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Homicídio tentado ou lesão corporal?

Mais do que um rápido e sumário juízo de valor, é imperioso que o intérprete considere todas as questões, ainda que periféricas, sobre o fato ora tratado.

domingo, 20 de outubro de 2019

Atualizado em 22 de outubro de 2019 10:37

Quando mais um rotineiro dia de trabalho transcorria, sem intercorrências, no prédio da sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, situado na Avenida Paulista, em São Paulo/capital, um fato absolutamente descompassado e surpreendente chamou a atenção de todos: um procurador da Fazenda Nacional, notadamente transtornado, ingressou em um gabinete e agrediu, com diversos golpes de faca, uma juíza Federal Substituta que ali trabalhava.

Segundo o noticiado, "a juíza trabalhava em sua mesa e foi surpreendida pela invasão do procurador, mas conseguiu se afastar dele - as mesas dos desembargadores são bastante amplas, o que dificultou o acesso de Assunção à vítima. Diante do insucesso, ele ainda tentou jogar uma jarra de vidro na direção da magistrada, mas errou. O barulho da jarra quebrando foi o que chamou a atenção dos assessores. E o procurador foi imobilizado pelas pessoas que estavam dentro do gabinete durante a ação" (sic)1.

Ainda segundo a notícia, o agente chegou a acertar a vítima no pescoço, mas a lesão foi de natureza leve.

Ato contínuo, o procurador foi preso em flagrante delito, sendo o competente inquérito policial instaurado pela Polícia Federal, para apurar a prática, em tese, do crime de homicídio qualificado na modalidade tentada. Após a realização da audiência de custódia, a prisão em flagrante foi convertida em preventiva e o investigado transferido, por determinação do juízo competente, para o hospital psiquiátrico de Taubaté/SP.

O Direito Penal, às vezes, apresenta soluções que, aparentemente, são conflitantes com a formal narrativa de um fato. Acontece, até com certa frequência, que uma só conduta pode receber interpretações diferenciadas e conflitantes, tanto em relação ao tipo penal infringido em tese como com relação ao procedimento e à pena postulada.

Para o intérprete menos desavisado pode se tratar de um conflito interno de normas penais em que uma só conduta tenha cabimento em propostas penais diversas. Porém, na realidade, nada mais é do que a busca para a correta subsunção de uma conduta a um determinado tipo penal. Busca-se, em primeiro lugar, a volição, a intenção, o dolo com que o agente imprime em sua ação para, na sequência, elaborar a correta montagem e adequação do fato a uma norma penal especificada, elaborando, desta forma, a chamada adequação típica da conduta.

Nesse passo, sem a pretensão de esgotar o tema, mas a fim de estimular o debate e o estudo jurídico-penal do caso, sempre respeitando a atuação das autoridades que são responsáveis pela investigação, processamento e julgamento do caso, questiona-se: supondo que os fatos sejam comprovados pela autoridade policial, qual seria a melhor subsunção da conduta do agente às normas penais? Poder-se-ia sustentar a prática de homicídio qualificado tentado ou de lesão corporal, observando que no primeiro caso o processo tramitará perante o Tribunal do Júri cabendo ao Conselho de Sentença a decisão e, no segundo, sendo lesão corporal de natureza leve, seguirá a tramitação ditada pelos crimes de pequeno potencial ofensivo (lei 9.099/95).

Prima facie, não se pode perder de vista que os elementos decorrentes da exteriorização da conduta do agente são os que definem o dolo no caso concreto: vale dizer, é com base na aludida exteriorização que se pode delimitar o animus necandi ou o animus laedendi do autor do fato.

E, no caso em concreto, de acordo com os fatos noticiados até então, torna-se imperiosa a análise pormenorizada da conduta da agressão perpetrada: com os golpes desferidos, buscou o agente dar cabo à vida da magistrada? Ou visou o procurador, acometido de um surto psicótico que o levou a desferir os golpes a esmo, lesionar quem ali estivesse, sem, contudo, intentar contra a vida da vítima?

O grande problema da conduta resultante de um surto é que ela se revela explosiva e, como tal, dificulta o clareamento e a delimitação do dolo do agente: qual a razão de o procurador, além das facadas, ter parado com a ação e arremessado um vaso, caso ele realmente desejasse a morte da vítima?

Por outro lado, será que o fato do agente ter desferido vários golpes de faca contra a ofendida, acertando-a até mesmo no pescoço (como noticiado), não seria suficiente para caracterizar a intenção de matar a juíza federal?

Estas e demais tormentosas questões deverão ser esclarecidas já na primeira fase da persecução penal, de modo a propiciar ao promotor natural da causa a correta opinio delicti e, assim, buscar a responsabilização penal adequada e proporcional ao acusado, não se olvidando, ainda, que, certamente, a questão da imputabilidade do agente, ao tempo da conduta, será analisada por um expert que ateste a capacidade, ainda que momentânea, de entender o caráter ilícito do fato praticado.

Como se vê, mais do que um rápido e sumário juízo de valor, é imperioso que o intérprete considere todas as questões, ainda que periféricas, sobre o fato ora tratado.

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1 Disponível aqui.

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t*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp.

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t*Antonelli Antonio Moreira Baracat Secanho é advogado, professor de Direito Penal da Unorp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP e mestrando em Direito Ambiental pela Universidade Brasil.

 

 

 

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