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O uso de vestes civis em julgamento pelo Tribunal do Júri como direito fundamental do pronunciado

Tal pretensão encontra guarida nas normas mínimas para o tratamento do preso, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (Resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977), item 17.3, dispositivo no qual fica estabelecido que o preso, ao sair do instituto penitenciário, faz jus à utilização de suas vestimentas civis.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Atualizado em 20 de maio de 2019 12:53

O Tribunal Popular, instituição prevista em nossa Carta Magna como direito constitucional de primeira geração1, constitui cláusula pétrea2, representando, portanto, uma garantia de que o cidadão, acusado da suposta prática de crime doloso contra a vida, seja julgado por seus semelhantes, os denominados juízes de fato selecionados no meio social e que, via de regra, não têm formação jurídica.

Justamente pelo fato de o corpo de jurados ser formado por pessoas leigas no direito, é que o defensor (e aqui incluem-se defensores públicos e advogados) deve permanecer atento quando da designação do julgamento pelo Conselho de Sentença, a fim de garantir que o pronunciado seja julgado tão-somente pela acusação formulada (direito penal do fato), evitando que dados e argumentos de ordem eminentemente fática (como, por exemplo, eventual prisão preventiva decretada no feito) possa influenciar de forma negativa na íntima convicção do Tribunal Popular.

E é nesse ponto que reside o tema fulcral deste artigo, já que, na grande maioria dos casos levados a julgamento pelo Tribunal do Júri, o pronunciado encontra-se privado de liberdade em razão da decretação de segregação cautelar, sendo encaminhado para julgamento trajando vestes típicas do sistema prisional, o que, de pronto, já (i) acarreta um dano à imagem do acusado (expondo-o de forma negativa à mídia eventualmente presente ao julgamento) e (ii) o estigmatiza aos olhos dos jurados, dado que, apesar de não poder ser aquilatado (devido ao fato dos votos não serem fundamentados), implica em efetivo prejuízo do direito a um julgamento justo, que deveria ser norteado apenas pelas provas produzidas no processo.

Fixadas essas premissas acerca dos danos causados ao pronunciado pelo uso de vestes do sistema prisional, é preciso ter em mente que, apesar de submetido ao iudicium causae, deve ser resguardada ao acusado a observância (i) da dignidade da pessoa humana (vetor interpretativo reconhecido como fundamento da Constituição da República de 19883), (ii) do princípio da presunção de não culpabilidade4 e (iii) da vedação a tratamento degradante5, direitos que devem ser assegurados pelo defensor mediante provocação ao Juízo competente, a fim de que seja permitido o uso de vestes civis quando do julgamento pelo Tribunal Popular.

Ressalte-se, ainda, que eventual negativa do direito ao uso de vestes civis por parte do pronunciado preso cautelarmente (a) implica em violação ao princípio constitucional da isonomia (já que o acusado solto é levado ao julgamento do Conselho de Sentença sem trajar a "farda" do sistema carcerário) e (b) materializa um deletério efeito extraprocessual da segregação preventiva, não admitido à luz do direito processual penal constitucional.

Feitas essas considerações que respaldam o direito de o pronunciado  utilizar vestes civis quando do julgamento pelo Tribunal do Júri, tem-se que tal pretensão encontra guarida nas normas mínimas para o tratamento do preso, estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (Resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957, aditada pela Resolução 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977), item 17.3, dispositivo no qual fica estabelecido que o preso, ao sair do instituto penitenciário, faz jus à utilização de suas vestimentas civis6:

Em circunstâncias excepcionais, sempre que um recluso obtenha licença para sair do estabelecimento, deve ser autorizado a vestir as suas próprias roupas ou roupas que não chamem a atenção.

Em caso específico sobre o tema, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, analisando recurso de apelação manejado pela defesa, anulou julgamento realizado pelo Tribunal do Júri, por entender que a utilização de vestes do sistema prisional por parte de um dos pronunciados surtiu influência na convicção dos jurados e ofendeu os princípios constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Confira-se a ementa do precedente:

APELAÇÃO CRIMINAL - HOMICÍDIO QUALIFICADO PRELIMINAR EX OFFICIO ÚNICO RÉU UTILIZANDO-SE DE UNIFORME DO SISTEMA PRISIONAL VIOLAÇÃO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA SENTENÇA ANULADA - DADO PROVIMENTO AO RECURSO.

1 - Deve ser anulada a sentença e submetido o acusado a novo julgamento quando se extrai dos autos flagrante violação aos princípios da dignidade da pessoa humana e da isonomia, uma vez que o ora apelante, durante a realização da sessão do Tribunal do Júri era o único réu vestindo uniforme do sistema prisional, o que sem sombra de dúvidas afetou o ânimo dos jurados.

2 Recurso provido.

(TJES, Classe: Apelação, 024130190218, Relator: PEDRO VALLS FEU ROSA, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL, Data de Julgamento: 30/08/2017, Data da Publicação no Diário: 14/11/2017)

Em seu voto, o eminente relator des. Pedro Valls Feu Rosa cita princípios de ordem constitucional para concluir pela nulidade do julgamento e consigna, inclusive, que houve proposta de projeto de lei no âmbito estadual para resguardar o direito ao uso de vestes civis por parte de acusados quando do julgamento pelo Tribunal do Júri:

"Ora, comparecer ao julgamento que decidirá os rumos de sua vida, a meu ver reveste-se da excepcionalidade contida na norma acima transcrita permitindo, por consequência, ao réu a utilização de suas próprias vestes.

Somado a isso, esta Corte também já se posicionou nesse sentido. (.)

No referido projeto de lei, já em conformidade, em especial, com o princípio da dignidade da pessoa humana foi decidido inserir o artigo 50 no qual tratava exatamente da questão que exponho nesse momento:

 Art. 50. Será oportunizado ao preso que será julgado pelo Tribunal do Júri o direito de se apresentar com vestes civis. (Projeto de lei 357/12 - Ementa: Institui a regulamentação de procedimentos em sede de execuções penais no Estado do Espírito Santo, nos termos do artigo 24, inciso I, da Constituição Federal e da lei 7.210/84).

Ora, esse entendimento foi cristalizado pelo grupo de trabalho formado pelos grandes responsáveis pela Justiça Pública no seu sentido amplo, demonstrando, desde 2012 a inquietação acerca da situação clara de violação da dignidade da pessoa presa.

A sessão do Tribunal do Júri realizada para julgar a presente ação penal demonstra flagrante incongruência e desrespeito às garantias mínimas e fundamentais de todos."

Com o fim de corroborar os argumentos ora alinhavados, traz-se à colação caso concreto no qual esse signatário, atuando como membro da Defensoria Pública do Estado do Maranhão7, formulou pedido ao Juízo da 4ª Vara da Comarca de Balsas/MA solicitando autorização para que o pronunciado, acusado da suposta prática do crime de tentativa de homicídio qualificado, utilizasse roupas civis no dia do julgamento pelo Tribunal do Júri.

A referida pretensão foi deferida pelo Juízo de 1º Grau, tendo o acusado sido submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença, oportunidade em que os jurados acolheram tese da Defensoria Pública relativa ao instituto da desistência voluntária8 e desclassificaram a imputação para o delito de lesão corporal.

Tais reflexões de ordem dogmática, contextualizadas com casos concretos analisados pelo Poder Judiciário, visam despertar a atenção para tema de peculiar particularidade nos julgamentos pelo Tribunal do Júri (afeto a direitos constitucionais de primeira geração) e que, uma vez inobservado, pode causar irreparável prejuízo ao direito a um julgamento imparcial sobre os fatos submetidos ao exame dos jurados.

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1 Art. 5º, XXXVIII, da CF

2  Art. 60, § 4º, da CF

3  Art. 1º, III, da CF

4 Art. 5º, LVII, da CF

5 Art. 5º, III, da CF

6 Disponível aqui. 

7 Processo n. 273-52.2017.8.10.0026

8 Art. 15, primeira parte, do Código Penal

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*Rodrigo Casimiro Reis é defensor público do Estado do Maranhão. Ex-analista judiciário do STJ, tendo ocupado cargos de assessor de Ministro e de secretário-geral substituto da presidência. É também o ex-assessor da Corregedoria Nacional de Justiça e especialista em Direito Constitucional pela Unisul.

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