apesar de sua conceituação genérica, vai ganhando especificidade e elasticidade toda vez que cada ação praticada contra uma mulher no procedimento obstétrico, independentemente da vontade do profissional da saúde, provoca nela qualquer situação inequívoca de violência física, psíquica, emocional, constrangimento ilegal, desrespeito, maus-tratos, ameaças e outras consideradas inadequadas ao senso do homo medius.

Nesta linha de pensamento encontram-se as ofensas verbais, com a nítida intenção de menosprezar, diminuir, ridicularizar a mulher; ameaças de não atendimento, mesmo com o apelo de dor por parte da gestante; aplicação de medicamentos para aceleração do parto; realização de cesarianas desnecessárias, contra a vontade da parturiente; não obtenção do termo de consentimento informado antes de qualquer procedimento; proibição de ter um acompanhante durante o trabalho de parto, em manifesta violação a tal direito; violação à privacidade e várias outras.

Não há, portanto, como delimitar o alcance da violência obstétrica e nem mesmo abolir sua denominação. Isto porque o marco balizador vem configurado na Constituição Federal ao erigir a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito. A Constituição Brasileira deixou explicitado que toda pessoa vem revestida do manto intocável da dignidade e tal tutela compreende a atenção necessária desde a vida intrauterina, conferindo ao nascituro e à mãe os direitos para um nascimento saudável.

O conteúdo da dignidade da pessoa, que comporta uma difusa definição com o novo horizonte delineado pela bioética, carrega uma carga de humanização e acende a centelha da valorização do ser humano, projetando-o como referência para todo o universo. Assim como as ondas formadas no sereno lago com o arremesso de uma pedra, os círculos formados pelas águas vão se alastrando por todos os lados, fazendo ver que o indivíduo, na sua singularidade, vai se desenvolvendo e se ajustando ao seu grupo social e, neste ambiente comunitário, torna-se sujeito incondicional de direitos. Quer dizer, quanto mais se ampliar a esfera protetiva, mais direitos serão encartados no âmbito da dignidade. Por isso a violência obstétrica não é restritiva.

O direito à vida ou à saúde foi erigido à categoria de primeira geração e cabe ao Estado estabelecer sistemas protetivos para sua defesa. Aplica-se o pensamento esboçado por Foucault quando estruturou a finalidade da biopolítica: o poder do Estado é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver.

A Organização Mundial de Saúde, em documento intitulado prevenção e eliminação de abusos, desrespeitos e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde, assim se manifestou: "Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação. Os abusos, os maus-tratos, a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente".

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

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