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Todo preso deve ser algemado

Boa parcela da comunidade jurídica comemora a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de impedir, nas sessões de julgamentos, o uso de algemas em réus presos.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Atualizado às 13:25


Todo preso deve ser algemado

Christiano Jorge Santos*

Boa parcela da comunidade jurídica comemora a recente decisão do Supremo Tribunal Federal de impedir, nas sessões de julgamentos, o uso de algemas em réus presos.

Poucos dias antes, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal aprovou, em primeiro turno, o Projeto de Lei nº. 185/04 (clique aqui), de autoria do Senador Demóstenes Torres, que regulamenta o emprego do instrumento constritor em todo o território nacional, de maneira bastante restritiva. Sintomático que tais decisões tenham surgido pouco depois das recentes prisões de Celso Pitta, Daniel Dantas e Naji Nahas, todos algemados pela polícia. Embora estejam sendo veiculadas as atuações dos Poderes Judiciário e Legislativo como forma de defesa do princípio da dignidade da pessoa humana, preservação de direitos dos réus, enfim, defesa do Estado Democrático de Direito, com elas está sendo visceralmente atingido princípio constitucional igualmente basilar, a segurança pública.

Na contramão das últimas decisões, entendo que a única solução adequada é o estabelecimento, como regra, do emprego de algemas para toda e qualquer pessoa presa, preservando-se outro princípio constitucional: a igualdade. E justifico: em primeiro lugar, é necessário que o Estado brasileiro, mais uma vez, deixe de legislar sob o calor dos holofotes. Em 1984, foi estabelecido no artigo 199 da Lei de Execução Penal (clique aqui) que "o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal", o que não ocorreu até hoje.

Além do Código de Processo Penal Militar (clique aqui), em seu artigo 234, parágrafo 1º, nenhuma outra lei federal relevante tratou do tema. Deixou-se, assim, por inércia, ao talante das autoridades policiais o emprego ou não da pulseira constritora até hoje. Acostumamo-nos com o passar do tempo ao fato de que quase todo preso sem estudo, dinheiro ou fama, tivesse ou não oferecido resistência, houvesse ou não tentado fugir, fosse ou não primário, acabasse algemado para ser conduzido à prisão.

Alguns juristas defendiam que tais hipóteses poderiam caracterizar abuso de autoridade, mas não se tem notícia de muitos casos investigados nem, muito menos, de alguma condenação por tal prática. Todavia, se importante a regulamentação do emprego de algemas, que não se faça sem uma ampla discussão.

A vingar a decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir-se o emprego de algemas nos réus em julgamento pelo júri (o que será em breve estendido aos julgamentos perante os juízes singulares, também) e sendo aprovada Lei pelo Congresso Nacional proibindo a polícia de algemar os presos que não resistirem nem tentarem a fuga (aqui se tratando das constitucionalmente previstas prisões em flagrante ou em cumprimento de mandado judicial), estarão sendo criadas situações de altíssimo risco aos policiais, às autoridades judiciais, às vítimas, testemunhas e à população em geral.

Aos que não sabem, no tenso momento de uma prisão, na maioria das vezes, com uma arma apontada contra si, por um instinto de preservação da vida, o preso não reage, nem mesmo tenta a fuga, motivo pelo qual mantém-se imóvel e permite, repita-se, normalmente sob a mira de uma arma, que seja algemado. Pode-se, assim, conduzi-lo ao distrito policial ou a alguma unidade prisional, num primeiro momento, com enorme diminuição de riscos aos agentes públicos da polícia e do sistema penitenciário.

Ocorre que, em sendo aprovado o Projeto de Lei do Senado nº. 184/2004, que dá a entender que caracterizará crime o emprego de algemas fora das situações nele autorizadas, fugas e atentados contra os policiais poderão ocorrer.

Isto porque, depois do impactante momento da primeira abordagem policial, em não sendo algemado o "preso conformado", seguir-se-á a seguinte indagação: como levar aquele preso até o distrito policial? E se forem dois ou mais os detidos e houver um ou dois policiais? Se estiverem a pé os agentes da lei, deverão segurá-los pelos cós das calças, pelos braços ou pelas golas das camisas? Ou os policiais acompanhá-los-iam com as armas apontadas contra suas cabeças, caminhando assim entre a população? Caso fossem conduzidos no banco traseiro de uma viatura, desalgemados, como seria possível evitar uma fuga diante da parada num semáforo? Na hipótese de serem transportados no compartimento para presos das viaturas maiores, como evitar uma desabalada carreira, ou uma agressão, no momento da abertura da porta, já que a visão é de todo prejudicada para quem está de fora da viatura?

Não nos esqueçamos que após o primeiro instante, quando o preso pensa na preservação de sua vida e - muitas vezes, rende-se - sobrevém um segundo instante, no qual se sobrepõe a instintiva busca pela liberdade, mais acentuada no momento em que surge a ordem para entrar num distrito policial, numa cela ou para adentrar pelos portões de um presídio. Com certeza serão infindáveis os casos de fuga ou tentativa de fuga.

E qual alternativa está sendo dada aos policiais? Atirar nos presos pelas costas (e responder criminalmente por homicídio)? Passar a ter mais e mais exercícios físicos para que possam correr atrás dos presos? Chamar reforços a toda prisão banal e assim comprometer a falta de pessoal em prejuízo da população? E nos fóruns, diante da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, como circularão entre as testemunhas, vítimas, advogados, juízes, promotores de justiça, advogados e funcionários? Como prever-se a reação de um réu, então calmo, ao ouvir de um magistrado que foi condenado pelo júri a cumprir, por exemplo, vinte anos de reclusão? Não se olvide que os criminosos com um mínimo de inteligência, ao saberem da entrada em vigor da possível nova lei e do recente acórdão da Corte Suprema, certamente não mais reagirão nem tentarão fugir num primeiro instante (da abordagem), nem no início da sessão do júri, mas sim esperarão comportadamente, sem as algemas, para se insuflar com violência ou para tentar a fuga em ocasião mais propícia. Sem contar a possibilidade de outros marginais passarem a agir para resgatar seus "colegas" que, sem a restrição de seus movimentos, também poderão efetivamente agir, atrapalhando a ação dos policiais que ali se encontrarão para evitar a fuga.

Os críticos ao uso das algemas normalmente argumentam ser o uso das pulseiras constritoras aviltante e atentatório contra a dignidade da pessoa humana. Entretanto, nessa linha de raciocínio, deveriam entender ser inconstitucional qualquer lei que, a qualquer pretexto, a autorizasse, como também a existência da prisão. Parece-nos, tal posição, marcada por uma dramaticidade exacerbada e de pouco senso prático.

Em primeiro lugar, porque o uso das algemas é tão atentatório à dignidade humana quanto deixar alguém atrás das grades de uma cela. De fato, pode não ser agradável ver alguém algemado, tanto quanto não é prazeroso ver alguém numa cela. Todavia, ao menos atualmente, solução outra não há para isso e não se chocam as leis que autorizam a prisão com princípios ou normas constitucionais.

Aqui, cabe lançar uma idéia à reflexão geral: que seja revista a respeitável decisão do Supremo Tribunal Federal e que se regulamente o emprego de algemas estabelecendo o dever de algemar toda pessoa, sendo tal condição mantida quando conduzida ou transportada, tanto em deslocamentos longos quanto ao ser apresentada para audiências ou no plenário do júri. Fala-se em prisão, evidentemente, legal, ou seja, prisão em flagrante ou por ordem judicial (hipótese última, ainda mais evidente aos se tratar de recaptura de pessoas já condenadas definitivamente).

Quando se diz "toda pessoa", significa independentemente de classe social, posição intelectual, exercício de cargo público, vinculação profissional, artística ou, muito menos condição racial - ressalvadas algumas hipóteses de saúde extremamente debilitada ou idade muito avançada, a ser definida de modo pormenorizado. Não havendo, em absoluto, como "adivinhar-se" se uma pessoa pretende ou não fugir; não havendo como saber se alguém está planejando ou não sua fuga; tampouco havendo meio de os agentes públicos anteverem que um "preso conformado" ao se deparar com uma testemunha ou com a vítima, numa audiência, resolvam, num ímpeto, investir contra elas, o melhor é que todo preso seja algemado. É o único método não discriminatório existente, apto a garantir o princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal (clique aqui).

Porque o detentor de um cargo público relevante, se cometesse um crime, não deveria ser algemado? Porque, nestes casos de prisão legal, o detentor de tal ou qual título universitário deveria ser tratado de modo distinto do cidadão sem estudo? Porque o político eleito deveria ser tratado de modo diferente de seu eleitor, se ambos cometerem crimes? E aqui, outra importante observação: não se deve confundir o ato de algemar, o uso das algemas, com a execração pública da imagem. Não se defende que um preso provisório seja exposto propositalmente às filmagens ou à fotografação, com ou sem algemas, assim como não se confundem o ato de se encarcerar alguém com a divulgação de suas imagens na cela. Parece-me claro que o constrangimento e a vergonha não são (ou não deveriam ser) decorrentes do fato da pessoa estar algemada, mas sim atribuíveis ao fato de o indivíduo ter sido preso. Vergonhoso (via de regra) é o ato de praticar um determinado crime, muito mais do que ser preso.

A prisão só desnuda publicamente a autoria do ilícito, motivo da reprovação social. Neste contexto, a algema é um mero símbolo, um signo da prisão. Não é contra o uso dela que se devem voltar os detratores da idéia, instrumento fundamental para a manutenção da segurança dos policiais que a executam e da população que outorga poder ao Estado para conferir-lhe a tranqüilidade. Certo é que surgirão situações dúbias, mas parece que, sendo estabelecido por lei federal o emprego das algemas como premissa para toda prisão legal, a punição para o emprego ilícito da pulseira constritora estará diretamente vinculada à prisão fora da ordem jurídica reinante, situação já passível hoje de punição.

Num momento em que a segurança pública é das maiores preocupações da população brasileira, num contexto em que todos exigimos maior dignidade e melhores condições de trabalho aos agentes públicos incumbidos da preservação da segurança de todos, a decisão da Corte Maior e o andamento célere do projeto de lei que limitam demasiadamente o emprego de algemas, significam indesejável retrocesso.

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*Promotor de Justiça em São Paulo/SP. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Professor de Direito Penal da PUC/SP





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