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O Enem e a remição da pena, por Eudes Quintino

A atividade laborativa evita a ociosidade, que é a inimiga do detento.

domingo, 3 de novembro de 2019

Atualizado em 4 de novembro de 2019 07:09

Por demais oportuna e, ao que consta, inédita, a decisão proferida por unanimidade pela 1ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em acatar o recurso de um réu que se encontrava encarcerado em regime fechado, deferindo a ele o direito à remição da pena, por ter sido aprovado no Enem. O acórdão veio calcado na interpretação analógica in bonam partem na sistematização feita com relação ao artigo 1º, IV, da recomendação 44/13 do Conselho Nacional de Justiça.1

Referido artigo faz referência ao apenado que não se encontra vinculado a atividades regulares de ensino no interior do presídio, conforme exigência legal e a regra contida na Súmula 341 do Superior Tribunal de Justiça ("A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto").Porém, por sua própria iniciativa e com total dedicação, logrou êxito na aprovação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cumprindo, desta forma, a exigência estabelecida no § 5º da Lei de Execuções Penais ("O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação" - lei 7.210/84).

É importante observar, em primeiro lugar, a diferença entre remissão e remição, que muitas vezes trazem sérias dificuldades para o operador do Direito, sem falar da exclamação obrigatória do leigo. Remissão é o ato de perdoar, ou conceder a alguém uma indulgência ou compaixão, isentando-o de qualquer responsabilidade futura. A Igreja Católica, por exemplo, usa a palavra para significar o perdão total ao fiel que confessou seus pecados.

Remição, que teve sua origem no Código Penal espanhol, tem o significado de quitação de compromisso em razão de um pacto estabelecido. Não se apaga e nem se perdoa de imediato e sim com o cumprimento das obrigações assumidas. Na exata definição de Mirabete, pode-se "definir a remição, nos termos da lei brasileira, como um direito do condenado em reduzir pelo trabalho prisional o tempo de duração da pena privativa de liberdade cumprida em regime fechado ou semiaberto. Trata-se de um meio de abreviar ou extinguir parte da pena."2

Como é sabido pela legislação própria, o trabalho penitenciário faz parte da rotina do cumprimento de pena e tem por finalidade a educação e produção, condições inerentes ao dever social, visto sob o prisma da dignidade humana. Daí que não pode ser interpretado como fator de agravamento da pena e nem mesmo doloroso ou mortificante. A atividade laborativa evita a ociosidade, que é a inimiga do detento. Faz com que ele se sinta produtivo e útil para um número indeterminado de pessoas, facilitando, desde já, sua futura reinserção social.

A própria Constituição Federal determina que ao preso seja também garantido o direito social ao trabalho3. E o trabalho penitenciário, apesar de não estar sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho, deve manter a mesma equivalência do trabalho organizado em sociedade, mesmo que o preso não tenha a capacitação profissional adequada.

A profissionalização, o aprendizado de um ofício, no entanto, podem ser oferecidos no próprio presídio, para se instalar uma atividade produtiva e disciplinadora. O raciocínio a ser feito é que, em liberdade, o cidadão teria que se dedicar ao aprendizado de uma determinada atividade e fazer dela sua profissão e, em casa de grade, nos mesmos moldes, deve procurar se dedicar ao aprendizado de uma tarefa para que seja útil e colaborador com o meio em que vive e apto para exercê-la em liberdade.

No caso específico ora analisado, que também é uma modalidade que comporta remição, realizado de forma espontânea pelo recluso, sem qualquer acompanhamento pedagógico por parte da instituição prisional, tem a mesma equivalência do trabalho e, mais ainda, reflete, de forma inequívoca, seu comprometimento com os diferentes tipos de aprendizagem e, dentre eles, pode-se incluir o interesse pelos estudos preparatórios visando aos exames nacionais que certificam a conclusão do ensino fundamental ou médio.

Tal esforço é revelador que o apenado dedicou-se de forma integral aos estudos e obteve sua aprovação no Enem. Daí merece ser contemplado pela remição da sua pena. Pelo caminho do estudo, mesmo sem qualquer vinculação com a iniciativa pedagógica do presídio, demonstrou dedicação e comprometimento no sentido de buscar um novo caminho para sua vida, com possibilidades de ingressar em cursos universitários e abraçar uma carreira que possa garantir seu futuro.

Desta forma a Justiça veio coroar todo o esforço do apenado, reconhecendo a ele o direito à remição.

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1 TJ/DF concede remição de pena a aprovado no Enem

2 Mirabete, Julio Fabbrini. Execução penal. Comentários à Lei nº 7210/1984. São Paulo: Editora Atlas, 1997, p. 290.

3 Artigo 6º da Constituição Federal.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

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