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Conseqüências jurídico-penais do não atendimento ao Recall

Alexandre Mallet

Como se sabe, o recall consiste no chamamento dos consumidores pela mídia para que realizem a substituição ou reparação de produto defeituoso colocado no mercado pelo fabricante. Principalmente, após o surgimento da Portaria n.º 789, de 24 de agosto de 2001, editada pelo Ministério de Estado e de Justiça, o recall - palavra inglesa utilizada pela própria portaria ministerial - vem se transformando em uma prática a cada dia mais vivenciada por fabricantes e consumidores brasileiros.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2004

Atualizado às 08:52

Conseqüências jurídico-penais do não atendimento ao Recall

Alexandre Mallet*

 

Como se sabe, o recall consiste no chamamento dos consumidores pela mídia para que realizem a substituição ou reparação de produto defeituoso colocado no mercado pelo fabricante. Principalmente, após o surgimento da Portaria n.º 789, de 24 de agosto de 2001, editada pelo Ministério de Estado e de Justiça, o recall - palavra inglesa utilizada pela própria portaria ministerial - vem se transformando em uma prática a cada dia mais vivenciada por fabricantes e consumidores brasileiros.

 

O chamamento, portanto, tem por finalidade evitar qualquer sorte de conseqüências prejudiciais ao consumidor em decorrência de vícios de produtos que venham a comprometer a sua qualidade ou funcionalidade, os quais, eventualmente, são potenciais causadores de danos ao consumidor.

 

Assim, pneus, remédios, aparelhos eletrônicos (como no-breaks e televisores) e até mesmo turbinas de avião já foram objeto de recall. No entanto, a quase totalidade das hipóteses de chamamento de consumidores, tanto aqui quanto nos Estados Unidos, refere-se a casos que envolvem a montagem de veículos automotores.

 

Curiosa hipótese, com possíveis repercussões em sede penal, é o chamamento do consumidor para a substituição de peça utilizada no fabrico e montagem de veículos automotores.

 

A par das possíveis lesões corporais e mesmo mortes eventualmente provocadas pela venda do produto defeituoso que afete diretamente a segurança do condutor e dos passageiros, como, por exemplo, pneus, sistemas de airbags, barra de direção, sistema de freio, entre vários outros, não se ignora, que a simples colocação de qualquer produto defeituoso no mercado de consumo poderá, em tese, implicar em responsabilidade penal para o fabricante pela prática do crime previsto no artigo 7º, IX da Lei 8.137/90. Lei esta, editada posteriormente ao Código de Defesa do Consumidor, mas que também dispõe sobre crimes contra a relação de consumo e na qual se prevê pena de detenção de dois a cinco anos ou multa para quem praticar qualquer uma das seguintes condutas: "vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo". Esse delito, todavia, caso sobrevenha crime mais grave que afete a bens jurídicos de maior magnitude como a integridade física ou a vida desaparecerá em virtude de princípios de Direito Penal sobre os quais não devemos nos ocupar aqui.

 

A questão que se coloca é se há ou não de persistir a responsabilidade penal do fabricante - leia-se a pessoa física responsável pela colocação da peça defeituosa e/ou quem assim o tenha determinado, pois não há de se falar em responsabilidade penal da pessoa jurídica em sede de crimes contra a relação de consumo - pelos danos à integridade física ou à vida causados ao consumidor que se mantém inerte e indiferente ao chamado de substituição da peça viciada de veículo automotor.

 

Importa destacar que do ponto de vista estritamente causal, a ocorrência de danos à integridade física ou à própria vida do consumidor condutor ou passageiro de veículo automotor, se comprovadamente oriundo de peça defeituosa colocada à venda, poderá ser interpretado como obra do fabricante ou montador, pois, de acordo com singelo e tradicional entendimento pretoriano, não fosse a colocação da peça defeituosa o resultado danoso não teria ocorrido.

 

A resposta à indagação formulada, no entanto, está na análise da moderna teoria da imputação objetiva do resultado, desenvolvida nos anos setenta por Claus Roxin, na Alemanha e que, embora tardiamente, a cada dia torna-se mais conhecida e aceita entre nós.

 

Em brevíssimas linhas, a teoria tem por escopo restringir o âmbito de aplicação da norma penal, por meio de critérios que corrigem a relação de causalidade.

 

Um dos critérios propostos pelo autor alemão denomina-se auto-colocação em perigo pela própria vítima, concepção segundo a qual mesmo que o autor do suposto delito tenha contribuído causalmente para o resultado, se a vítima põe-se voluntária e deliberadamente em risco, não haverá como se imputar tal resultado à terceira pessoa, vale dizer, no caso em exame, ao fabricante ou montador de veículo automotor.

 

Assim é que a partir do momento em que o consumidor torna-se ciente dos perigos existentes ou criados pelo fabricante ou montador e queda-se indiferente ao chamamento para a substituição da peça defeituosa, passa a assumir o risco da ocorrência todo tipo de dano, colocando-se em uma situação que se equipara a autolesão.

 

Em outras palavras: o recall terá o condão de tornar o consumidor absolutamente cônscio dos riscos que está assumindo e, a partir do momento da chamada do consumidor, toda e qualquer sorte de conseqüência passará a ser para ele previsível, assim como todo e qualquer dano que venha a sofrer passará a ser por ele mesmo evitável.

 

No que importa diretamente à indagação acima, portanto, em vista da aplicação do critério da exclusão do crime pela auto-colocação em perigo pela vítima, não há como se sustentar à persistência da responsabilidade penal do fabricante ou montador de veículos pela causação de um resultado danoso ao consumidor quando este resolve não responder ao chamamento e, sabedor dos riscos existentes e anunciados na campanha publicitária, passa a assumi-los e aceita-los como se fossem obra sua.

 

Para que assim seja, e para que o recall possa surtir tais efeitos no âmbito penal, torna-se rigorosamente indispensável que o fabricante ou montador atue com todo o rigor determinado pela Portaria do Ministério de Estado e de Justiça, n.º 789, de 24 de agosto de 2001 e, tão logo tenha ciência da nocividade e periculosidade de algum produto posto à venda, proceda à devida campanha publicitária de chamamento.

 

Desta forma, e à luz desses critérios de limitação da causalidade em sede penal, o recall surge como um valioso instrumento de proteção do fabricante ou montador contra as eventuais responsabilidades penais decorrentes da posta à venda de um produto que possa causar danos ao consumidor.

 

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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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