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A chamada súmula vinculante

José Barcelos de Souza

Em geral decisões judiciais não atingem terceiros, estranhos ao processo, nem vinculam o juiz em casos futuros, nem muito menos outros juizes, que não são obrigados a seguir a orientação do tribunal em outros processos.

sexta-feira, 22 de outubro de 2004

Atualizado em 20 de outubro de 2004 08:47

A chamada súmula vinculante


José Barcelos de Souza
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Em geral decisões judiciais não atingem terceiros, estranhos ao processo, nem vinculam o juiz em casos futuros, nem muito menos outros juizes, que não são obrigados a seguir a orientação do tribunal em outros processos. Nem os membros do tribunal, aliás, ficam sujeitos a seguir em julgamentos futuros sua própria orientação anterior. Podem mudar o entendimento, visto que, como observou muito bem um jurista, só não muda de opinião quem não pensa. Permanecer no erro é que, sem dúvida, não seria sensato.

Contudo, não obstante a oposição da Ordem dos Advogados do Brasil e de membros da magistratura mesma, aos quais o executivo e o legislativo vêm dando correto e indispensável apoio, setores do judiciário têm insistido na adoção de mecanismo que torne obrigatório para juízes e tribunais certos entendimentos fixados pelo Supremo Tribunal em enunciados denominados súmulas, que se chamariam, por isso mesmo, súmulas vinculantes. Seria uma maneira de tornar mais ágil ou menos morosa a justiça, diminuindo-lhe o trabalho através de uma espécie de triagem das demandas.

Há, entretanto, outras e muito melhores soluções para a morosidade da justiça.

Além de outros inconvenientes, há o risco de tornar-se súmula vinculante matéria que careça de melhores estudos. Uma antiga Súmula do Supremo Tribunal, por exemplo, a de número 352, apoiou-se em um único julgado (!), e, além disso, julgado que teve nada menos que quatro votos contrários, o que levou o antigo Ministro Aliomar Baleeiro a indagar: "Será, assim, jurisprudência predominante?".

Tem-se objetado que a súmula vinculante engessaria a capacidade criativa do juiz e o aprimoramento do direito. Iria, porém, muito além disso. Engessaria, sobretudo, o trabalho do advogado.

Com efeito, e como salientou em um de seus escritos o conceituado autor e professor que foi Celso Barbi, quando se fala em jurisprudência eleva-se muito o papel do juiz e se esquece o papel do advogado, que é normalmente quem arranja soluções, que juiz o apenas aceita ou não.

Também o grande jurista uruguaio Eduardo Couture observou muito bem que certo juiz, num arroubo de sinceridade, disse que a jurisprudência é feita pelos advogados. Acrescentou o jurista que, realmente, assim é, porque na formação da jurisprudência, e, com ela, do Direito, o pensamento do juiz é, normalmente, um posterius. O prius correspondente ao pensamento do advogado.

Mas é claro que trabalho criador do advogado seria irrelevante sem um bom e criterioso juiz que pudesse aproveitar e até melhorar o que de valioso encontrasse nele.

Exemplo disso foi a chamada teoria brasileira do habeas corpus, na avaliação de Castro Nunes, antigo ministro do Supremo, o episódio sem dúvida de maior culminância, o fato de maior significação em toda a nossa vida judiciária. Seu grande artífice foi o Ministro Pedro Lessa, mas inspirado em ninguém mais ninguém menos que Rui Barbosa, que pleiteava a dilatação do âmbito do remédio, argumentando e mostrando que a Constituição o permitia.

Mais recentemente, na década de 60, criou-se, não por lei, mas por construção pretoriana, a liminar nos habeas corpus (ou seja, a concessão provisória da ordem pelo relator, a vigorar até o julgamento do pedido), nas palavras de um autor uma das mais belas criações de nossa jurisprudência. Surgiu no Superior Tribunal Militar, onde foi concedida pelo relator, Almirante José Espínola, em hábeas corpus impetrado pelo professor carioca Arnold Wald, vindo logo em seguida a ser adotada também no Supremo Tribunal Federal, em decisão do Ministro Gonçalves de Oliveira, que acolheu pedido formulado pelo notável advogado que foi Sobral Pinto e concedeu a medida para impedir a execução de decreto de prisão expedido contra governador processado por crime político, ganhando então repercussão e impulso.

De qualquer modo, o que muito importa considerar é que o estabelecimento de súmula vinculante seria desenganadamente inconstitucional, mesmo que imposta por emenda constitucional, visto que esbarraria na cláusula pétrea, por isso mesmo insuscetível de modificação até por aquele meio, inscrita que se acha entre os direitos e garantias individuais, de que a lei não excluirá da apreciação judicial qualquer lesão de direito.

É que a conseqüência não seria pura e simplesmente a de não poder o juiz decidir contra a súmula. Precisamente por lhe ser vedado assim agir, haveria de repudiar logo de início uma demanda que, posto fundada na lei, divergisse de súmula. Ter-se-ia, então, um exemplo de impossibilidade jurídica do pedido, inexistente no processo civil desde os tempos do Ato Institucional no 5, que retirava os atos revolucionários da apreciação judicial.

O pior é que, imaginada a vinculação para súmulas do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça já está querendo. Reivindicação nesse sentido já foi levada ao presidente do Senado. Não demora muito, e o Tribunal Superior do Trabalho também vai querer.
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*Professor titular das Faculdades de Direito da UFMG e da Milton Campos, Subprocurador-Geral da República aposentado e diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais







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