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O direito nas ruas

A edição de leis para a convivência do homem é fruto da tradição da vida humana; a lei não tem a virtude de acomodar a ganância e a maldade do homem, daí porque deveria ser dispensável para a boa convivência das pessoas com seus semelhantes. Os bons costumes certamente substituiriam as más leis, responsáveis pela petrificação de privilégios.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Atualizado em 9 de novembro de 2006 15:47

 

O direito nas ruas

 

Antonio Pessoa Cardoso *

 

A edição de leis para a convivência do homem é fruto da tradição da vida humana; a lei não tem a virtude de acomodar a ganância e a maldade do homem, daí porque deveria ser dispensável para a boa convivência das pessoas com seus semelhantes. Os bons costumes certamente substituiriam as más leis, responsáveis pela petrificação de privilégios.

 

As leis nascem nas ruas, porque fruto maior do grito dos pobres sobre os ombros dos quais recaem as violações mais comezinhas à cidadania e à dignidade humana: direito de ir e vir, direito à saúde, direito à moradia, direito à alimentação, direito de vestir, etc; mas as leis originam-se também dos desencontros entre os homens, porque de Jeca Tatu tornaram-se Ali Babá.

 

O legislador recebe da sociedade competência para transformar o clamor popular em lei, mas deixam de atender a estas aspirações, quando legislam em causa própria, quando beneficiam o Estado-administrador ou quando atendem a interesses menores. Sabe-se que o governo é criado para conferir o direito ao povo e não, como sempre faz, para retirá-lo. Na verdade, essas leis prestam-se mais para acomodar a grita do povo do que mesmo para conferir-lhes o direito ao qual fazem jus. Assim querem os governantes e os mais fortes, assim legislam os homens da lei, desviando, desta forma, do nobre encargo recebido.

 

O procedimento, ideal de uns e tarefa de outros, mostra-se bastante longo e difícil, porque, no meio do caminho, aparecem os interesses econômicos e políticos, capazes de interferir na finalização da meta, resultado dos privilégios, consistentes em leis destinadas a facilitar o acúmulo do capital ou a manutenção no poder de determinado grupo; há interferência do Executivo correspondida pela submissão dos legisladores, promovendo a ruptura no caminhar da democracia, porque leis injustas, causadores do mal estar da camada mais fraca da população.

 

A legislação, teoricamente, origina-se do trabalho dos representantes do povo no Congresso Nacional, mas, como se disse, há desvios neste itinerário, maculando a seriedade da democracia. Com tudo isto, está assegurado ao Estado os meios coercitivos para impor o cumprimento da lei, independentemente de ter havido perfeita conexão entre o ideal dos destinatários e o trabalho concreto do legislador.

 

Aí se situa o argumento básico para questionamentos da efetiva realização da justiça e da segurança da paz social, contribuindo sobremaneira para frustração do princípio instituído na Constituição federal, qual seja a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais.

 

Nos 18 anos, completados no último dia cinco de outubro, a Constituição já foi emendada quase 60 vezes e, na sua absoluta maioria, para atender às conveniências do Estado-Administrador. No jogo do bicho vale o que está escrito, mas na Constituição o que está escrito só vale quando serve para ajudar aos poderosos. Já se disse que, no Brasil, não são os governos que se ajustam à Constituição, mas esta que é ajustada aos governos.

 

O Direito nas Ruas é prática sadia americana, originada no Centro de Direito da Universidade de Georgetown, no ano de 1972, consistente no trabalho desenvolvido por estudantes, junto à comunidade, ensinando-lhe as leis e as formas de se beneficiar através de seu conhecimento e uso. As pessoas aprendem que a lei é imposta à sociedade pelo Estado; tomam conhecimento dos recursos disponíveis para lidar com locação de imóveis, com direitos em matéria de consumo, de direito público, etc.

 

Richard Roe é autor do livro Street Law, que serve de orientação para os estudantes de direito; desenvolve o autor noções de direito penal, direito de família, cidadania, direito do consumidor, administrativo, etc; faz análise de casos e situações hipotéticas. Richard Roe entende que o Direito nas Ruas ensina às pessoas a pensar sobre o que podem fazer através da lei, além de proporcionar vasta experiência aos estudantes de direito.

 

No Brasil, a sociedade tem-se mantido submissa, alheia e perplexa diante de leis injustas ou frente a certas interpretações das leis, fundamentalmente da Constituição. Os exemplos se sucedem tanto ao nível de Legislativo quanto no meio do Judiciário. O povo não entende a lei que confere ao setor financeiro o direito de tomar o produto financiado, o carro, e vendê-lo sem interferência alguma da justiça.

 

Na área constitucional, o STF garantiu a pretensão do governo e suspendeu o direito adquirido de aposentadoria integral. O Tribunal não considerou a angústia de quem não pode mais gritar nas ruas. Bom que se saiba que a Constituição não foi feita somente para deleite dos intérpretes formais, nem direcionada somente para a comunidade organizada, mas para toda a massa de cidadãos que luta, no dia-a-dia, fundamentalmente por sua subsistência. E este segmento constitui maioria da população, garantidora da produção e da circulação das riquezas e, portanto, não pode nem deve ficar somente a observar as vantagens conferidas pelas leis aos poderosos.

 

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*Desembargador do TJ/BA






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