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CVM - Edital de Audiência Pública - Processo Administrativo Sancionador

José Adriano Marrey Neto

Chega a ser constrangedora a inconsciência com que a CVM insiste em postura ultrapassada, incompatível com os comandos oriundos da Constituição.

quarta-feira, 2 de outubro de 2002

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

 

            CVM

      Edital de Audiência Pública

Processo Administrativo Sancionador

José Adriano Marrey Neto*

 

1. Introdução; 2. O denominado "Processo Admnistrativo Sancionador"; 3. O indigitado inquérito administrativo; 4. O texto da Lei 6.385/76 e a competência da CVM para dispor sobre o processo administrativo por Instrução; 5. Aspectos pontuais da nova Instrução: I. Art. 12 II. Art. 12, parágrafo único; III. Art. 16, § 2° - intimações a serem feitas por "qualquer servidor da CVM"; IV. Art. 18; V. Art. 18, § 2°; VI. Falta de oportunidade para alegações finais ou memorial; VII. Parecer técnico e jurídico; VIII. Relatório; IX. Decisão reservada do Colegiado; X. Publicidade do julgamento.; XI. Vista dos autos; XII. Compromisso e seu não cumprimento integral; XIII. Conexão e continência; XIV. Pena de multa e seu pagamento; XV. Prova emprestada. 6. Conclusões.

 

1. Introdução

Põe a CVM, mais uma vez, em audiência pública, minuta de Instrução que disciplinará o que entende por bem denominar de "processo administrativo sancionador".

O texto, com a devida vênia, se ressente de diversos vícios - reiterados de normativos anteriores - e efetivamente merece ser revisto e emendado.

Sob um certo aspecto chega a ser constrangedora a inconsciência com que a nobre Autarquia insiste em postura ultrapassada, incompatível com os comandos oriundos da Constituição da República de 1988, a denominada Constituição Cidadã, em especial na novidade que trouxe em seu bojo, de estender o pálio do contraditório e da ampla defesa, enquanto garantias inarredáveis de direitos individuais, também para os processos administrativos.

O texto submetido a exame, adiante melhor se verá, padece do vício máximo identificável em Estado de Direito, a saber, o de se por em conflito com a própria Carta Constitucional.

2. O denominado "Processo Administrativo Sancionador".

A CVM qualifica a matéria disciplinada pela Instrução posta em Audiência Pública, como "Processo Administrativo Sancionador".

Algumas observações devem ser feitas.

A primeira, para pontuar que pela vez primeira a citada Autarquia se serve da denominação adequada para o conjunto de atos que pratica destinados a apurar eventuais infrações às normas do mercado financeiro e de capitais e a permitir a aplicação de sanções, que se trata, com efeito, de processo administrativo.

A segunda, para salientar que o aparente avanço demonstrado pelo uso da denominação apropriada para o referido conjunto de atos ordenados para o fim supra, é acompanhado de duplo retrocesso.

Desde logo, por manter, como que identificando providência à parte, distinta do processo administrativo, o quanto insiste de maneira não apropriada, em denominar de inquérito administrativo, atribuindo a um e outro tratamento distintos, com a grave conseqüência de violar o texto e o espírito da Constituição da República.

E, por derradeiro, por adjetivar o que consiste simplesmente um processo administrativo, como "Processo Administrativo Sancionador".

Preocupa tal indevido apodo.

Em símile de todo simples e auto-evidente, por exemplo, o processo penal não é necessariamente um processo penal condenatório.

É apenas um processo, que tem por objeto o exame imparcial de fatos que em tese constituem ato ilícito e punível na esfera criminal, para eventualmente permitir a aplicação de pena.

Nem por isso será, sempre, condenatório.

A denominação "Processo Administrativo Sancionador", ao contrário, suscita a idéia de que tal conjunto ordenado de atos, destinado a apurar a ocorrência ou não de fato considerado em tese, ilícito e punível na esfera administrativa, já se destinaria quase que de maneira necessária, tal a denominação ao mesmo emprestada, à aplicação de sanções...

Por evidente não é o quanto a lei atribui à prestigiosa Comissão de Valores Mobiliários, senão a elevada e digna missão de distribuir justiça administrativa, sem conclusões e colocações antecipadas e uma certa pré-destinação do processo administrativo quase que de maneira necessária à aplicação de sanções!

Sem dúvida esse modo de a CVM encarar o que será, simplesmente, "Processo Administrativo", como conjunto de atos que se destine a priori à aplicação de sanções, gera significativo e injusto desconforto aos administrados!

3. O indigitado inquérito administrativo.

Persiste a CVM em estabelecer distinção, data venia injustificada, entre o quanto entende de denominar inquérito administrativo e o processo administrativo em si mesmo, para este último reservando a aplicação dos princípios do contraditório e ampla defesa.

Observe-se, entretanto, que a Lei Federal n° 9.784, de 29.01.99 ao regular "o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal", desconhece a distinção que a CVM insiste em fazer entre "inquérito" e "processo administrativo".

Assim também a doutrina.

DE PLÁCIDO E SILVA1, após dizer que inquérito é derivado do Latim quaeritare (investigar, indagar), esclarece que "Tecnicamente, entende-se o processo promovido com o objetivo de apurar a existência de certos fatos ou de se ter informação exata a respeito de fatos".

Trata-se, pois, de processo.

EGBERTO MAIA LUZ2, diz que o uso da expressão "inquérito" só se justifica no pertinente ao Inquérito Policial, onde não se produzem provas, e que "Não se pode falar em inquérito administrativo quando em tudo e por tudo temos a segurança de estarmos no trato do processo disciplinar, cuja autuação de peças depende do desenvolvimento da própria instrução probatória, que não comporta sigilo nem restrições quanto à amplitude da defesa".

LÚCIA VALLE FIGUEIREDO3, salienta de maneira em tudo contrário à notável CVM, após se referir a "procedimentos disciplinares", entre os quais o que "visaria apurar infrações administrativas para aplicar punições", que "A publicidade, um dos princípios do Direito Administrativo, assume, nesses processos, cabal relevância. Como haveria a ampla defesa, com direito de participação em todos os atos, se não houvesse publicidade suficiente"?

Por último, JOSÉ CRETELLA JR.4, observa que no sentido técnico, "processo administrativo passou a sinônimo de processo disciplinar, 'cuja finalidade é apurar faltas, apontar e punir os seus autores'".

Sem sentido, pois, a distinção pretendida pelo texto submetido à audiência pública, entre inquérito e processo administrativo.

Em verdade, o vício é muitas vezes mais grave do que o conceitual - nem por isso admissível na Administração Pública e menos ainda, em Autarquia como a Comissão de Valores Mobiliários.

A questão vem salientada pelo texto firmado pelo Exmo. Sr. Presidente daquela Autarquia, que introduz o texto da Instrução em exame.

Diz ele após salientar o "objetivo de conferir maior eficácia a esse importante instrumento", vale dizer, a nova Instrução, no número 3, que "buscou-se aprimorar o regramento das diversas etapas do processo administrativo sancionar, com ênfase na diferenciação entre a etapa investigativa, de cunho unilateral, em relação à qual deverá ser mantido o sigilo necessário à elucidação dos fatos e o processo administrativo propriamente dito, que se desenvolve sob o crivo do contraditório e da ampla defesa".

As palavras podem soar bem, mas se limitam a isso!

Em verdade, a Seção II, "Da Instauração e da Instrução do Processo", deixam manifesta a reincidência da novel Instrução, nos mesmos e velhos vícios que tem caracterizado, nesse particular, o proceder da Comissão de Valores Mobiliários.

Isto é, a Comissão de Valores Mobiliários pretende conduzir sob o equívoco nome de inquérito, um processo administrativo secreto a que o investigado e potencial acusado não têm acesso.

É o quanto se colhe da apresentação feita pelo ilustre Presidente da CVM, ao afirmar que no inquérito ter-se-á "etapa investigativa, de cunho unilateral" e só depois "o processo administrativo propriamente dito, que se desenvolve sob o crivo do contraditório e da ampla defesa".

Porém, o quanto resta manifesto do texto da projetada Instrução, art. 18, é a manutenção do mesmo e absolutamente inconstitucional regime hoje seguido.

O que está evidente é que a CVM continuará produzindo todas as provas de acusação sem o controle da instituição ou pessoa física investigada e com base nessa fase inquisitorial, arts. 8° a 11, a Comissão de Inquérito proporá a instauração de processo ou o arquivamento do inquérito.

O grande problema, todavia, está em que no denominado processo administrativo propriamente dito, a prova de acusação não é reproduzida sob a fiscalização do acusado.

Esse pseudoprocesso administrativo se destina, tal como hoje, exclusivamente à produção das provas de defesa, ante a evidência de que toda a prova de acusação já foi produzida anteriormente, de maneira sigilosa (art. 2°, § 1° da nova Instrução), posto que o acusado tem o prazo de 15 dias para apresentar sua defesa e as provas que ele, acusado, pretende produzir (arts. 17 e 18), sendo certo que se não apresentar defesa, art. 17, será considerado revel, podendo ser desde logo julgado.

A Comissão de Valores Mobiliários insiste em passagens outras, em comparação entre o inquérito administrativo por ela conduzido e o inquérito policial, sempre para defender a "tese" de que o inquérito prescinde do acompanhamento de quem vier a ser acusado.

Incide em erro manifesto, pois como cediço, no inquérito policial, como regra, não se produzem provas, ressalvados autos de apreensão, exames periciais, etc.

Os elementos contidos no inquérito policial, como é de trivial conhecimento, por si só em absoluto autorizam a prolação de decisão condenatória e toda a instrução é reproduzida em Juízo, sob a garantia da ampla defesa e do contraditório.

Na espécie de inquérito imaginado pela CVM, não há previsão de ser novamente produzida a prova de acusação, mas previsão expressa de que se o acusado não se defender (art. 17) será considerado revel e em não havendo outras provas de acusação a serem produzidas, será desde logo julgado (art. 20), pois no inquérito já estará contida toda a prova de acusação, todos os elementos para a "instrução do processo" (art. 2°, § 2°).

Ora, a se imaginar uma aproximação do inquérito mal entrevisto pela CVM com o inquérito policial, haver-se-ia de observar necessariamente o símile até final, e a verdade é que, mesmo sendo revel, é nomeado defensor dativo no processo penal e nem por isso a prova de acusação deixa de ser novamente produzida!

Sob esse aspecto, pois, a Instrução que ora se encontra em audiência se ressente, assim como a Resolução n° 454/77 do CMN, de inconstitucionalidade, por desrespeito às garantias do contraditório e da ampla defesa.

Essas garantias não se compactuam com os processos secretos, como a CVM deliberadamente quer disciplinar o indigitado inquérito (confira-se o art. 2°, § 1°).

Quem o afirma é o notável constitucionalista MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO5, ao lembrar que a garantia do contraditório e da ampla defesa prevista no art. 5º, inc. LV da Lei Maior, se desdobra em três pontos, o primeiro sendo pertinente à defensoria dativa a quem desprovido de recursos e, de maneira que se enquadra especificamente no estudo ora desenvolvido:

"O segundo proscreve os processos secretos que ensejam o arbítrio... O último propicia a crítica dos depoimentos e documentos, bem como dos eventuais exames periciais que apóiam a acusação. Igualmente confere à defesa recursos paralelos aos da acusação para o oferecimento de provas que infirmem o alegado contra o réu." (negrito nosso)

Não menos incisiva é a ilustre Profª MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO6, ao assentar:

"O princípio da ampla defesa é aplicável em qualquer tipo de processo que envolva o poder sancionatório do Estado sobre as pessoas físicas e jurídicas.

O princípio do contraditório, que é inerente ao direito de defesa, é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta.

O princípio do contraditório supõe o conhecimento dos autos processuais pelo acusado e o seu direito de resposta ou de reação.

Ele exige:

1. notificação dos atos processuais à parte interessada;

2. possibilidade de exame das provas constantes do processo;

3. direito de assistir à inquirição de testemunhas;

4. direito de apresentar defesa escrita."

Como se vê, o texto da Constituição da República, em seu art. 5°, inc. LV mostra eivada de nulidade a nova disciplina para os processos administrativos proposta pela CVM!

Há mais!

A projetada nova Instrução viola também em diverso aspecto as garantias do contraditório e da ampla defesa.

Veja-se o quanto escreve a respeito o renomado CELSO RIBEIRO BASTOS7:

"Por ampla defesa deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. É por isso que ela assume múltiplas direções, ora se traduzirá na inquirição de testemunhas, ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim as diversas modalidades, em um primeiro momento. Por ora basta salientar o direito em pauta como um instrumento assegurador de que o processo não se converterá em uma luta desigual em que ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe timidamente esboçar negativas. Não, forçoso se faz que ao acusado se possibilite a colocação da questão posta em debate sob um prisma conveniente à evidenciação de sua versão.

É por isso que a defesa ganha um caráter necessariamente contraditório.

É pela afirmação e negação sucessivas que a verdade irá exsurgindo nos autos. Nada poderá ter valor inquestionável ou irrebatível. A tudo terá de ser assegurado o direito do réu de contraditar, contradizer, contraproduzir e até mesmo de contra-agir processualmente.

... omissis

O contraditório, por sua vez, se insere dentro da ampla defesa. Quase que com ela se confunde integralmente na medida em que uma defesa hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual direito da outra parte de opor-se-lhe ou de dar a versão que lhe convenha, ou ainda de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor.

Daí o caráter dialético do processo que caminha através de contradições a serem finalmente superadas pela atividade sintetizadora do juiz.

É por isto que o contraditório não se pode limitar ao oferecimento de oportunidade para produção de provas". (grifamos)

Sobre o processo administrativo, são lúcidos os comentários do ilustre constitucionalista:

"Embora saibamos que as decisões proferidas no âmbito administrativo não se revestem do caráter de coisa julgada, sendo passíveis, portanto, de uma revisão pelo Poder Judiciário, não é menos certo, por outro lado, que já dentro da instância administrativa podem perpetrar-se graves lesões a direitos individuais cuja reparação é muitas vezes de difícil operacionalização diante do Judiciário."

Esses elementos, com a devida vênia, fazem insuperável a inconstitucionalidade da Instrução ora posta em Audiência Pública.

4. O texto da Lei 6.385/76 e a competência da CVM para dispor sobre o processo administrativo por Instrução.

A Lei 6.385/76 em seu art. 9°, inc. V, atribui competência à CVM para "apurar mediante processo administrativo, atos ilegais e práticas não eqüitativas de administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado".

O § 2° do mesmo artigo dispõe que "O processo, nos casos do inciso V deste artigo, poderá ser precedido de etapa investigativa, em que será assegurado o sigilo necessário à elucidação dos fatos ou exigido pelo interesse público e observará o procedimento fixado pela Comissão".

A questão que se põe é a de analisar o § 2° acima, para definir ser à Comissão de Valores Mobiliários foi atribuída competência para disciplinar o processo administrativo como um todo, ou não.

A primeira leitura que se fizesse desse dispositivo, poderia sugerir atribuição de competência à Autarquia para disciplinar apenas o inquérito que precede ao processo.

Não será o melhor entendimento, todavia.

Em verdade, para além da análise apenas do § 2° do art. 9°, deve-se tomar em linha de conta toda a sistemática estabelecida para a fiscalização do mercado financeiro e de capitais pela Comissão de Valores Mobiliários, à mesma atribuindo competência para "apurar e punir condutas fraudulentas no mercado de valores mobiliários", § 6° e impor diversificadas sanções, art. 11.

De maneira consentânea com a análise teleológica da lei 6.385/76 e do sistema nela previsto, será de melhor Direito reconhecer à CVM atribuição para disciplinar por inteiro o processo administrativo previsto no art. 9°, § 2° e o inquérito que o precede, observada, é claro, a legislação federal e a Constituição da República.

5. Aspectos pontuais da nova Instrução.

Sob esse prisma, devem ser analisados os tópicos isolados que a nosso sentir mais se destacam, se mostram problemáticos ou merecem maior atenção.

É o que se passa a fazer:

I. Art. 12 - na esteira do já observado acima, o processo administrativo não se destina necessariamente à "punição" de quem quer que seja, mas sim, "à apuração ... de infrações à legislação do mercado de capitais".

II. Art. 12, parágrafo único:

A primeira linha desse parágrafo único consubstancia, ainda uma vez, a restrição indevida, ilegal, por violação do art. 2° caput da Lei Fed. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e do art. 5°, inc. LV da Constituição da República, na medida em que restringe o acesso aos autos para exercício do direito de defesa, a quanto denomina de "fase contraditória", cuja impropriedade também já foi demonstrada.

Na segunda linha desse parágrafo na restrição à retirada do processo das dependências da CVM, há violação a direito do Advogado, proclamado pelo Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei Fed. 8.906/94, art. 7°, inc. XIV, assim como violação do entendimento adotado, no tema, pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, RTJ 165/849 e do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, apud RT 721/287 e STJ, 1ª T., DJU 14.09.98, pág. 16.

III. Art. 16, § 2° - intimações a serem feitas por "qualquer servidor da CVM".

Inexiste, a nosso sentir, irregularidade qualquer nesse dispositivo.

Intimação é ato de dar ciência, dar conhecimento, de ato do processo, para que se faça ou deixe de fazer alguma coisa.

Como ato de dar ciência, tal como consagrado no entendimento doutrinário e jurisprudencial, independe de forma solene, podendo ser realizada por qualquer forma que traduza o conhecimento expresso do tema sobre o qual a parte deveria tomar ciência.

Tampouco se poderia entrever solução de menor acerto na atribuição a "qualquer servidor da CVM" de atribuições de dar ciência dos atos do processo.

Essa prática já se verifica - com pequena alteração, embora - na solução adotada por algumas repartições de exigir ciência escrita nos autos de quem deles tenha vista, o quanto importa em conhecimento de quanto nos mesmos contido até aquela data.

De outro lado, nos termos do art. 327 e § 1° do Código Penal, em norma de consagrada aplicação, "Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1°. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal".

JOSÉ CRETELLA JR8 conceitua o funcionário público "em sentido amplo", como "todo aquele que, mesmo em caráter transitório, exerce cargo, emprego ou função pública".

Sabendo-se que a vigente Constituição Federal, art. 37, inc. I admite a existência de funcionários e de servidores públicos, é viável e não passível de crítica a solução adotada pelo art. 16, § 2° em exame, com a observação final de que o quanto certificado pelos servidores da CVM, conterá apenas presunção juris tantum de veracidade, perfeitamente admissível prova em contrário.

III. O art. 17 por sua vez comporta pequena emenda.

Constitui praxe arraigada e solução de muito adotada no sistema processual brasileiro, a contagem dos prazos a contar da juntada aos autos do mandado cumprido.

Não se justifica, por isso, a contagem de prazo a contar "da data de recebimento da intimação", aqui não se tratando, v.g., de processo de execução, devendo ao contrário, ser contado a partir da data da juntada aos autos do respectivo comprovante, o que se aplicará para as duas primeiras figuras "recebimento da intimação" e "lavratura do auto de intimação".

As demais soluções alvitradas pelo dispositivo, com a ressalva supra, estão corretas.

IV. O art. 18 demonstra o quanto acima já observado, isto é, que a assim denominada "fase contraditória" só se aplica à produção de provas de defesa, sem oportunidade para a nova produção das provas de acusação, com inequívoco maltrato das garantias do contraditório e da ampla defesa.

V. O § 2° do art. 18 faz menção à "audiência" de testemunhas.

Não se trata propriamente de erro manifesto, por haver, sempre, a sinonímia com audição9.

Teria feito melhor, todavia, tivesse empregado a expressão consagrada e correta, "oitiva" ou mesmo "ouvida" de testemunhas, crítica que ora se faz.

VI. Falta de oportunidade para alegações finais ou memorial.

A prática profissional demonstra que uma vez encerrada a instrução é possível proceder-se à análise crítica de seu conjunto, formulando as alegações que parecerem pertinentes, através de peça denominada "razões finais", "alegações finais" ou "memoriais".

Data venia

o texto da Instrução ora discutida não contempla essa hipótese, pois determina que encerrada a instrução o feito seja feito concluso ao Diretor Relator que, após exarar seu relatório, designará dia e hora para o julgamento pelo Colegiado.

Há aqui vício de simples sanação.

As alegações finais permitem a melhor defesa e, inclusive, o conhecimento sistemático, por parte do julgador, dos argumentos e pretensões das partes, sendo imperiosa seja facultada sua apresentação no prazo mínimo de 15 (quinze) dias.

VII. Parecer técnico e jurídico.

O art. 21, parágrafo único, contempla a possibilidade de o Diretor-relator, antes da elaboração do relatório, solicitar parecer das áreas técnicas ou da Procuradoria da CVM.

É imperativo acrescentar que, sobrevindo tal parecer aos autos, para preservação das tão maltratadas garantias do contraditório e ampla defesa, seja dada ciência à parte interessada ainda antes do julgamento.

Os pareceres em questão poderão acrescentar elementos técnico-jurídicos cuja apreciação certamente interessará ao acusado.

Por isso é imperativo que do mesmo tenha ciência e, em se tratando de parecer técnico, possa se manifestar o acusado.

VIII. Relatório.

Dispõe o art. 23, em seu parágrafo único, que o Relator poderá "colocar o relatório do processo à disposição das partes e dos demais membros do Colegiado antes da sessão de julgamento, ficando dispensado de sua leitura na referida sessão".

O Relatório, poucos poderão atinar, constitui peça da maior relevância, pois contém o resumo das questões postas em debate e constitui para as partes, uma certa garantia de que seus argumentos foram ao menos registrados para a correspondente análise.

Com tal conteúdo, identifica o litígio e permite a compreensão exata dos demais julgadores sobre o objeto da discussão.

A observação que se faz é a de que, desejando o Relator se valer desse dispositivo, deverá fazer intimar às partes com antecedência razoável, pelo menos 48 hs., de que o Relatório está à sua disposição e não será lido na sessão em que o processo for julgado.

IX. Decisão reservada do Colegiado.

O art. 25 da Instrução em exame, contém visível inconstitucionalidade, por violação das garantias do devido processo legal e ampla defesa.

É inadmissível que em processo de conteúdo penaliforme como é, desenganadamente, o "processo administrativo punitivo" da CVM, possa haver qualquer tipo de decisão sigilosa, com tal conteúdo utilizada a locução "reservada", sem que a parte possa estar presente e ao menos assistir ao julgamento.

Além disso, é demasiadamente vago o permissivo "Havendo necessidade...", sem indicar sob qual fundamento.

De outro lado, em nenhuma hipótese a necessidade de sigilo poderia justificar semelhante dispositivo, caso em que a presença no recinto do julgamento poderá se limitar ao próprio Colegiado, ao Procurador assistente, às partes e seus defensores.

Sob o prisma da ampla defesa, em especial em processo de caráter punitivo, tem a parte o direito a quanto no Direito norte-americano se denomina his day in Court, isto é, o direito de estar presente, de assistir ao seu julgamento e ouvir de viva voz de seu julgador as razões pelas quais haverá de ser condenado ou absolvido.

Além disso, sob o prisma estritamente legal, constitui prerrogativa profissional do Advogado, nos termos do art. 7° inc. X do já visto Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei Fed. 8.906, de 04.07.94, "usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentos ou afirmações que influam no julgamento, bem como pra replicar acusação ou censura que lhe forem feitas", assim como, inc. XI, "reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento".

O dispositivo, pois, é inconstitucional, assim como ilegal, nos termos supra.

X. Publicidade do julgamento.

Como notório, o mercado financeiro e de capitais se estrutura basicamente em torno da confiança e da confiabilidade que possam merecer quantos nele interagem.

O art. 27, § 3° do projeto de Instrução contém verdadeira pena acessória contra quem acusado e ainda não definitivamente condenado, uma vez cabível recurso com efeito suspensivo, como sabido e demonstra o art. 28.

É de todo injustificada, portanto, gravosa e extremamente lesiva à parte, a publicação de acórdão condenatório ainda sujeito a recurso, máxime com efeito suspensivo e com possibilidade de reforma pelo Col. Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional.

Sugere-se, pois, a substituição de tal § 3°, como redigido, como segue: "O acusado será pessoalmente intimado do acórdão proferido, no prazo de 15 (quinze) dias após sua lavratura".

XI. Vista dos autos.

O art. 28 parágrafo único, reproduz, na vedação da retirada dos autos da CVM, a mesma ilegalidade já apontada na discussão do antecedente art. 12, parágrafo único, valendo aqui, as mesmas considerações ali expendidas.

XII. Compromisso e seu não cumprimento integral.

O art. 36 contém dispositivo que parece autorizar a CVM a adotar medidas judiciais pra compelir o compromitente ao adimplemento das obrigações que assumiu.

Vale registrar que a CVM não é fiscal da lei e não representa interesses difusos ou coletivos, não se confundindo, em hipótese alguma, com o Ministério Público.

Incide, pois, o art. 6° do CPC, que proíbe seja pleiteado direito alheio em nome próprio, hipótese de carência de ação.

XIII. Conexão e continência.

O art. 45 se serve da locução verbal "poderão", querendo indicar, como se vê, juízo de conveniência e oportunidade, id est., decisão discricionária quanto à processamento e julgamento em conjunto das "infrações que tiverem, entre si, relação de conexão ou continência".

Com a devida vênia, inexiste semelhante faculdade, senão o poder/dever, que deve ser lido e entendido muito mais como dever do que como simples possibilidade.

Os fenômenos processuais da conexão e da continência, levando à unificação e julgamento conjunto dos processos, tem em sua base a razão jurídico política de evitar, em casos que sejam conexos ou em relação aos quais se verifique continência (determinada infração, ex hipothesi, compreendendo outra), sejam proferidas decisões conflitantes, em desprestígio da Justiça em si mesmo e do próprio julgador.

Salvo decisão anterior de um dos casos em relação aos quais se manifeste a conexão ou continência - hipótese em que já findo um dos processos - é de rigor o julgamento conjunto, para evitar decisões conflitantes10.

Outro tanto, com maior razão se dá com as infrações em relação às quais se verifique ocorrer continência, o quanto ocorre, no conceito do art. 104 do Código de Processo Civil, "... sempre que há identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras".

A Instrução sub examine admite a hipótese da ocorrência de infrações que guardem entre si essa relação de continência, contendo uma, por ser "mais ampla", na dicção do Código de Processo Civil ou "mais grave", a outra.

Será de rigor em tal hipótese, a reunião dos processos11.

XIV. Pena de multa e seu pagamento.

Dispõe o art. 50 da Instrução, que a pena de multa deverá ser paga no prazo de 30 dias da intimação para pagamento.

Com a devida vênia, deverá esclarecer também, onde e como deve ser feito o pagamento e bem assim, eventual atualização monetária, se incidente, hipótese em que também deverá ser indicado o índice aplicável.

XV. Prova emprestada.

Por derradeiro nestas considerações, o art. 53 dispõe sobre a utilização da denominada prova emprestada, isto é, aquela produzida, para os fins desta instrução, "em processos judiciais e em processos administrativos instaurados por outros órgãos e entidades da Administração Pública, devendo ser deferida ao acusado a oportunidade de se manifestar sobre a mesma".

Esse dispositivo deve ser recebido cum granus salis.

A prova emprestada só se admite quando produzida em processo regular, com a intervenção na sua produção, da parte contra a qual deva ser utilizada.

Não terá valor qualquer, sendo írrita, nula de pleno direito, "prova" conseguida pela CVM mercê de seus inquéritos secretos

, hipótese em que absolutamente não poderá ser utilizada.

6. Conclusões.

Se está frente a Instrução nova, mas que apresenta os mesmos vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade de que se ressentia, v.g., a Resolução n° 454/77 do CMN, tal como já proclamado em decisões da Justiça Federal.

Lamenta-se que tão prestigiosa Autarquia não tenha presente em seu espírito e modo de proceder, os ditames simples e incontroversos da Constituição Federal.

A instauração de inquérito sem a participação do investigado, em verdade transmite a impressão de irregularidade e de que a CVM terá algo a temer, terá receio de que não conseguirá, salvo agindo às escondidas e sem o controle do investigado, produzir a "prova" que entenda necessária.

Com renovada vênia, resta deveras incompreensível esse modo de proceder, injustificado a todas as luzes, mormente quando se está sob a égide do Estado democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988, que todavia, de maneira inaceitável, ainda não é aplicada pela nobre Autarquia em questão.

São estes, s.m.j., os comentários que me pareceram pertinentes.

____________________________

1 - "Vocabulário", Forense, RJ, vol. II

2 - "Direito Administrativo Disciplinar", José Bushatsky, Editor, SP, 1977, pág. 117/118

3 - "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, SP, 1994, pág. 288

4 - "Curso de Direito Administrativo", Forense, RJ, 1995, pág. 578

5 - "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", Saraiva, SP, 1990, vol. 1, pág. 68

6 - "Direito Administrativo", Atlas, SP, 1995, pág. 402

7 - Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, SP, 2º vol., 1989, págs. 266/269

8 - op. cit., pág. 421, n° 269

9 - Dicionário Aurélio Eletrônico, verbete "audiência".

10 - "As ações conexas devem ser processadas e julgadas no mesmo juízo, considerados os fatos e visando evitar decisões contraditórias (STJ, 1ª Seção, CC. 6 - 1.227-ES, rel. Min. Vicente Cernicchiaro, j. 5.6.90, v.u., DJU 25.6.90, p. .021) apud THEOTONIO NEGRÃO, CPC, Saraiva, SP, 33ª ed., art. 102, nota 6.

11 - cfr. THEOTONIO NEGRÃO, op. cit., p. 208, nota 1 ao art. 104, com remissão a v. acórdão do STJ: "Configurada a continência entre as duas ações, pela identidade quanto às partes e à causa de pedir, o objeto de uma por ser mais amplo, abrange o da outra, recomendando-se a reunião dos processos, ante a possibilidade de decisões contraditórias". RSTJ 66/49

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* Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo - Advogado em São Paulo - escritório Marrey Advogados Associados.

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