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Sexo frágil?

Meninas têm que ser mais cuidadas, mais protegidas. Não desfrutam da mesma liberdade dos irmãos, que são encorajados a viver sua sexualidade livremente

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Atualizado em 8 de junho de 2021 15:42

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Não sei se é porque as mulheres têm TPM, sangram todos os meses e precisam de resguardo durante a gravidez e após o parto. Mas o fato é que que são rotuladas de sexo frágil - apesar de a expectativa de vida delas ser muito maior do que a dos homens.

Este qualificativo acompanha a mulher desde a maternidade. É mergulhada em um mar cor-de-rosa,  furam suas orelhas e as adornam com inúmeros adereços certamente desconfortáveis. São chamadas de princesas. Precisam ser lindas, meigas e dóceis.

Meninas têm que ser mais cuidadas, mais protegidas. Não desfrutam da mesma liberdade dos irmãos, que são encorajados a viver sua sexualidade livremente.

Recebem um punhado de bonecas para que se afeiçoem à maternidade, sacralizada de tal forma que se chega a firmar que mulheres têm instinto materno. Sem que nunca se tenha ouvido falar em instinto paterno.

Seus brinquedos são reproduções dos utensílios domésticos, verdadeiro adestramento para o exercício das funções que terão a responsabilidade de assumir.

Desde pequenas  as jovens são induzidas a suspirar por um príncipe encantado. Precisam encontrar a "cara metade", como se elas não fossem inteiras.

 O sonho do casamento é imposto, sem que lhe seja permitido eleger qualquer outro jeito de viver. Afinal, precisam de alguém que as cuide, que as proteja.

É tão impiedosa esta imposição que, desde a adolescência é advertida: se não encontrar um homem para chamar de seu, significa que ninguém a quis. Sobrou. Vai ficar para titia e será chamada de "solteirona".

Daí a implacável busca por um par, que vira a grande prioridade da vida. Desde muito jovens entram em uma verdadeira guerra para despertarem a atenção de todos os possíveis candidatos a levá-las ao altar. Passam treinando gestos e bocas no espelho.

Cada vez mais se desnudam, mais deixam à amostra seus atributos físicos que incansavelmente são perseguidos em horas de academia.

A maquiagem é utilizada para valorizar os traços mais sensuais, quer eles sejam naturais, quer tenham sido adquiridos por meio de toda sorte de procedimentos estéticos.

Ainda assim - e paradoxalmente - é preciso se mostrar como uma moça recatada. Deve resistir às investidas masculinas para transmitir a ideia de recato e pureza. Não, não significa não. A reação é tida como pura encenação. Somente sinaliza que o varão deve continuar insistindo. E é assim que acontecem os estupros, cujos autores acabam absolvidos sobre a alegação de que houve consenso.  Acaba sendo reconhecido que houve provocação por parte da vítima, quer pelo jeito que estava vestida, quer pelo lugar em que se encontrava. E a mulher é apontada como culpada.

Festas de casamento servem de cenário  da desesperada disputa das jovens casadouras para pegar o buquê da noiva. Significa que, quem vencer, será a próxima a casar.

Afinal, todas precisam de um marido para chamar de seu, um lar para reinar como rainha e filhos para comprovar que "vingaram", como se dizia antigamente.

Desta ânsia pelo casamento não compartilham os homens, que fingem resistência. Mas sofrem a mesma pressão da família para que casem, sob pena de serem rotulado de homossexuais. Além disso, são eles absolutamente desqualificados para administrarem uma casa. Como nunca puderam se aproximar dos brinquedos das meninas e nem entrar na cozinha, têm enorme dificuldade de se virarem sós.   

Enfim, chega o dia do casamento, que a noiva afirma ser o mais importante de sua vida. O noivo, não. Tanto que faz despedida de solteiro.  

Vestida de branco - símbolo de virgindade -, ela é conduzida pelo pai que a entrega ao noivo. Neste momento ele levanta o véu que encobre o rosto de sua amada, como a desenrolar um objeto que passa para sua propriedade. A partir daí, é a "sua" mulher.

Para ela é a concretização do sonho de que será feliz para sempre. Terá alguém que irá cuidá-la, protegê-la e sustentá-la  até que a morte os separe.

Ao adquirir o cognome de esposa, todo o resto deixa de interessar:  trabalho, realização profissional, amigos.

Para não frustrar a expectativa familiar, a tudo se submete. Faz que não vê traições, atribuiu ao gênio do marido posturas agressivas, rompantes de raiva.

Afinal, ele diz que assim reage porque tem ciúmes, porque a ama. E ela acredita. Também atribui a ela a culpa pela agressão, por não estar em casa na hora em que ele chegou, a comida não estar pronta, os filhos não trem tomado banho, a casa estar em desordem. Enfim, desculpas não faltam. E ela acredita em todas.

Para evitar novas brigas, se submete às vontades do parceiro e acaba por perdendo a própria identidade.

Vira refém de situações abusivas, sem atentar que esta sendo vítima de violência doméstica.

E como é difícil romper este verdadeiro círculo vicioso!

Ela não conta com a apoio de ninguém. A mãe diz que a vida é mesmo assim, que ela tem que aguentar.

Amigas, nem tem mais.

E sentindo-se fragilizada, cala-se para evitar o próximo empurrão, tapa ou soco.

Afinal, ela é o sexo frágil.

Este parece ser o retrato de tempos passados, situações já superadas pelo avanço do movimento feminista, pelo empoderamento das mulheres.

Mas, infelizmente, não. Os assustadores números da violência doméstica e de feminicídio revelam que ainda não se rompeu o patriarcalismo.

E o pior. A onda de conservadorismo que invade o mundo e já chegou ao Brasil, prega o retorno ao modelo convencional de família, em que a mulher deve obediência ao homem.

Triste realidade que não pode se perpetuar.

Afinal, não somos o sexo frágil, e somos nós que devemos lutar!

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t*Maria Berenice Dias é advogada e vice-presidente Nacional do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família.

Ibdfam Instituto Brasileiro de Direito de Familia

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