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Meu caro amigo Raí

Na edição do dia 13.11.2007, do Jornal Folha de São Paulo, o ex-jogador de futebol Raí, famoso por sua habilidade com a bola e por seu engajamento social (como fora, na década de 70, Afonso Celso Garcia Reis, o "Afonsinho", embora com feição um pouco diferente), juntamente com Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, e Fernando Rossetti, secretário-geral do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), lançaram um desafio ao país: "Alcançar, até 2010, a marca de 800 mil aprendizes contratados", como forma de cumprir a Lei do Aprendiz, que "determina que toda empresa de grande e médio porte deve ter, do número total de funcionários, de 5% a 15% de aprendizes".

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Atualizado em 29 de novembro de 2007 12:04


Meu caro amigo Raí

Jorge Luiz Souto Maior*

Na edição do dia 13.11.2007, do Jornal Folha de São Paulo, o ex-jogador de futebol Raí, famoso por sua habilidade com a bola e por seu engajamento social (como fora, na década de 70, Afonso Celso Garcia Reis, o "Afonsinho", embora com feição um pouco diferente), juntamente com Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, e Fernando Rossetti, secretário-geral do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), lançaram um desafio ao país: "Alcançar, até 2010, a marca de 800 mil aprendizes contratados", como forma de cumprir a Lei do Aprendiz (clique aqui), que "determina que toda empresa de grande e médio porte deve ter, do número total de funcionários, de 5% a 15% de aprendizes".

E mais, foram enfáticos ao dizer que "não se pode pensar no pleno desenvolvimento social e econômico de um país sem investir na juventude".

No entanto, também está na mídia a notícia de que tramita no Congresso Nacional uma proposta de alteração da lei de estágio, limitando o número de estagiários no ensino médio, fixando em 4 horas a jornada de trabalho, e concedendo direito a férias ao estagiário... A proposta é apresentada pela deputada Manuela D'Ávila (PC do B-RS) como um grande avanço e tem recebido muitas críticas do setor empresarial.

Pois bem meus caros amigos, o fato é que a lei de aprendizagem tem uma forte concorrente: a lei de estágio. Trata-se, aliás, de uma concorrência desleal, pois mesmo com as mudanças propostas, que não refletem grandes avanços, a lei de estágio fornece às empresas e escritórios um verdadeiro batalhão de mão-de-obra barata, na medida em que pelos termos expressos da lei sequer há a formação da relação de emprego entre os estagiários e a empresa contratante. Embora se tenha a retórica de que a lei de estágio sirva para ajudar os jovens, o fato concreto é que serve ao fornecimento de uma mão-de-obra sem os custos sociais do trabalho. Ao contrário, na lei de aprendizagem, a relação de emprego e o efetivo acompanhamento de cursos de formação educacional são da essência do próprio trabalho. No que se refere aos direitos, as únicas diferenças existentes entre a relação de emprego com o objeto da aprendizagem e as relações de emprego comuns (não se falando dos aspectos pertinentes ao seu objeto próprio) serão:

a) a predeterminação, com a incidência de todos os dispositivos pertinentes a este tipo de relação de emprego, incluindo o art. n°. 481, por aplicação analógica1;

b) fixação de salário proporcional aos valores pagos aos empregados regulares, respeitando-se, por óbvio, o limite do salário mínimo.

Os aprendizes, na perspectiva dos direitos, devem ser considerados trabalhadores, mas o objeto real da obrigatoriedade de sua admissão pelas empresas não é o trabalho produtivo e sim a formação educacional.

Assim, enquanto a lei de aprendizagem, que cumpre, efetivamente, uma função social não retirando direitos dos jovens trabalhadores, amarga uma grande derrota, sendo frontalmente desrespeitada, a lei de estágio é um "sucesso" nacional. Vale lembrar, aliás, que a Lei do Primeiro Emprego (clique aqui), que também não reduzia direitos trabalhistas e até concedia benefícios financeiros aos empregadores que dela se utilizassem foi um fracasso de bilheteria...

Então, é possível dizer que falta ao capitalismo nacional uma consciência social. Por outro lado, é até compreensível que o capitalista acabe sendo forçado a usar as armas postas no jogo, pois se não o fizer outro o fará, causando-lhe sérios prejuízos. Assim, se a lei de estágio abre esta porta, as empresas continuarão a utilizá-la - e o poder público, mesmo sem razão para tanto, também. O que não é compreensível é que a lei diga que não há relação de emprego no trabalho prestado de forma não eventual, subordinada e mediante remuneração, como se dá, obviamente, nos contratos de estágio. O que não é natural é que esta porta fique aberta, fechando a da Constituição brasileira (clique aqui), que, ao conferir direitos aos trabalhadores, não permitiu espaço para que qualquer tipo de trabalhador tivesse seus direitos minimizados. O único tratamento especial foi, exatamente, para o contrato de aprendizagem e mesmo assim a exceção fixada diz respeito ao limite de idade para o início do pacto laboral. No setor público, então, a coisa é muito pior, pois a contratação de estagiários fere a regra fundamental, fixada na Constituição, da realização de concurso público.

Acatando, portanto, o desafio que fora lançado, proponho aos proponentes um desafio complementar: engajarem-se na luta para banir da nossa legislação o contrato de estágio, ou nela incluir, expressamente, que o estágio pressupõe relação de emprego, com o respeito a todos os direitos constitucionalmente conferidos aos trabalhadores, pois se queremos ajudar aos jovens a primeira e fundamental ação consiste em respeitá-los como cidadãos e não os considerarmos cidadãos pela metade, reduzindo-lhes os direitos.

A consciência da cidadania é o maior investimento.

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1 Neste sentido, FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A Reforma no Instituto da Aprendizagem no Brasil: anotações sobre a Lei nº. 10.097/2000 (clique aqui). . Revista Legislação do Trabalho. Vol. 65. nº. 02. São Paulo: LTr, 2001, p. 146.


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*Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí, SP. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP






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