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As formas consensuais de solução de conflitos e as novas diretrizes curriculares para os cursos de graduação em Direito

Finalmente o curso de Direito incentivará práticas que privilegiam o diálogo em todas as dimensões do projeto pedagógico do curso.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Atualizado em 5 de janeiro de 2021 12:59

Muito se tem falado sobre a resolução 5, de 17 de dezembro de 2018, que "Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências" (emanada pelo Ministério da Educação, por meio da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação). O assunto é objeto de amplo debate pela comunidade jurídica, acadêmica e profissional, suscitando diferentes posicionamentos.

Afinal, de acordo com a resolução, as formas consensuais de resolução de conflitos devem ser inseridas obrigatoriamente no projeto pedagógico dos cursos de direito? Neste caso, seria uma disciplina obrigatória na grade curricular? Ou tal conteúdo deveria ser inserido de forma transversal em todas as disciplinas, práticas jurídicas, extensão e atividades complementares? 

O art. 2º, que trata dos elementos do Projeto Pedagógico do Curso de Direito, apresenta em seu inciso II a necessidade de disposição das competências, habilidades e conteúdos curriculares básicos exigidos para uma adequada formação teórica, profissional e prática.

Já o art. 2º, inciso I, anuncia e o art. 3º explica qual seria o perfil do estudante. Entre suas características, destaca-se o domínio das formas consensuais de solução de conflitos.

O art. 4º, inciso II, por sua vez, fala que o estudante deverá ser capaz de "demonstrar competência na leitura, compreensão e elaboração de textos, atos e documentos jurídicos, de caráter negocial, processual ou normativo, bem como a devida utilização das normas técnico-jurídicas". Isso remete à ideia de investimento em soluções não adversariais (negociação direta, mediação, conciliação, entre outros), seja no âmbito do processo judicial (conciliação e mediação judiciais), seja de forma autônoma (arbitragem e mediação extrajudicial) ou mesmo na esfera administrativa (câmaras administrativas de conciliação e mediação). O art. 4º, VI, reforça esta ideia ao falar que uma das capacidades do estudante deve ser o diálogo e o uso efetivo dos meios consensuais de solução de conflitos.

O art. 5º, ao seu turno, fala sobre conteúdos e atividades que atendam aos eixos curriculares, ou "perspectivas formativas", nos termos da resolução: geral, técnico-jurídico e prático-profissional. Dentre os conteúdos essenciais no eixo de formação técnico-jurídico se destacam, ao fim, as "formas consensuais de solução de conflitos".

Quanto ao ponto, se olharmos algumas notícias publicadas sobre o tema1, veremos que os dispositivos da resolução por nós apresentados têm sido interpretados como a necessidade de inclusão de uma disciplina específica sobre "formas consensuais de solução de conflitos". Nós discordamos dessa posição a partir de dois argumentos: a diferença entre disciplina e conteúdo e a formação da cultura do diálogo.

A primeira questão é elementar: a inserção de novo conteúdo em matriz curricular não implica necessariamente na criação de uma disciplina. Como consolidado nos estudos da educação sobre currículo, é cediço que enquanto disciplinas tratam de organização curricular (ou seja, de seu aspecto formal), os conteúdos tratam de sequenciações e níveis de aprendizagens (portanto, da dimensão material do conhecimento)2. Assim, apenas criar uma disciplina obrigatória destacada e isolada das demais tornará monótono e pouco desafiador o estudo dos meios consensuais. Não se quer dizer que não seja recomendável a criação de uma disciplina obrigatória na área. Ela pode ter inclusive um efeito positivo de divulgação de outros métodos diversos do processo judicial. Porém, nem de longe é o principal problema.

A segunda questão nos parece mais preocupante: se assim fosse (ou seja, resolver o problema apenas criando uma disciplina na grade curricular), parece que a cultura do diálogo que se pretende implementar, reafirmando as políticas públicas já existentes, avançará lentamente. O que a resolução propõe é repensar todas as disciplinas do curso de Direito. O que parece existir é uma confusão. Melhor seria que, independentemente de haver uma disciplina obrigatória, fosse incentivado o uso dos meios consensuais também no ensino de disciplinas que envolvam as formas contenciosas de resolução de conflitos, como, por exemplo, o Direito Processual.

Se o que se quer é incentivar e desenvolver a cultura do diálogo, não podemos nos esquecer da comunicação, importante habilidade para resolver conflitos. De fato, ela foi lembrada nas novas diretrizes, no art. 4º, III e V. No inciso III a resolução fala sobre a necessidade de o estudante conseguir demonstrar a capacidade de comunicar-se com precisão; e, no inciso V, de adquirir capacidades de argumentar juridicamente para propor soluções (por exemplo, via conciliação) e de decidir questões (por exemplo, como juiz(íza) ou árbitro(a)) no âmbito do Direito.

A este respeito importante repensar também a linguagem jurídica, no sentido de se tornar mais próxima da realidade e menos alienante. Sobre o tema, o art. 4º, X e XIII falam indiretamente da importância da linguagem quando prescrevem sobre a aceitação da diversidade e o pluralismo cultural, bem como a capacidade de trabalhar em grupo - não somente entre juristas -, mas também com outros profissionais de forma interdisciplinar.

Diante desses desafios, o que a resolução busca, mais do que inserir novas disciplinas, é a formação de um novo jurista, que agora precisa tomar contato também com ferramentas e habilidades "não jurídicas", mas essenciais ao exercício profissional de qualquer carreira jurídica. Lembre-se que o papel profissional do(a) advogado(a), por exemplo, é de ser o primeiro filtro da causa. O art. 4º, VIII, pede que o estudante se capacite no sentido de diferenciar as possíveis instâncias de atuação (administrativa, judicial - cível ou criminal, etc.), o que significa dizer que precisa avaliar qual o meio mais adequado de solução do conflito, de acordo com a natureza da controvérsia e as peculiaridades das pessoas envolvidas.

Espera-se com isso que os estudantes sejam incentivados quanto às suas capacidades de dialogar e de reconhecer a possibilidade de resolver conflitos jurídicos, seja pela via consensual, seja pela via contenciosa. Quer-se com isso que os (as) profissionais do Direito sejam capazes de levar este conhecimento para além das fronteiras do Curso de Direito, ou seja, para as suas práticas profissionais e para as suas vidas. Pensando nisso, quanto à prática jurídica - local reconhecido por L. A. Warat como o coração dos cursos de Direito3, o art. 6º, § 6º da resolução registra que a regulamentação e o planejamento das atividades nos NPJ (não por acaso, agora denominados "Núcleo de Práticas Jurídicas" - atenção para o plural) incluirão práticas consensuais de solução de conflitos.

A questão se resolve a partir do § 4º do art. 2º, que trata da previsão de formas de tratamento transversal dos conteúdos exigidos em diretrizes nacionais específicas, tais como educação em direitos humanos e outras mais. Os meios consensuais, especialmente a mediação e a conciliação, já fazem parte da Política Judiciária Nacional de Tratamento adequado dos conflitos de interesse no âmbito do Poder Judiciário (CNJ), reafirmados na Lei de Mediação e no CPC/2015. Entende-se que, para um maior incentivo, as práticas consensuais de solução de conflitos poderiam ter sido colocadas expressamente nesta parte da resolução.

Por fim, tendo em conta os art. 7º e 8º, que prescrevem sobre as atividades de extensão e as atividades complementares, fica claro que as práticas consensuais de solução de conflitos devem se inserir nesse âmbito dos Cursos de Direito.

Espera-se, com isso, recuperar o tempo perdido em que os meios consensuais foram negligenciados pela cultura jurídica dominante. O reconhecimento tardio dos meios consensuais exige um grande esforço de todos os profissionais envolvidos na educação jurídica. Há uma dívida histórica dos cursos jurídicos com a "cultura da pacificação" em detrimento da "cultura da sentença"4, dominante no ensino e prática do Direito. O espaço criado para o desenvolvimento dos meios consensuais traz, ainda, um novo desafio profissional para todos, discentes e docentes.

Em primeiro lugar, afirmamos que as formas consensuais de solução de conflitos devem ser inseridas nos projetos pedagógicos dos Cursos de Direito de forma obrigatória.

Em segundo lugar, ainda que isso não signifique a criação de uma disciplina obrigatória na grade curricular, seu conteúdo necessariamente deve estar em alguma disciplina, expresso na ementa, como Direito Processual. Porém, a negligência histórica nos faz pensar que seja interessante haver no currículo uma disciplina intitulada "Formas consensuais de solução de conflitos" ou mesmo uma sequência de cadeiras especializadas, como Negociação, Mediação, Conciliação e Arbitragem.

Por fim, pleiteamos aqui que o conteúdo atinente aos meios consensuais deve ser inserido principalmente de forma transversal, em todas as disciplinas, nas práticas jurídicas, na extensão e nas atividades complementares.

Agora estamos diante de um modelo de ensino preocupado em dar soluções satisfatórias aos conflitos. Finalmente o curso de Direito incentivará práticas que privilegiam o diálogo em todas as dimensões do projeto pedagógico do curso. O tempo e as práticas da experiência irão nos mostrar se vamos, enfim, ter a tão almejada mudança cultural, na direção de uma convivência democrática com as diferenças, como preconizava L. A. Warat5.

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1 Por exemplo: Disciplinas de conciliação e mediação deverão ser incluídas nos cursos de Direito e  MEC mantém curso de Direito em 5 anos e aprova novas disciplinas obrigatórias

2 Veja-se, por muitos: aqui.

3 Para saber mais, veja a entrevista aqui.

4 WATANABE, Kazuo. Cultura da sentença e cultura da pacificação. In: Estudos em homenagem à Professora Ada Pelegrini Grinover [S.l: s.n.], 2005.

5 WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. 496 p. (Coleção Warat, v.2).

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*Juliana Ribeiro Goulart é professora do curso de Graduação em Direito da Unisul. Mestra em Direito pela UFSC.

*Diego Nunes é professor dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da UFSC. Doutor em Direito pela Universidade de Macerata (Itália).

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