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Trabalhadores de cruzeiros marítimos e a legislação aplicável a partir da ratificação da Convenção 186/CLT

A ratificação da convenção sobre o trabalho Marítimo demonstra que o Brasil está alinhado com os altos propósitos da OIT de promover um trabalho cada vez mais digno para os trabalhadores marítimos.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Atualizado às 11:22

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O Senado Federal aprovou no ano passado, no último dia 17 de dezembro, o Projeto de Decreto Legislativo (PDL), que ratifica a convenção 186 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), norma internacional que estabelece direitos trabalhistas aos trabalhadores marítimos. Após a ratificação da convenção pelo Congresso Nacional, a norma ainda precisa ser sancionada pelo Presidente da República, mediante Decreto Presidencial, com indicação da data de início da sua vigência em território nacional.

Em meio a dúvidas sobre a atual situação legal dos trabalhadores marítimos brasileiros e ao esforço das grandes empresas do setor de cruzeiros marítimos, que insistem na aplicação de normas que tragam consigo menos direitos trabalhistas, é certo que a incidência da norma mais favorável ao trabalhador é assegurada pela Constituição Federal, pela legislação brasileira e pela Constituição da própria Organização Internacional do Trabalho.

A indagação que se faz com a ratificação da convenção da OIT pelo Brasil é se a inserção da referida norma no ordenamento jurídico brasileiro apresentará algum impacto nos direitos dos trabalhadores marítimos, especialmente em relação aos tripulantes contratados no Brasil para trabalharem em navios de cruzeiros de bandeira estrangeira.

Para responder essa questão, é importante examinarmos o cenário atual desses trabalhadores. Sabemos que o processo de recrutamento e seleção ocorre no Brasil, por meio de agências recrutadoras nacionais, que buscam trabalhadores para exercerem, principalmente, trabalhos de hotelaria, limpeza, cozinha e atendimento em restaurantes e bares dos navios de cruzeiros. As agências prestam serviços para as empresas internacionais de cruzeiros, que geralmente possuem filiais no Brasil. Em seguida, os selecionados e aprovados por essas agências são treinados no Brasil e é aqui o local onde são estabelecidas as condições do trabalho que será realizado dentro da embarcação. Após o treinamento, os trabalhadores embarcam e navegam por meses nesses navios de bandeira estrangeira, exercendo as atividades para as quais foram contratados.

Conforme a lei brasileira 7.064/82, artigo 3º, II, deve ser aplicada a legislação trabalhista brasileira a tais trabalhadores que, embora tenham sido contratados em território brasileiro, laboram em navios de bandeira estrangeira que navegam em alto mar. O texto determina expressamente "a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria".

É desse modo que atualmente sete das oito Turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST), consolidando um entendimento majoritário, rechaçam a aplicação da "Lei do Pavilhão" ou "Lei da Bandeira do Navio", lei internacional ratificada pelo Brasil em 1929, que determina que seja aplicada sobre os trabalhadores a lei do local da matrícula da embarcação. A Justiça brasileira tem determinado a aplicação do princípio da norma mais favorável.

O ponto fundamental para entender a discussão se trata do fato de que os direitos previstos na convenção da OIT, que está na iminência de ser ratificada pelo Brasil, são inferiores aos direitos previstos na lei brasileira. A norma internacional estabelece patamares mínimos de proteção ao trabalhador do mar, que são inferiores à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição da República. No que se refere, por exemplo, ao registro da relação de emprego, a lei brasileira prevê o reconhecimento de vínculo desses trabalhadores com as empresas de navios de cruzeiros, com a determinação de anotação na carteira de trabalho, além do recolhimento de contribuições previdenciárias. Por sua vez, a convenção da OIT apenas recomenda a elaboração de um contrato de trabalho que contenha informações sobre as condições acordadas entre as partes, inexistindo previsão de reconhecimento de vínculo de emprego, de pagamento das verbas trabalhistas e de contribuições previdenciárias. Empresas de cruzeiros marítimos defendem a aplicação das normas da convenção.

Já em relação ao FGTS, a legislação brasileira estabelece o depósito de FGTS mensal no percentual de 8%, direito não previsto na convenção. O mesmo ocorre em relação ao pagamento de 1/3 sobre as férias, direito não previsto pela norma internacional. No caso da jornada de trabalho, a Constituição brasileira e a CLT limitam a jornada a 8 horas diárias e 44 horas semanais, até o limite de duas horas extras por dia. Já a convenção estabelece que a jornada é limitada a 14 horas por cada período de 24 horas, até o limite de 72 horas por semana, elastecimento não permitido pela nossa Constituição. Outro exemplo se trata do percentual de horas extras, sob o qual a lei nacional determina que deverão ser pagas com o adicional de 50%, ao passo em que a convenção da OIT estabelece o pagamento do adicional de somente 25% para o labor extraordinário. O adicional noturno e o aviso prévio não inferior a 30 dias, direitos previstos na legislação trabalhista brasileira, também não são assegurados pela norma internacional.

Além do que é determinado pela lei 7.064/82 e o que vem sendo entendido pelo Poder Judiciário, o próprio parágrafo 8º do Artigo 19 da Constituição da Organização Internacional do Trabalho determina que, de modo algum, a adoção de qualquer convenção da OIT por país membro poderá afetar lei daquele país que assegure condições de trabalho mais favoráveis. Assim, a ratificação da convenção não afastará, de modo algum, a aplicação da lei trabalhista brasileira aos trabalhadores contratados no Brasil para trabalharem em cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira.

A redução de direitos dos trabalhadores marítimos iria contra aos próprios objetivos da Organização Internacional do Trabalho, de promover melhores condições de trabalho, visando à superação da pobreza e à redução das desigualdades sociais em todo o mundo. As convenções da OIT são editadas a partir de um contexto de graves violações a direitos trabalhistas e aos direitos humanos. Essas convenções, bem como as recomendações da OIT, estabelecem patamares mínimos de trabalho decente, a fim de facilitar a adesão de mais países, bem como facilitar que sejam cumpridas por todos os estados-membros. Como pode ser constatado facilmente em depoimentos de trabalhadores marítimos e em processos que tramitam hoje na Justiça, é comum que o dia a dia nos navios haja caso de trabalhadoras e trabalhadores que sofrem assédio moral, assédio sexual, humilhações e que sejam submetidos a condições degradantes de trabalho e de alojamento.

A ratificação da convenção sobre o Trabalho Marítimo demonstra que o Brasil está alinhado com os altos propósitos da OIT de promover um trabalho cada vez mais digno para os trabalhadores marítimos e não afasta, de modo algum, a aplicação da lei trabalhista brasileira, que é norma mais favorável e tem sua incidência assegurada por lei específica (artigo 3º, II, da lei 7.064/82) e pela própria Constituição da OIT. 

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t*Denise Arantes é advogada especialista em Direito do Trabalho, sócia do escritório Mauro Menezes & Advogados, com atuação no âmbito do TST em causas de trabalhadores de cruzeiros marítimos.

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